QUARTO
PASSO
Monto
a barraca iglu, cruzando as cânulas encaixadas da estrutura,
esticando a lona interna, amarrando os pontos, estacando, esticando a
lona externa, amarrando os pontos, estacando. A noite está
caindo rapidamente enquanto freneticamente sopro o ar para dentro do
meu colchão. Ele não tem pedal de bomba, nem bomba
elétrica... é no pulmão mesmo que se enche... na
verdade estou chamando de colchão o que não passa de
uma bóia inflável de piscina. Da melhor qualidade de
bóias infláveis, ainda assim uma bóia e não
um colchão... já viajei com ela antes, é muito
confortável, tem até um travesseiro inflável
acoplado. Sobre ela estendo um lençol, uma manta e pronto.
Tenho onde descansar. Agora me falta comer e tomar banho.
O
banheiro do camping não está sujo, tampouco está
limpo. Uso chinelos que não soltam as tiras para me equilibrar
entre as poças de água parada. Pelo menos o chuveiro é
elétrico e a água é abundante, direto da serra.
Saio
relativamente revigorada do banho e vou até a cozinha fazer
meu macarrão instantâneo recheado de atum. Guardo a lata
vazia que me servirá mais tarde como fogareiro. É um
recurso simples, barato e eficiente em viagens como esta.
Sentada
à beira da barraca aprecio a noite estrelada. O camping está
lotado, mas surpreendentemente até agora não vi mais do
que duas ou três pessoas de passagem. Todo mundo está na
praia aproveitando o primeiro dia sem chuva do ano de 2007. Também
penso em ir para lá depois da refeição. Tenho
uns trocados no bolso, posso tomar umas cervejas e tentar puxar
assunto com alguém, mas minhas costas dóem
terrivelmente e dou uma deitadinha sobre o colchão antes de
ir...
Quando
abro os olhos de novo, já são mais de meia noite e as
pessoas estão voltando ao acampamento, bêbadas em sua
maioria, falando alto, sem se preocuparem com os que dormem. Desperto
revigorada, querendo ir para a festa... ando até a praia, mas
que festa? Todo mundo já foi dormir e o céu escureceu,
um vento frio vem do mar, o mesmo vento que estava erguendo as ondas
e que agora chegou na forma de uma frente fria...
Na
barraca não sofro muito para dormir. Ainda estou cansada e
apesar do confortável desconforto do acampamento, consigo
relaxar e esquecer.
Só
dou por mim mesma pela madrugada, passada das três da manhã,
quando acordo com frio e com a sensação de que alguma
coisa está errada.
Descubro
que não uma, mas duas coisas estão erradas. Primeiro:
está chovendo novamente. Segundo: meu colchão inflável
furou, estou no chão duro, frio, irregular e inclinado do
jardim do “seu” Lourival.
Acendo
a lanterna, depois uma vela para poupar as pilhas, tomando cuidado de
pô-la sobre a lata vazia de atum, do lado de fora da abertura
da barraca, sob o avancé,
para evitar um incêndio...
Sopro
o colchão, com a vaga noção de que tenho um
pedaço de remendo em algum lugar da minha mochila. Descubro
frustrada que o furo está numa emenda, onde qualquer remendo
aguentaria apenas brevemente. Talvez durasse até a manhã
seguinte, mas não mais que isso, não sob meu peso, nem
sobre o terreno irregular, com pontas de grama japonesa saindo por
entre a trama da lona do chão, ameaçando causar mais
furos na superfície já meio velha daquela bóia.
Praguejo, se tivesse chegado com mais tempo, teria estendido no chão
a outra lona, mais grossa, antes de armar a barraca e isso teria me
poupado aquele furo.
Já
devia ter comprado um verdadeiro colchão inflável de
camping, com aquele revestimento aveludado à prova de pontas
de grama japonesa, mas agora é tarde para amargar essa
gambiarra...
Minha
escolha é deitar sobre o colchão murcho e tentar dormir
o restante da noite, para só na manhã seguinte decidir
o que fazer. Posso mudar de terreno, procurar um lugar melhor, ainda
que seja fora do acampamento do Lourival, no mato mesmo, perto da
bica d'água...
QUINTO
PASSO
A
manhã surge e dentro da barraca eu ouço a chuva que
está caindo desde a madrugada. É a típica chuva
grossa, que ensopa e causa enchentes. Inacreditável que tenha
vindo sem nenhum aviso, depois de um dia inteiro de Sol e céu
azul. Eu devia ter imaginado quando vi aquele mar todo ouriçado,
era um sinal da chegada da frente fria...
Lá
fora todos estão dormindo. Vieram tarde da noite e agora
desfrutam de paz e sossego. Penso em como se sentiriam se eu fizesse
agora a mesma algazarra que tinham feito ontem? Será que eles
não ficariam zangados se fossem acordados pelo meu barulho,
pela minha voz?
Sento
aos pés do colchão furado e no mesmo instante sinto uma
fisgada nas costas. A dor do dia anterior, somada à tensão
da viagem e à noite mal dormida sobre o colchão furado
resultaram num torcicolo, daqueles que travam o pescoço numa
única posição, sem chance de movimentação,
sem consolo de um remédio...
Puta
que pariu! - eu praguejei. Abri a porta da barraca para respirar o ar
puro e vi a chuva que eu imaginava. A única sorte de estar num
terreno levemente inclinado, é que ele não empossava,
pois à minha frente, há dois passos de distância
o solo ficava plano e as barracas sobre aquela área estavam
todas em vias de inundação.
Aos
poucos seus ocupantes foram saindo delas, vestidos com capas,
portando guarda-chuvas, puxando as estacas, mudando de lugar, cavando
uma vala, ocupando-se em protegerem suas parcas acomodações
do clima arredio que estava só começando.
Eu
sentada amargava a dor nas costas. Comi o pão com a pasta de
amendoim, dissolvi o leite em pó, com chocolate em pó e
belisquei o queijo trazido de Santa Rita de Caldas, onde eu era
conhecida pelo dono do “Café” como a “moça que
traz as enchentes”.
Enchente
eu não digo que trago, mas trazia naquele dia uma dor nas
costas e um colchão furado. Pensei em ir até o
centrinho da vila caiçara, ou até a beira da praia, mas
estava só com uns trocados e tinha a intenção de
poupá-los ao máximo, para gastar em cerveja quando
chegasse o dia perfeito de Sol...
Ensaiei
uma ida ao banheiro e neste percurso fiquei encharcada. Não
havia trazido capa, ou guarda chuva, apenas a jaqueta, que era
suficiente para me abrigar daqui até ali, mas não para
ficar constantemente exposta na chuva. O jeito era me consolar com a
barraca e colchão furado.
Sentei
à porta do meu iglu, sob o avancé,
com uma careta de dor, calçando os pés chinelos,
molhados e frios, sem querer por as botas de caminhada e correr o
risco de deixá-las ensopadas. Nada pode ser pior do que tênis
molhado numa viagem como essa...
SEXTO
PASSO
Pior
do que acampar na chuva, ter o colchão inflável furado,
um torcicolo e estar sem dinheiro, sem dúvida é ter
vizinhos-malas.
Bem
diante da minha barraca havia uma construção, que o
“seu” Lourival estava erguendo com as próprias mãos
para receber hóspedes. Numa beirada dessa construção,
um grupo de turistas paulistanos tentava estender uma tenda e sob
ela, armavam uma estrutura que parecia ser uma cozinha rústica
de acampamento.
Estavam
há dois passos e meio de distância de onde eu estava
sentada, com torcicolo e os pés molhados e gelados.
Um
paulistano que me lembrou aquele personagem de desenho animado, o
“Urso do Cabelo Duro”, segurava um copo de wisky com gelo e
falava, com sotaque “caRreegado da Moóca, meu!”
Ele
dizia que para assar um “peixE meu, é preciso destreza,
einteindeu?” e praticamente comandava a cozinha, fazendo seus
amigos correrem daqui para lá com os apetrechos da instalação.
Em
suma: ele queria assar um peixe e precisavam de um braseiro e um
apoio para a grelha que ele havia comprado “especialmenTi para esta
viagem, ôRra meu!”. Afora a grelha ele não possuía
nem uma coisa, nem outra.
A
namorada era uma bonita moça, de corpo bem formado, parecendo
uma saudável filha da burguesia paulistana, com uns vinte e
seis anos de idade e que contrastava totalmente com a figura dele:
gordinho, pançudo, de cabelos quase nos ombros, muito
desgrenhados e cavanhaque de pirata.
Ao
redor do casal transitavam outros jovens, talvez colegas de
faculdade, alguns acompanhados de suas namoradinhas, outros sozinhos,
querendo caçar... Nenhum deles contudo, fazia caso da minha
presença. Posso dizer que minha cara não era também
nada convidativa, sentada ali, feito um buda torto, com cara de
bunda, amargando um colchão furado, a chuva, o torcicolo e a
falta de dinheiro...
Numa
certa altura, deviam ser umas dez da manhã, o paulistano da
Moóca mandou a namorada ir buscar “o peixE meu! PoRrque
senão não tem chuRrasco de peixE, einteindeu?”.
A
moça assentiu e perguntou:
_Onde
está a Kalinde?
O
paulistano Urso-do-cabelo-duro respondeu:
_Não
sei. Ela tava por aqui meu, mas não vi pra onde foi.
A
moça desesperou-se e gritou com sua voz esganiçada:
_Kalinde? Kalindeeee! Kalindiiiii!
Então
uma criança veio correndo dos banheiros, debaixo da chuva,
vestindo somente um biquini:
_Tô
aqui mamãe. - criança de olhar arregalado e modos
delicados, que devia ter uns quatro ou cinco anos de idade.
_Onde
você estava?
_Fui
no banheiro fazer xixi. - a menina chamada Kalinde respondeu,
arrancando um sorriso de um dos amigos da mãe que vinham para
debaixo da tenda trazendo apetrechos para a fogueira do “peixE”.
_Pois
você saiu sem me avisar. - a mãe bronqueou – Fiquei
preocupada te procurando, você não pode fazer isso aqui
na praia, é perigoso.
_Desculpa
mamãe. Eu só fui fazer xixi...
_Não
quero saber. Tem que me avisar todas as vezes que sair de perto. Vai
ficar de castigo na barraca enquanto eu vou comprar o peixe.
_Mas
mamãe...
_Vai
ficar na barraca para aprender que não deve se afastar da
mamãe sem avisar. Quando eu voltar nós duas vamos ter
uma conversa. Agora vai para a barraca, já!
A
menina enterrou a cabeça entre os ombros e saiu meio chorosa
até a barraca que ficava para além de duas outras de
onde eu estava.
_Você
fica de olho nela? - a moça perguntou para o
Urso-do-cabelo-duro-da-Moóca.
O
rapaz agitou seu copo de wisky com gelo: Diling! Diling! E olhou para
a moça sem compreender o que ela dizia. Ela explicou que tinha
deixado a Kalinde de castigo na barraca enquanto ia até o
centrinho tentar comprar o peixe de algum pescador e pediu que ele
ficasse do olho.
_Tá
ceRto, vai lá enquanto eu ensino os rapazes aqui como se faz
uma fogueira. ÔRra meu! Vocês num sabem fazer uma
fogueira descenTI não? Essa meRda aqui não tá
pegando fogo!
A
moça saiu e os amigos ficaram olhando para a fogueira
fracassada. Um deles argumentou que os gravetos estavam molhados e
que por isso não se inflamavam.
_Mas é claro que os gravetos estão molhados, né
meu! Tá choveindo pra caramba! Precisamos de gravetos secos,
né meu! Até parece que num sei...
_Tá
mas onde arrumamos gravetos secos? - um
deles perguntou.
Diling,
diling: _Ah! Num sei né meu! Se vira velho! Num nasceu
quadrado, né? Da um jeito aí poRra, só sei que a
mulher foi buscar o peixE e daqui a pouco volta. Eu já trouxe
a grelha, a fogueira fica por tua conta né, mané?
Também não posso fazer tudo, né meu?
Os
outros dois rapazes deram de ombros e saíram à cata de
gravetos secos na chuva.
Eu
sentada dei uma risada e paguei o preço do escárnio com
uma pontada no pescoço. Deitei sobre o colchão furado e
rezei para a chuva parar. Se ao menos ela parasse, eu ficaria mais
incentivada e poderia até criar coragem para ir à
praia, gastar meus parcos centavos e voltar à barraca
espremida e sem conforto quando estivesse bêbada, mas eu
preferi passar o dia ali, à espera de uma melhora no clima, a
gastar tudo o que eu tinha de dinheiro vivo logo no primeiro e pior
dia da viagem.
Lá
fora o Urso-do-cabelo-duro-da-Moóca-meu continuava a agitar
seu copinho de Wisky e a se vangloriar de seu sucesso como campista.
_Eu
comprei essa grelha aqui dum camelô lá da Moóca.
Na loja custava cinquenta mangos, mas ele me cobrou quinze... esse
negócio aqui tá eRrado meu! Você tem que passar a
coRdinha por aqui e por aqui antes de dar o nó... esse graveto
seu tá muito molhado, tem que buscar um mais seco... você
não tem um isqueiro que presta, o bom é esse meu aqui,
um Zippo original meu! Que minha Tia comprou lá em “Detróite”
nos Estados Unidos...aposto que você não sabia que
“Detróite” fica nos Estado Unidos, meu! É lá
que fazem os melhores carros do mundo...
_É
nada! É na Alemanha... - objetou um amigo.
_Que
isso meu? Cê num sabe nada! “Detróite” é a
cidade da “FoRd” meu!
E
por aí prosseguiu a conversa... cochilei e acordei. No relógio
já eram duas da tarde e apesar do calor, a chuva não
parava. Diante da barraca, na instalação do vizinho a
coisa supreendentemente continuava na mesma. A fogueira fracassada, o
diling, diling do copo de wisky, as ordens do Urso-do-cabelo-duro e a
paciência de seus companheiros de viagem. Ao meu lado, duas
barracas adiante, podia ver a menina Kalinde sentada, com as mãos
apoiando o queixo, observando a cena emburrada, ainda de castigo...
Um
dos amigos do Urso observou: _Não tá na hora de tirar a
Kalinde do castigo não?
O
Urso olhou na direção da menina, agitou o copo: _Ih!
Meu! Num vou fazê isso não! A Paula é a mãe
da menina, eu sou só o namorado da Paula, não tenho
nada com isso. Não vou desautorizar ela, né?
_Mas
a menina tá lá há um bocado de tempo...
_E
a Paula? Ela tá demorando pra caramba... alguém sabe?
Os
amigos sacudiram a cabeça:
_Ô
Gustavo! - chamou o Urso- Vai lá na praia meu! Vê se
você acha a Paula que tá sumida! Diz pra ela que a
Kalinde ainda tá na BaRraca de castigo meu! E que ela tem que
voltar com o peixE, pô!
O
tal de Gustavo objetou dizendo que estava preparando a fogueira. O
Urso deu uma risada: _Tu tá é einRolando, isso sim!
Essa fogueira aí só vai sair na hora que eu resolver
acender, porque vocês num sabem acender uma fogueira meu...
vocês são tudo burguesinho da cidade que nunca viajaram
de baRraca. Querem aprender como se faz um acampameinto, presta
atenção aqui ó!
Diling,
diling, diling.
_Pega
essa poRrinha aê ó meu! Essa aê que tá
caída ao lado do seu pé... Que troço é
esse? - o Urso pegou nas mãos um prumo de madeira, um
instrumento usado na construção civil há
milênios, para definir se uma parede está reta, se um
caibro está bem assentado... - Que troço é esse
amaRrado nessa coRdinha?
Da
minha barraca eu observava a cena boquiaberta. Nem o Urso, nem seus
amigos que àquela altura eu já considerava parvos,
sabiam o que era aquela ferramenta. Fiquei com vontade de gritar:
Isso aí é um prumo seu idiota! Mas minha surpresa não
parou por aí, pois sacudindo os ombros o “Urso” verificou
que o prumo do “seu” Lourival estava seco e decidiu simplesmente
jogá-lo no fogo!
_Eu
não sei que poRra é isso aê meu, mas que tá
seco tá e deu um bom fogo, né?
Enquanto
essa bizarrice acontecia há dois passos e meio de meu nariz,
Kalinde continuava sentada à porta de sua barraca, de castigo
há pelo menos cinco horas...
_Cadê
a Paula meu? - perguntou o “Urso-do-cabelo-duro-da-Moóca-idiota”.
- Você foi atrás dela? - ele perguntou ao amigo, que
prontamente sacudiu a cabeça – Então vai pô! Eu
num disse que ia acender o fogo, pronto, acendi, vai você atrás
dela e diz que o fogo já tá aceso e que tá todo
mundo esperando o peixE!
O
amigo partiu na chuva a contragosto, atrás da mãe da
Kalinde que havia saído para comprar peixe e nunca mais tinha
voltado.
No
avancé da minha
barraca eu cozinhei um macarrão instantâneo usando uma
lata de atum, um pouco de álcool e uma panelinha rechaud
de fazer fondue. Kalinde
e eu, de vez em quando trocávamos olhares de cumplicidade. Na
cabecinha dela talvez pensasse que eu também havia
desobedecido minha mãe e por isso, também estava de
castigo na barraca... fiquei com vontade de oferecer um pouco de
macarrão para a menina que estava há cinco horas
sentada ali sozinha, sem comer, beber ou ir ao banheiro, mas não
fiz isso para evitar entrar em contato direto com aqueles idiotas...
Em nenhum momento os paulistanos há dois passos de distância
de onde eu estava olharam na minha cara. Eu já estava de saco
cheio de ficar ouvindo as ordens do “Urso” e assistir suas
fracassadas tentativas de fazer uma fogueira na chuva. Já não
me importava mais com o que pudessem pensar a respeito do fato de
que, a despeito do desejo deles, eu já interagia com os
absurdos da cena, dando risada da cara de tontos que faziam diante
dos comandos daquele boçal da Moóca. A cada nova
tentativa vã de fazer com que o fogo aumentasse, eu levava as
mãos à testa e soltava exclamações de
indignação. Eles continuavam ignorando minha
existência, visivelmente incomodados com minhas intervenções
não requisitadas, mas incapazes de dirigirem sua palavra, ou
seus olhares à minha pessoa e exigirem um esclarecimento a
respeito dessas interferências.
Se
algum deles tivesse coragem de perguntar porque eu ficava rindo de
suas caras de tontos eu teria dito simplesmente que seria
praticamente impossível fazer uma fogueira debaixo daquela
quantidade de água que caía do céu, a menos que
eles tivessem lenha seca e um bocado de combustível como
álcool, ou gasolina para dar ignição... diria
mais: diria também que aquele boçal da Moóca era
o sujeito mais insuportável e incompetente que eu já
tinha tido o desprazer de ver em ação, que ele entendia
tanto de acampamento quanto eu entendo de cirurgia do duodeno, que
eles poderiam facilitar muito as coisas se mudassem o local da
fogueira para debaixo da tenda, ao invés de mudar a tenda de
lugar, como o “Urso” tinha decidido fazer; o que havia consumido
horas a fio de tentativas fracassadas, simplesmente porque ninguém
ali tinha idéia de como amarrar cordas, ou usar contrapesos...
teria dito que era um absurdo deixarem a Kalinde de castigo por tanto
tempo, que a menina devia estar com fome, com sede e com vontade de
ir ao banheiro, mas que era obediente demais para fazer isso sem
autorização de um adulto e que na falta da mãe,
era o boçal do “Urso” que deveria ter tido essa
iniciativa. Aliás, iniciativa era o que mais lhe faltava. Não
para dar ordens, mas para botar a mão na massa, pois a única
coisa que eu vi ele fazer durante todas aquelas horas, além de
chacoalhar o copo de wisky com gelo, foi jogar o prumo do “seu”
Lourival no fogo, sem qualquer cerimônia, sem saber para que
servia aquela ferramenta, sem se preocupar em ir até a casa do
dono daquele terreno, que ficava há menos de vinte passos de
distância e perguntar se podia fazer isso.
Era
óbvio que aquele grupo estava na Cajaíba sem noção
do que era aquele lugar. Alguém deve ter contado a eles sobre
as belezas naturais daquela praia e o grupo de boçais havia
decidido passar o ano novo ali, porque era perto de São Paulo
e barato. Mas acampar não é um recurso a ser usado
levianamente só porque se está sem dinheiro, acampar é
uma arte, que deve ser aprendida por aqueles que gostam de interagir
com a natureza e que gostam de desafios logísticos. É
preciso pensar em tudo antes de partir para um acampamento, porque
uma vez nele, não será possível buscar o que
esqueceu de trazer e dependendo do que estiver faltando, seu índice
de conforto pessoal pode despencar vertiginosamente até a
agonia. Há situações num acampamento em que o
campista fica sem alternativas. Por exemplo: quando chove demais.
Por
melhor que seja sua barraca, às vezes é impossível
evitar que ela fique toda molhada por fora e por dentro, assim um
campista deve sempre trazer sacos plásticos a fim de vedar
roupas de cama e uma troca de roupas confortáveis. Um campista
deve também trazer algum combustível para fazer fogo,
mesmo aqueles que usam pequenos botijões de gás, porque
o gás pode acabar e só restar a você a
alternativa de fazer uma fogueira, ou de usar a famosa lata de atum
como fogão. Um dedo de álcool numa lata de atum é
geralmente suficiente para ferver meio litro de água. Isso dá
para se cozinhar um punhado de arroz, ou fazer um macarrão
instantâneo... naquela chuva essas eram as únicas opções
disponíveis. Ainda que eles movimentassem a fogueira para
debaixo da tenda, a fim de abrigá-la da chuva, ainda que
usassem um bom combustível de ignição, a madeira
estava toda molhada e eles haveriam de assar o peixe numa névoa
de fumaça fedorenta e sufocante...
Meia
hora mais tarde Paula voltou acompanhada do amigo do “Urso”, que
a tinha encontrado sentada num bar na beira da praia. Ela estava
completamente bêbada e trazia na mão, segurando pelo
rabo, um enorme peixe.
_ÔRra
meu! Cê demorou pra caramba! Onde cê tava?
_Encontrei
umas amigas. - ela disse, nomeando as amigas que havia encontrado por
acaso – E comecei a conversar e a beber cerveja. Perdi a noção
do tempo. Desculpa.
_Da
aqui esse peixE meu! Só não vou ficar bravo com você
porque comprou um belo peixE. Consegui fazer a fogueira pegar meu!
Você precisava de ver esses panacas tentando fazer fogo, mas
debaixo d'água não dá né? Então
tive a idéia de mudar a tenda de lugar e cobrir o fogo. - ele
disse dando uma risada idiota. Levei a mão à testa,
cinco horas de tentativas frustradas de fazer fogo na chuva, uma
mudança de tenda depois e ele falava como se fosse o herói
da engenharia...
_Onde
tá a Kalinde? - Paula perguntou alguns minutos mais tarde.
O
Urso olhou para ela com uma expressão de santa inocência:
_No
mesmo lugar onde você deixou...
Paula
olhou para a barraca e depois para o namorado, seu rosto se fechando
em fúria: _O quê? - ela gritou – Você deixou a
Kalinde presa na barraca esse tempo todo? - ela gritou de novo –
Kalinde! Kalindiiii! Minha querida, vem aqui com a mamãe... -
e ajoelhou enquanto a menina vinha correndo, aliviada e chorosa ao
mesmo tempo. Paula abraçou e beijou a filha, pediu desculpas
por ter demorado, perguntou se a menina estava bem, no que ela
respondeu que estava com fome. Paula ergueu-se depois desses mimos e
encarou o namorado – Você devia ter cuidado dela! Devia ter
tirado ela do castigo depois de um tempo!
_Ah!
Meu! A filha não é minha, né? Eu achei que não
devia desautorizar você. Além disso, pensei que você
ia comprar o peixE e voltar né, meu! Não achei que você
ia esquecer que tem uma filha...
O
filho da puta do paulistano da Moóca, o idiota sem noção
que tinha deliberadamente ignorado a menina, ainda conseguiu com
essas palavras deixar a mãe da Kalinde com sentimento de
culpa. Paula abraçou e beijou a filha de novo enquanto o
babaca de seu namorado enchia o copo com mais wisky e mais gelo que
ele retirava de um grande isopor.
_Agora
vamos assar o peixE na grelha que eu comprei do camelô. - ele
falou pegando a grelha nas mãos – Olha que beleza de grelha,
perfeita para estE peixE.
A
grelha era daquele tipo dobrável, onde se prensa a carne, ou o
peixe e se pode manuseá-la virando de um lado para o outro
sobre o fogo. O “Urso” não parava de se jactar por aquela
ferramenta, repetindo que ela custava cerca de quarenta mangos, mas
que ele havia pagado apenas quinze e tido a grande idéia de
trazê-la para que pudessem comer um peixe fresco...
Puseram
o peixe na grelha e a coisa toda deu uma acalmada. Meu torcicolo não
havia passado e eu estava cansada de ficar sentada como buda na porta
da barraca. Deitei, fechei o zíper e dormi.
Acordei
cerca de uma hora mais tarde com os berros do “Urso”. Abri a
barraca em tempo de compreender o que estava acontecendo.
Em
suma: depois de tanto tentarem ascender aquela fogueira, jogando nela
um bocado de álcool e muitos gravetos molhados, finalmente
eles tinham tido a tacanha idéia de mudar a tenda de lugar,
como já disse. No começo, mesmo este recurso de
proteger o fogo da chuva, não tinha produzido um bom
resultado, uma vez que os gravetos estavam encharcados. Mas o prumo
do “seu” Lourival, jogado displicentemente sobre as parcas
chamas, acabou cumprindo sua missão inusitada e incendiou. Com
o calor daquele instrumento em chamas, os gravetos molhados secaram e
o fogo cheio de combustível inflamável, acondicionado
entre tijolos, que serviram de apoio para a grelha, cresceu, cresceu
e cresceu, ao ponto de se transformar num pequeno pedaço do
inferno...
Onde
estava o “Urso” e seus amigos enquanto isso?
Dormindo...
Isso
mesmo! Deixaram aquelas parcas chamas acesas, o peixe na grelha e
foram tirar uma soneca de fim de tarde, sem atentarem para o fato de
que pela quantidade de madeira e álcool que tinha sido jogada,
uma hora ou outra a fogueira iria pegar forte...
Quando
acordaram a fumaça dos gravetos molhados, havia cedido lugar à
fumaça do peixe queimado. Pior! A grelha havia simplesmente
fundido com o peixe, como uma armadura de metal retorcido entre as
escamas.
O
“Urso” pegou a grelha na mão e a abriu. As duas bandas do
peixe se separaram, grudadas como estavam no metal. Ele fez cara de
atônito e então ficou zangado, muito zangado...
_PoRra
meu! Olha isso aqui! - ele reclamou – Ninguém ficou vigiando
o fogo e agora o peixE tá todo queimado! Eu não posso
fazer tudo sozinho, né meu! Já acendi essa poRra poRque
nenhum de vocês estava conseguindo, comprei e trouxe a grelha,
ajudei a montar a tenda, a Paula comprou e trouxe o peixe, que mais
ceis querem? No mínimo ceis tinham que vigiar o peixe né?
Agora tá tudo empoRcalhado, queimado... a grelha novinha tá
deRetida, né meu? Estragaram o nosso peixe Paula!
Os
amigos do “Urso” ficaram olhando para a cara dele com visível
indignação, mas não disseram nada! Não
sei quem era pior, se ele ou aqueles amigos idiotas que ficavam
ouvindo ordens e insultos de um boçal preguiçoso que só
fingia fazer alguma coisa.
_Agora
vamo ter que comer isso assim mesmo. - ele ordenou como se fosse um
pai dando um castigo aos filhos – Num quero nem saber. To cum fome,
a Kalinde também tá, né? Vamo ter que tirar os
pedaços que tão bons e se virar assim mesmo.
Levei
as duas mãos ao rosto e sacudi a cabeça, porque para
mim era óbvio que havia ali dois graves erros: o primeiro, sem
dúvida, foi o de terem se distraído com o fogo. O
segundo, era a própria grelha barata que o idiota havia
comprado num camelô e que devia ter mais chumbo do que qualquer
outra coisa em sua composição. Comer aquele peixe com
pedaços de metal derretido me pareceu algo além do mau
gosto e da ignorância, algo beirando à insanidade...
Todos
se uniram ao redor do peixe e como hienas em torno de uma carniça,
começaram a destrinchá-lo daquele metal fundido. A
pequena Kalinde teve que se contentar comendo chumbo misturado ao
peixe e enquanto eles comiam com as mãos e se lambuzavam,
percebi que a chuva havia dado uma trégua e achei que era hora
de deixar a barraca.
SÉTIMO
PASSO
Já
anoitecia quando passei pela casa do “seu” Lourival, a caminho da
praia. Parei ali um instante para conversar. Tinha a intenção
de lhe contar que um de seus hóspedes havia tacado fogo no
prumo de sua construção, mas depois desisti da idéia.
Como eu ia explicar a ele porque não tinha tentado impedir
aqueles idiotas de fazerem isso? Ele não ia compreender que
minha irritação estava chegando a um ponto
insuportável, por conta de meu colchão furado, da
chuva, do torcicolo e do banco quebrado que me deixara sem dinheiro
no bolso... ele não ia compreender que a somatória
desses fatores, mais a idiotice de meus vizinhos de barraca, me
teriam feito intervir de forma assustadoramente antipática,
grosseira e mal educada. Eu teria criado uma animosidade se tivesse
tomado a iniciativa de interagir com aquelas pessoas e isso era algo
que eu não precisava, para completar minhas desventuras. Assim
havia me tornado cúmplice daquela situação
ridícula, para evitar a fadiga de esbanjar minha antipatia e
fingi que não sabia de nada.
Perguntei
a ele se sabia de algum barco com destino a Paraty no dia seguinte.
Ele demonstrou surpresa:
_Já
vai embora?
_Já
“seu” Lourival...
_Mas
acabou de chegar...
_Eu
sei e tinha mesmo a intenção de ficar até o
final da semana, mas estou sem dinheiro, meu colchão furou,
estou com torcicolo e está chovendo muito...
_Mas
vai parar de chover – ele previu olhando para o céu – Já
nem está chovendo mais... quanto ao dinheiro, não se
preocupe... não conta pra ninguém, mas eu deixo você
ficar aqui de graça esses dias... você já veio
aqui algumas vezes, é de casa por assim dizer...
_Muito
obrigada pela sua gentileza “seu” Lourival, mas estar sem
dinheiro não me incomoda só por isso... eu gostaria de
sentar num barzinho na beira da praia e tomar uma cerveja, comer um
peixe... só que só tenho o suficiente para fazer isso
uma única vez e se essa chuva continuar, não vou ter
outras opções além de ficar enfurnada dentro da
barraca.
_Você
pode almoçar aqui com a gente... - ele ofertou generosamente.
_Obrigada
de novo “seu” Lourival, mas eu tenho comida... o problema é
que não queria ficar dentro da barraca, nem causar incômodo.
Preferiria ficar num barzinho... é a primeira vez que viajo
com bastante dinheiro, só que o dinheiro ficou lá no
banco que estava quebrado, não pude sacá-lo, entende?
Então, se a chuva continuar, ficarei presa, se a chuva parar,
ficarei na vontade de poder comer e beber na beira da praia. Além
disso estou com o pescoço travado porque meu colchão
furou e montei a barraca naquele pedaço do terreno que está
em declive...
_Mas
alguns hóspedes já foram embora, você pode mudar
a barraca de lugar.
Suspirei:
_Eu sei. Tem espaço plano de sobra agora, só que com
essa chuva, aonde o terreno é plano, formaram-se poças
de água que vão inundar minha barraca por dentro...
enfim “seu” Lourival... eu já decidi. Vou embora amanhã
mesmo... essa viagem não está saindo como eu esperava.
Ele
sacudiu os ombros, disse qualquer coisa sobre eu poder voltar quando
quisesse, sobre me receber com carinho, entre outras coisas fofas que
aquele casal gentil gostava de dizer às pessoas que lhes eram
simpáticas.
Da
outra vez em que eu estivera ali, “seu” Lourival me dissera que
não gostava da maioria dos hóspedes que recebia, porque
ou eles faziam muita sujeira, ou sequer se importavam em lhe desejar
um bom dia quando passavam por ele a caminho da praia. Dissera que eu
tinha sido diferente, porque me sentara ali na sua varanda para
conversar, para contar de onde tinha vindo, porque tinha escolhido
aquela praia para passear e descansar, do que gostava de fazer, minha
profissão, entre outras coisas...
Agradeci
a tudo imensamente e soube que seus filhos retornariam a Paraty no
dia seguinte. Tirei o pouco de dinheiro vivo que tinha no bolso e lhe
estendi, a fim de pagar pela estadia.
_A
passagem de barco eu pago com uma compra no supermercado – disse.
Ele
sacudiu a cabeça: _Não precisa pagar. Ganhei bastante
dinheiro com os hóspedes neste final de ano. Guarde seu
dinheiro para ir comer alguma coisa na beira da praia antes de ir
embora, porque você tá com vontade... da próxima
vez que vier, você me paga.
Há
pessoas neste mundo que nos fazem lembrar que o bem e a generosidade
existem.
Na
praia, procurei um barzinho que não estivesse nem vazio, nem
lotado de turistas. Sentei à mesa e observei o cardápio.
Eu tinha trinta “mangos” no bolso e a comida mais barata custava
doze. Isso seria suficiente para comer e beber um bocado naquela
noite, mas ao final disso, eu estaria totalmente a zero. Sacudi os
ombros, pois pretendia ir embora no dia seguinte e não
precisaria daquele dinheiro, porque o “seu” Lourival havia me
“quebrado o galho”.
Pedi
uma porção de frutos do mar para duas pessoas, que me
custariam dezoito e uma cerveja que custava três. Enquanto
comia vi um amigo de faculdade se aproximar. Ele vinha com outras
duas pessoas que eu conhecia de vista. Nos cumprimentamos com algum
entusiasmo, afinal, estávamos bem longe de casa e encontrar
conhecidos em situações assim é sempre uma
alegria.
Conversamos
até a meia noite sobre fofocas envolvendo uma amiga quer
tínhamso em comum. “D” ficou consternado quando lhe contei
que partiria no dia seguinte. Ele queria que eu ficasse e me unisse
ao grupo que pretendia fazer uma caminhada para a praia mais próxima,
através da trilha que cruzava uma área de reserva de
Mata Atlântica.
A
idéia me pareceu maravilhosa, fiquei louca de vontade de
participar, mas havia um problema: eu já tinha gasto meu
dinheiro e o que me sobrara não seria suficiente para que eu
pudesse desfrutar do passeio. Não seria justo me unir a eles
para chegar lá e ficar sozinha num canto, cozinhando macarrão
instantâneo no meu rechaud, vendo-os
no bar a beber cerveja e a comer camarão! Ademais, a caminhada
pela trilha seria só de ida, pois eles pretendiam tomar um
barco para o retorno à Cajaíba e eu teria que arcar com
a passagem que custava só ela quinze “mangos”.
Arrependi-me imediatamente de ter pedido o prato mais caro e ter
bebido todas aquelas cervejas. Se eu tivesse poupado os trinta mangos
que tinha trazido, poderia desfrutar desse passeio antes de ir
embora...
Quando
disse a eles que estava sem dinheiro eles fizeram aquela cara que
todo mundo faz quando sente que vai ter que bancar um colega duro.
Percebi que eles também não estavam esbanjando grana e
minha presença no passeio, ainda que eu me sujeitasse a comer
macarrão instantâneo e voltar a pé pela trilha,
acabaria por deixá-los desconfortáveis.
No
fim, ironicamente, aquele convite atraente acabou sendo mais um
motivo que me fez perder o desejo de continuar ali.
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