Conto: ATÉ O ÚLTIMO PEDAÇO pt.11

O OUTRO CONVIDADO

João ficou me observando por quase uma hora. Todas as vezes que eu tentava falar ele fazia sinal exigindo silêncio e me ameaçava com um novo banho de água fria. Jamais pensei que a água pudesse ser um instrumento de tortura tão assustador, mas naquele frio, com as roupas molhadas, eu tremia tanto que mal podia manter a boca fechada, meus dedos das mãos estavam arroxeados e tomar outro banho daqueles, parecia ser uma sentença de morte na madrugada que se avizinhava.
Por fim ele se levantou, apagou as luzes e saiu. Como na noite anterior a casa mergulhou em silêncio, exceto pelos ruídos familiares dos pequenos animais e do zum-zum dos carros passando ao longe, em alguma auto-estrada.
Lentamente minhas roupas iam secando, roubando-me o calor do corpo, ao mesmo tempo em que a temperatura ambiente ia despencando. Torci o cobertor ensopado, até sentir dor nos pulsos e tentei me cobrir com ele o melhor que pude. A fome agora começava a competir em igualdade com o frio pelo campeonato do desconforto. A comida estragada no chão me convidava a experimentar a sensação de um andarilho esfomeado. Não era isso que eu queria fazer da vida, caso saísse dali? Por que então não começar a treinar? Por que não pegar aquele pão encharcado com respingos de lama e comer?
Ignorei a comida e a bebida. Se tivesse sorte morreria de frio naquela noite, se tivesse azar, morreria de fome em uma ou duas semanas, mas não queria morrer espetada pelo garfo daquele homem!
O sono finalmente veio e caí num sonho perturbador, povoado de perseguições, fugas e eternos retornos. Não sei que horas eram quando as luzes se ascenderam e JM veio, de olhos arregalados com uma expressão de ansiedade.
_Ele chegou! Ele chegou! –foi dizendo enquanto corria apressado para a cozinha.
_Quem chegou? – perguntei em vão.
Então ouvi um barulho vindo do outro lado da casa e que parecia ser o de uma porta sendo bruscamente aberta. Passos soaram pelo assoalho e em poucos instantes vi surgir a figura conhecida do Dr. Daniel. Não sei dizer se senti terror ou alívio ao vê-lo ali. Pensei alucinada que ele talvez tivesse vindo me salvar.
_Donna! O que está fazendo aqui? – ele perguntou com um risinho de incredulidade.
_Dr. Daniel, por favor, me tire daqui! Este homem é maluco, o senhor tinha razão. Ele matou aquelas pessoas... agora eu sei.
_Onde ele está?
_Na cozinha...
_Estou aqui. – disse JM aparecendo na sala de jantar, com o carrinho de alimentação abarrotado de comida e bebidas. – Bom dia Dr. Daniel, há muito que não nos vemos. Por favor sente-se, preparei um jantar pois esperava-o mais cedo, a refeição ficou aquecida no forno, podemos cear civilizadamente e conversar sobre a nossa situação.
Daniel estudou João por um instante, trocou o pé de apoio e perguntou calmamente: _Você acha que vim até aqui para conversar?
João deu um sorriso e começou lentamente a aparelhar a mesa: _ Desde que fugiu da prisão eu sabia que você viria até mim. Há muito tempo eu esperava por esse momento. Sei porque está aqui e tudo o que eu lhe peço por hora, é que ceie comigo e me escute um pouco.
_Eu vim aqui matar você. – disse Daniel – Espera que eu seja civilizado?
_Eu sei porque veio, mas se me ouvir, talvez mude de idéia... – JM não tinha agora qualquer traço da ansiedade de minutos atrás. Calmamente ele aparelhou as duas cabeceiras da grande mesa com pratos, talheres e taças para duas pessoas. Puxou uma cadeira e ofereceu-a ao Dr. Daniel.
Da minha “jaula” eu torcia para que Daniel pulasse sobre ele e o esganasse. Surpreendentemente o médico aceitou a oferta e se sentou diante do prato.
JM serviu então um talharim ao molho de trufas e se desculpou por pular a entrada de saladas:
_Imagino que deve estar esfomeado e que dispense a salada para ir direto a algo mais consistente. Estas trufas são importadas da França, como sei que prefere... A pasta foi feita por mim mesmo. Em seguida servirei medalhões de filé mignon ao molho de amendoas e pistache, um bom purê de mandioca com queijo coalho da Canastra gratinado e um risoto de mariscos Portugueses, uma iguaria raríssima! – disse ele com indisfarçado orgulho - Deve estar adequado ao seu gosto, depois de tantos anos comendo marmita azeda de presídio... – João deu um sorriso de escárnio enquanto Daniel fazia uma careta – Desculpe – emendou – não deveria debochar da sua situação de presidiário, mas ambos sabemos como e porque você foi parar lá...
Daniel encarou o prato e esperou que João levasse o primeiro bocado à boca.
_ Você evoluiu bastante como cozinheiro desde nosso último encontro. – Daniel comentou olhando para a comida.
JM deu um sorriso enquanto engolia o bocado com um pouco de vinho.
_Ah! Sim, evoluí muito, mas jamais serei como você. Não tenho o dom. Pude ir até onde as aulas de culinária me levaram, mas falta-me aquele toque inato que só você tem. Jamais conseguirei superá-lo na cozinha caro amigo.
_Amigo? – Daniel perguntou enquanto levava à boca uma garfada do talharim. Ele saboreou a comida e chegou mesmo a revirar os olhos de contentamento – Acho que está enganado... – disse por fim – Você me superou. – e ofereceu um brinde ligeiro a JM.
João Miguel encostou-se na cadeira, com uma expressão de satisfação no rosto:
_Esperava que reconhecesse isso.
_Oh! Sim! Reconheço que fez um excelente trabalho. Fiquei preso por doze anos. O que fez durante este tempo?
João Miguel engoliu mais uma garfada e bebericou seu vinho antes de responder:
_Tive de colocar em prática as suas recomendações...
_Você se controlou então...
_O suficiente para manter a polícia longe dos meus calcanhares.
Os dois homens se estudaram mutuamente. De onde eu estava podia ver toda a cena com detalhes e senti uma tensão entre eles que poderia culminar, a qualquer momento, num esfusiante abraço de reencontro, ou num ataque feroz. Torci desesperadamente por esta última opção e pela vitória do Dr. Daniel. Ele era minha última esperança de salvação. Não que acreditasse ter ele algum bom motivo para me salvar, mas imaginei que os motivos que deveria ter para vir até esse lugar, superariam qualquer mágoa que pudesse sentir por mim.
_Diga-me Dr. Daniel, esta prótese lhe serviu adequadamente?
Daniel sorriu mostrando os dentes postiços: _Foi você quem a mandou para mim?
_Gostou do meu presente? Era o mínimo que eu poderia fazer por você depois que aquele advogadozinho de porta de cadeia falhou em defendê-lo...
_Ah! Mas não foi só isso que você fez não é?
JM deu um sorriso enigmático em seguida puxou mais uma garfada do talharim.
_Compreenda, Dr. Daniel, que eu não tive escolha. Quando descobri que andava conversando com o investigador do caso dos desaparecimentos, percebi que era uma questão de tempo até que você me entregasse para a polícia. Eu estava descontrolado, como você bem sabe. Não consegui suportar a idéia de ser preso e condenado a passar o resto de meus dias numa cela. Não pude aceitar este fato e tive a louca idéia de invadir sua casa e plantar as provas ali... as chances de sucesso era mínimas, mas armação deu certo, você foi preso, eu não. Contudo, não posso deixar de lhe dizer que me arrependi imensamente. Não devia ter feito isso, pois devo muito a você. Devo tudo a você!
_Deve. – Daniel respondeu secamente.
O relógio badalou três horas da manhã e o som pareceu distrair momentaneamente aqueles homens. Eu já não sentia mais frio, estava tomada por ansiedade e podia perceber que a paciência do Dr. Daniel estava por um fio. Acompanhava o diálogo na espectativa de que a qualquer momento aqueles dois homens se engalfinhassem numa luta até a morte e na minha contabilidade, havia uma única chance de salvação.
_E o que te faz pensar que eu o perdoaria? – Daniel perguntou naquele familiar tom de escárnio.
JM limpou os lábios com um guarda-napo de pano que tinha suas iniciais bordadas em azul.
_Peço que tenha um pouco mais de paciência. Vou servir a carne e depois a sobremesa. Um sorbet de flor de laranjeira com massa de filó.
O segundo prato foi servido, parecia delicioso, mas de onde eu estava, só podia torcer para que aqueles pedaços de filé alto e mal passados engasgassem João Miguel.
Ambos os homens comeram em silêncio, observando-se mutuamente a cada gesto.
JM terminou sua porção e foi até a cozinha com a desculpa de trazer o sorvete. Daniel olhou para mim.
_Você está molhada. – ele constatou a obviedade do fato.
_Ele me deu um jato de água fria porque eu estava gritando por socorro. Por favor Dr. Daniel, me tire daqui enquanto ele está na cozinha. Vamos fugir. Esse homem é louco...- minhas palavras foram interrompidas com um gesto brusco do médico sinalizando silêncio. Em seguida JM apareceu trazendo uma vasilha contendo o sorvete e um prato com vários discos de massa de filó.
_O que ela está fazendo aqui? – Daniel perguntou.
_É minha convidada. Pensei que fosse gostar. – ele respondeu enquanto servia a sobremesa – Soube que ela andou te visitando na cadeia, entrevistando você a pretexto de escrever um livro...
_Soube?
_Sim... eu me mudei para Franco da Rocha pouco tempo depois que você foi transferido para lá. Queria estar perto, acompanhar seu caso e ajudá-lo se fosse possível, mas nunca tive coragem de visitá-lo no presídio. Você me conhece, sabe que tenho minhas fraquezas... diga-me, como conseguiu fugir?
Daniel esperou que João provasse o sorvete e só então experimentou uma pequena porção. Torceu o nariz, visivelmente insatisfeito e comentou que a flor de laranjeira tinha sido usada em demasia. João Miguel ouviu-o de olhos arregalados, sorriu constrangido, limpou a boca com o guarda-napo e empurrou o prato com os restos de sorvete para o lado.
_No mais, foi um excelente jantar. – Daniel completou – Uma mistura um tanto incomum de filé e mariscos Percebis, mas muito agradável! A massa de filó estava perfeitamente crocante e o filét no ponto ideal. – Daniel beijou as pontas dos dedos num gesto tipicamente italiano. JM respondeu aos cumprimentos com um gesto de cabeça, como se tivesse acabado de apresentar um concerto musical. Ambos sorriram um para o outro e naquele momento pareceram velhos amigos comemorando o reencontro. _ Respondendo à sua pergunta sobre como fugi da cadeia, - continuou Daniel - não foi tão difícil. Aproveitei a visita de uma amiga para simular um envenenamento. –ele olhou rapidamente na minha direção - Ela me deixou um pedaço de bolo, que comi depois que partiu. Esperei um tempo e me forcei a vomitar, depois fingi que caí da cama enquanto dormia e fiquei inerte no chão, vomitado, mijado e aparentemente inconsciente, como se estivesse sofrendo uma overdose... demorou quase vinte e quatro horas até que aqueles animais viessem ver o que estava acontecendo, quando entraram na cela eu os ataquei. Esta foi a parte mais difícil porque apesar de eu ter treinado meu corpo dia após dia durante esses doze anos, tive que sair de uma posição de inércia, na qual estava há quase vinte e quatro horas, para assaltá-los sem lhes dar chance para fuga: ataquei os três homens. O primeiro com uma mordida mortífera na jugular, ao mesmo tempo em que lhe roubava a arma de choque. O segundo derrubei com um golpe forte e certeiro na cabeça. O terceiro foi dominado por um choque elétrico da arma que eu tinha roubado. Tudo isso em exatos três segundos, contados! – o Dr. sorriu visivelmente orgulhoso de si mesmo - Depois disso roubei-lhes as armas, a munição, as chaves e saí. Matei mais cinco deles no caminho, sequestrei a Dr. Elza e a fiz dirigir até São Paulo, onde eu a deixei trancada no porta malas do carro, devidamente morta, é claro. Em São Paulo me escondi num motel de quinta categoria, me perguntando se você ainda estaria no seu velho endereço e pensando numa vingança à altura de sua traição.
JM deu uma olhada rápida na minha direção: _Quando soube que você tinha fugido, decidi voltar para cá e esperá-lo. – ele disse - Sei que jamais conseguirei compensá-lo pelo tempo em que passou na cadeia. Sei que seu desejo é vigar-se de mim da maneira mais cruel que puder conceber, mas se fizer isso, para onde irá depois? Será obrigado a fugir do país, sem dinheiro, sem rumo, passando as piores necessidades. Será obrigado a roubar e a matar se quiser sobreviver e isso irá atrair a atenção das autoridades, que lhe caçarão até o fim dos tempos... você sabe que sou rico, tenho muito dinheiro e muitos bens. Pessoas do meu nível conseguem comprar a privacidade. Tenho uma mansão numa ilha particular em Angra dos Reis, onde você poderá viver com todo conforto, toda privacidade, boas roupas, excelente comida, todos os livros que desejar, aparelhos de ginástica, cozinha equipada, bons ingredientes e segurança. Posso comprar documentos falsos para você, posso pagar uma cirurgia plástica para mudar um pouco sua aparência e então poderemos viajar quando quiser, para onde quiser.
JM debruçou-se sobre a mesa, olhando fixamente para Daniel: _Você entende que eu também poderia matá-lo? Sabia que viria atrás de mim e que não se demoraria. Poderia ter chamado a polícia, poderia pô-lo de volta na cadeia, poderia até ter envenenado essa comida! – ele riu – Mas não quero isso. Já disse que devo tudo a você e que me arrependi do que fiz. O que estou lhe propondo é uma segurança que jamais terá. Ninguém suspeita que esteja aqui, ninguém virá procurá-lo. Se me matar, continuará sendo apenas um foragido sem eira nem beira. O que estou lhe propondo é estabilidade e segurança. Coloco minha fortuna à sua disposição...
_E o que irá querer em troca disso? – perguntou Daniel encostando-se na cadeira.
Meu Deus! Ele está negociando a proposta! Eu pensei enquanto minha última chance de salvação evaporava.
JM pareceu ofender-se com a pergunta: _Nada! Apenas a garantia de que não irá me matar... estou fazendo isso para tentar compensar um pouco do mal que lhe causei. Tenho um helicóptero pronto a decolar para Angra dos Reis, tenho roupas novas feitas na sua medida, a geladeira da casa está cheia das iguarias mais apetitosas: caviar beluga, trufas, cogumelos rosas, carnes bovina, suína, de cordeiro e cabrito, vinhos, champagne, wisky, além do conforto de uma bela piscina, sauna, jacuzzi, um lindo jardim e privacidade, o que é mais importante. Terá também a companhia desta mulher, se desejar, ou qualquer outra...
_Eu serei então seu prisioneiro...
_Não! De forma alguma! – JM sacudiu a cabeça – Vai levar um bom tempo até que as autoridades se esqueçam de você. Neste período precisarei da sua cooperação, você não poderá ficar zanzando por aí em liberdade, pois sua foto está em todos os jornais... Com alguns anos, dois, ou três, conseguirei documentos falsos para você e poderá ir viver onde quiser. Posso lhe arranjar uma renda própria e seremos apenas amigos. Agora que fugiu, eu só quero poder protegê-lo...
_Não entendo... você se esforçou tanto para me destruir e agora quer me salvar?
_Eu não queria destruir você! Fiz o que fiz para escapar da prisão, você me traiu primeiro! Foi você quem convidou o investigador para jantar e lhe contou a meu respeito...
_Eu não disse nada a ele. Pretendia estudá-lo...
_Mas não foi isso o que eu pensei na época... achei que você pretendia me entregar! Eu estava descontrolado e acabaria sendo pego mais cedo ou mais tarde, e justamente por causa desse descontrole, entrei em pânico naquele momento e resolvi tomar esta atitude. – JM levou as mãos ao rosto – Mas depois que você foi preso, minha vida perdeu um pouco o sentido. Nada mais parecia me satisfazer, nem mesmo as experiências... Descobri que era mais feliz quando podia contar com sua terapia... sei que me odeia e que talvez nós nunca mais possamos ser amigos novamente, mas pense na minha proposta! Você não precisará fugir nunca mais, não precisará trabalhar, terá todo conforto e eu lhe darei tudo o que desejar. Tudo! Qualquer coisa! – JM apontou seu dedo para mim – Por isso eu a trouxe, para provar que estou falando a verdade, que posso conseguir tudo o que você desejar.
_Não. – Daniel disse com secura – Você a trouxe aqui como um trunfo, para que a polícia pense que fui eu que a raptei. Novamente você está tentando me incriminar e espera com isso que eu, sem saída, aceite sua proposta.
João Miguel ficou boquiaberto e sacudiu freneticamente a cabeça:
_Não foi essa a minha intenção! Eu só quero agradá-lo. Ela é um presente meu para você, é sua para fazer o que quiser.
Ambos olharam para mim. Do que eles estavam falando? O que escapava à minha percepção? Minhas parcas esperanças iam se esgotando tanto quanto o calor de meu corpo e eu tremia de medo e de frio.
Daniel me observou por um minuto e depois encarou João Miguel.
_Não sei como lhe dizer isso de maneira branda JM, mas nunca fui seu amigo. Você era meu paciente e sempre mantive uma distinção entre ambas as coisas. Você me contou sobre seus anseios e eu lhe encorajei a experimentar suas vontades, para que pudesse superar seus temores e reencontrar um sentido na vida. Você compreendeu mal minhas palavras e se descontrolou. Tornou-se um assassino em fúria, cuja fome de sangue não podia ser saciada. Não acredito que ir viver com você seja algo que possa compensar os anos que passei na cadeia em seu lugar...
_Não iremos viver juntos! A casa em Angra é sua! Leve a moça se quiser, tenho uma sala especial no subsolo da casa, à prova de som e com diversos aparelhos para diversão. Use-a! Tenho outras residências e só irei visitá-lo quando me quiser para alguma tarefa. Serei seu escravo submisso... – e para reforçar aquelas palavras, JM ajoelhou-se diante de Daniel, cabisbaixo. – Deixe-me compensá-lo, mestre. Deixe-me tentar. Use-me, como quiser...
_Se eu usá-lo como quero, não sobrará muito de você para manter essas promessas.
JM ergeu-se do chão e tornou a sentar-se à cabeceira da mesa parecendo resignado:
_Mas o que acha da proposta? Tem algo a acrescentar? Quer alguma garantia? O que você quer? Me matar? Só isso? E depois continuar fugindo, na miséria, sem rumo, arriscando-se a ser pego, sem conseguir dormir tranquilamente? Eu posso devolver a sua vida e de forma melhorada, ainda mais confortável do que aquela que tinha antes de ser preso. Não quero nada em troca, além da minha própria vida e se possível, o seu perdão, um dia, talvez... o que pode ser melhor do que isso? Liberdade, dinheiro, diversão, conforto, privacidade e um leal e devotado servo, para lhe proporcionar tudo isso e o que mais você desejar! Posso conseguir mulheres para você, já que as prefere... posso pagar uma cirurgia plástica, mudar seu rosto, posso conseguir documentos falsos, um diploma falso e você poderá inclusive voltar a clinicar se quiser...
Daniel ergueu uma mão: _Já compreendi a sua oferta, não precisa ficar repetitivo. Realmente é uma excelente oferta. Muito melhor do que a oferta de uma vingança que redundará em uma eterna fuga da justiça.
_Então você aceita? – ele perguntou com os olhos brilhantes.
_Posso ter sido imprudente, mas jamais fui estúpido. Por que não aceitaria?
JM deu um enorme sorriso, alegre como um cachorrinho eu pensei, faltando apenas um rabo para sacudir de contentamento.
Ele deu palmas à decisão do Dr. Daniel e imediatamente começou a fazer planos:
_O helicóptero está no heliporto de Guarulhos... sei o que está pensando, que é arriscado demais você ir até um lugar cheio de câmeras, mas não se preocupe, meu carro tem vidros escurecidos e autorização para estacionar na pista. Ninguém o verá com suspeitas, ou desconfianças, você é um foragido da justiça, ninguém o irá procurar num heliporto... se quiser levar a moça viva, sugiro que faça como eu e a coloque dentro da mala, anestesiada por um sedativo. Não é bom que pessoas a vejam embarcar. Alguém mais tarde pode estranhar o fato dela nunca ter voltado da ilha. Ela não é magra, mas ninguém irá questionar porque a mala é tão pesada. Estes pilotos estão acostumados a clientes excêntricos... – JM olhou na minha direção e lambeu o beiços – Podemos prepará-la antes de partir. – ele sugeriu insinuante - Eu não tenho pressa e ninguém suspeita que estejamos aqui.
Daniel também olhou na minha direção:
_Foi por isso que a trouxe, não foi? Você está faminto novamente...
JM sorriu: _Há muito tempo não faço uma refeição decente. Desde que você foi preso eu tenho evitado caçar. De lá para cá, cacei apenas duas vezes. Não queria que a polícia percebesse o engano, mas também não via muita graça em caçar sem a sua orientação.
Caçar? Orientação? Eu gritei em desespero conforme ia me dando conta de que a prisão de Daniel não havia sido um completo engano. Aqueles dois não eram rivais! Eles eram parceiros e pretendiam me preparar como prato principal, exótico, de uma refeição gourmet!
JM saboreou meu desespero: _Ela é bastante quieta no geral. Hoje deu uns gritos, mas eu a acalmei com um jato d’água. Quer outro banho? – ele me perguntou diretamente.
_Acho que o jato d’água não vai resolver o problema agora. – sugeriu Daniel.
_Podemos abatê-la já! Tenho tudo o que é preciso aqui, uma cozinha equipada com serras, facas elétricas, moedor e embalador... se preferir podemos prepará-la e deixá-la prontinha para ser feita na casa de Angra. Que tal um churrasco? Sei que não é o tipo de preparo que você prefere, mas acho que seria perfeito para aquele ambiente e para a nossa comemoração! Podemos prepará-la hoje, deixar a carne marinando no tempero e partiríamos para Angra amanhã bem cedo. A previsão do tempo indica temperaturas amenas e Sol o dia todo... a piscina é aquecida, podemos tomar banho, comer, beber e colocar a conversa em dia. Tenho tantas coisas para te contar! Você sabia que minha mãe morreu?
Daniel torceu o nariz e sacudiu a cabeça.
_Pois é! Morreu há cinco anos, pobrezinha. Teve um derrame cerebral fatal. Eu tirei alguns pedaços dela antes de abrir o velório para visitação e posso dizer que a jantei naquela noite. – JM deu uma gargalhada histérica – A melhor refeição profunda que já fiz! Senti como se tivesse finalmente dado uma resposta adequada aos anos de dominação dela e de quebra descobri que carne velha não é tão saborosa... – ele riu novamente e sacudiu a cabeça – Você teria ficado orgulhoso se me visse naqueles dias. Foi a melhor terapia. Nunca me senti tão seguro e confiante... mas deixemos esse assunto de lado por um momento. Estou falando demais, não estou?
Daniel balançou a cabeça. Tinha um sorriso estranho no rosto e o olhar meio perdido, como que imerso em recordações.
Apesar da auto-advertência João continuou a falar: _É que estou tão empolgado! Você veio aqui me matar, eu estava preparado para revidar, tenho até um revólver carregado, mas eu tinha certeza de que você ouviria a voz da razão. Sei que ainda deve estar com raiva de mim, mas em alguns dias isso irá passar. Quando você vir minha casa em Angra, quando vir as coisas lindas que comprei para você, os livros, os discos, as roupas, as obras de arte... irá compreender finalmente que seus doze anos na prisão acabaram valendo a pena.
Algo na expressão de Daniel me incomodou mais do que toda aquela conversa até aquele momento. Ao invés de sua frieza característica, percebi que ele se esforçava para manter a aparência de calma e tranquilidade. Alguma coisa agitava-se sob sua pele, talvez ele ainda não estivesse muito seguro de sua decisão, ou talvez estivesse apenas pensando na melhor forma de me preparar para o jantar.
Eu chorava e batia as mãos impotentes no vidro. Cheguei a dar alguns chutes e gritar novamente, mas o vidro não era como as muralhas de Jericó e Deus parecia ter me abandonado nas mãos do Macabro e de seu escravo aprendiz.
Meu comportamento irritou JM novamente, que se levantou tirando uma chave do bolso, provavelmente para abrir a porta do jardim de inverno e me “abater”. Daniel segurou-lhe o braço e este toque, embora leve, disparou um sobressalto no outro.
Percebi que JM ainda não se sentia completamente seguro diante da presença do seu mentor. Havia desconfiança entre eles e pensei que as coisas talvez não estivessem ainda tão definidas.
_Espere. – Daniel disse e tenho certeza de que o choque que seu toque provocou em JM não lhe passou despercebido – Não quero abatê-la. Ainda não. – ele completou.
Eu choraminguei palavras que procuravam apelar para qualquer sentimento humano, mas aqueles dois não eram humanos, não estavam nem um pouco comovidos com a minha situação e me observavam de suas cadeiras, como donos de gado observam seus animais no pasto.
_Ela está me perturbando com essas lamentações. – disse JM.
_E o que você esperava? Estamos aqui planejando qual a melhor forma de prepará-la para uma refeição, ela está presa ali, vendo e ouvindo tudo... está sentindo na pele o que eu senti enquanto estava naquela cela. Está experimentando o papel de objeto de desejo de dois sádicos. Deve estar extraindo um material bruto e intenso para seu próximo livro, não é?
Não respondi. A idéia de escrever um livro me pareceu distante e nublada. Poderia jurar que não era escritora, que não era nada, além de uma criança assustada querendo sair e começar a viver. A louca idéia de virar andarilha voltou à minha mente. Um passo diante do outro, para sempre, para longe dali...
JM observou seu mentor por um instante antes de perguntar:
_Você quer torturá-la? – a pergunta soou quase como uma exclamação de surpresa.
_Não exatamente. Quero deixá-la ali por mais um tempo. Quero ver como ela reagirá quando eu lhe fizer uma proposta.
_Que proposta?
Daniel sorriu, os dentes caninos de sua dentadura ficaram mais evidentes naquela luz branca da sala de jantar: _É cedo ainda para tratar deste assunto...
JM cerrou as sobrancelhas: _Mas precisamos decidir logo o que fazer...
_Você disse que tinha tempo.
_E tenho... é só que não vejo muito propósito em ficarmos aqui, quando poderíamos ir para Angra... o que há de errado na idéia de um churrasco? A mim parece perfeita e não gosto de ficar ouvindo lamentações...
_Podemos aproveitar o tempo para colocar o assunto em dia. Até agora você não me disse exatamente o que ficou fazendo nestes anos...
_Bem... eu comprei uma casa e alguns negócios em Franco da Rocha e passei a viver lá. Tenho um restaurante na cidade e recebo frequentemente os médicos do hospital, que me contam histórias sobre os pacientes. Finjo que estou interessado em ouvir essas histórias e sempre acabo sabendo alguma coisa a seu respeito, foi assim que descobri que havia fugido. Sabe, eu não consegui suportar a idéia de ficar tão distante. Eu quis te visitar, soube que você precisava de um advogado, mas tive medo de te prestar esta ajuda, porque você iria basear sua defesa me acusando daqueles crimes, então esperei pelo dia em que você conseguiria uma chance para fugir, jamais duvidei que conseguiria.
_Você é ardiloso, JM. Pensa que eu não percebo a verdade por detrás de suas palavras? Sei que você ficou me vigiando não porque não suportasse ficar tão distante de mim, mas porque tinha medo de que eu fugisse sem que você ficasse sabendo, sem que estivesse preparado para me receber. Você planejou tudo muito bem, voltou para seu antigo endereço e trouxe até esta mulher como garantia de que teria uma cobertura caso as coisas não saíssem conforme o seu desejo.
_Eu a trouxe porque pensei que a desejasse. Se não a deseja pode matá-la se quiser.
Daniel maneou a cabeça: _Não acho que tenho escolha agora...
_Por favor! Não me matem, não me matem! – eu gritei, sentindo as pernas fraquejarem. Caí no chão abandonada aos prantos, mas de algum modo meus ouvidos atentos captaram uma nota de desaprovação na voz de Daniel.
_Meu interesse por ela era meramente profissional, por assim dizer...
Houve uma pausa e percebi que ambos me estudavam: _Você quer dizer que acha que ela tem potencial? – perguntou o aprendiz.
Daniel deu de ombros: _Ela não é como você. – ele disse – Acho que é mais parecida comigo, mas agora não poderei saber. Não poderei estudá-la, ou observá-la sem interferência. Ela já está comprometida a aceitar qualquer proposta que fizermos, porque está com medo de morrer. O ideal teria sido uma aproximação natural, sem pressões pela sobrevivência e só então eu saberia com certeza se ela tem ou não potencial.
Do que aqueles dois estavam falando? A curiosidade me obrigou a controlar o pânico e atentei para aquele diálogo insano, esperando uma brecha, qualquer coisa por onde eu pudesse barganhar pela minha vida. Até aquela jaula me parecia mais confortável agora, diante da opção de ir para a grelha de uma churrasqueira...
JM sacudiu a cabeça: _Ela não tem potencial nenhum. É fraca e pouco inteligente, como pode dizer que ela se parece com você?
_Ela não teve boa educação, isso é diferente de ser ou não inteligente. Ela só não foi instruída... quanto a ser mais parecida comigo, bem, isso é uma questão mais delicada, que nunca discutimos, você e eu. Ela é curiosa e imaginativa. Acredito que em condições normais estaria susceptível às novas experiências, seria um bom desafio convencê-la e durante alguns dias pensei ser possível conseguir mudar sua perspectiva de vida, mas agora, presa como está, não acho que ela irá colaborar por espontânea vontade. Você devia ter pensado nisso, devia ter me consultado antes de raptá-la. Ela seria muito mais interessante para mim se viesse até nós por vontade própria. Poderíamos ter montado uma estratégia de aproximação através de você, a quem ela ainda não conhecia e então eu a teria como nova aprendiz...
Jamais! Eu pensei e sacudi a cabeça reafirmando as palavras que não haviam saído da minha boca.
João Miguel observou-me parecendo frustrado e olhou de novo para seu mestre, com uma expressão de visível desagrado.
_Não pensei que fosse esse o seu interesse. De qualquer maneira, você não precisa de um novo aprendiz. Estou disposto a retomar o tratamento e seguir com o nosso antigo acordo. Na verdade acho que o arranjo está perfeito. A polícia nem irá desconfiar, vai continuar te procurando, achando que você é o responsável e isso me dará liberdade para caçar por nós dois. – ele deu um sorriso e esfregou as mãos como se mal pudesse esperar pelo momento.
Daniel sacudiu a cabeça: _Você não precisa mais de tratamento, ou terapia. Você não é mais um aprendiz. Já me superou no jogo, me mandou para a cadeia quando eu menos esperava. Está pronto para seguir seu caminho sem a minha orientação.
_Mas eu quero a sua orientação! Já disse que a vida perdeu um pouco o sentido depois que você foi preso. Perdi o tesão para caçar. Com você por perto essa atividade é muito mais interessante. Nós podemos retomar no ponto onde paramos...
_Não há como as coisas serem como antes. Eu já não o vejo da mesma forma. Você tem objetivos diferentes dos meus...
_Você está me dizendo que parou? – João Miguel estava tão decepcionado que pensei que fosse desabar em lágrimas.
_Sim. Meus interesses mudaram ao longo desses anos. Continuo minha busca, mas minhas prioridades hoje em dia são diferentes. Interessa-me mais encontrar alguém com quem compartilhar minha experiência de caça, do que continuar caçando...
_Você pode compartilhar tudo comigo! Não estou entendendo... pensei que tínhamos um acordo!
_Você me ofereceu asilo e segurança. Isso não significa que eu esteja interessado em retomar nossa parceria. Como eu disse, você é diferente de mim, tem outros objetivos e estes já não me interessam mais como antigamente.
JM levantou-se da cadeira subitamente. Seu rosto estava ficando vermelho, mas ele procurou conter a raiva, demonstrando apenas um nervosismo perigoso e ameaçador:
_Pare de falar que somos diferentes! Não somos! Você me introduziu nisso, porque viu em mim a sua alma gêmea. Sei que nunca irá admitir completamente o que sente por mim, mas tudo bem... isso não me incomoda. O que me incomoda profundamente é essa sua nova postura, como se seus interesses fossem superiores aos meus. É óbvio que você ainda não admitiu ter sido superado e está mudando as regras do jogo porque quer retomar sua posição de mestre. – João tomou fôlego e procurou se acalmar – Tudo bem mestre! Você quer mudar as regras, por mim está ótimo! O jogo agora é encontrar um novo aprendiz, alguém que possa realizar as caçadas para nós? Já temos uma candidata, talvez ela ainda sirva... se não servir, posso encontrar outra pessoa, ou você julga que eu não tenho o dom para reconhecer meus semelhantes?
Daniel sacudiu a cabeça novamente e eu já não estava compreendendo mais nada daquela conversa.
_Você não entendeu o que eu disse... gostaria de ter um novo aprendiz porque não compartilhamos mais os mesmos interesses e objetivos. De certa forma a culpa disso é sua, por jamais compreender exatamente o que eu sou e o que você é! – Daniel explicou diminuindo o tom de voz conforme ia falando - Não somos iguais, sequer somos semelhantes. O que nos liga é apenas a experiência canibalesca e o assassinato, mas os motivos que o levaram a isso, são completamente diferentes dos meus, para não dizer opostos. Desde que nos conhecemos você tem se esforçado para se parecer comigo, no seu modo de falar, vestir, andar, se comportar... antes de mim você se esforçava para parecer com sua mãe! Se na sua vida surgisse uma nova pessoa, de personalidade forte, carisma e liderança e que ao invés de matar e comer, preferisse estuprar e torturar, você se esforçaria para se parecer com ela e assim por diante. Você sofre do que eu chamo de “síndrome do espelho”, uma dissociação de personalidade tão rara que precisei inventar um termo para classificá-la. Sua personalidade é tão dissociada, que de fato não há personalidade alguma! Jamais te falei isso, porque naquela época em que era meu paciente, você me servia bem como batedor, como soldado de infantaria na linha de frente, mas eu jamais te vi como um semelhante. Talvez eu tenha tido essa ilusão no princípio, bem lá no princípio, quando você confessou pela primeira vez que sonhava em poder matar alguém, só pelo prazer e curiosidade de sentir-se forte, seguro e sem medo. Essa ilusão contudo, não durou muito tempo. Logo vi que você estava intuindo inconscientemente quem eu era e me copiando, sem qualquer traço de identidade própria, que não fosse o desejo imenso de possuir alguma identidade. Por isso foi fácil convencê-lo a provar o canibalismo, lhe ofereci o arquétipo do antropófago, algo sobre o qual você se lançou com uma fúria que me surpreendeu e você respondeu ao tratamento incorporando literalmente as personalidades que te faltam... Você se tornou um reflexo invertido e distorcido do que eu sou. Somos de espécies diferentes: eu sou um canibal de verdade, você é apenas um vampiro.
João Miguel estava horrorizado e boquiaberto. Aquela revelação parecia ter sido mais do que ele era capaz de suportar, pois ele tremia da cabeça aos pés, os punhos estavam fechados e seu tronco meio inclinado na direção de Daniel estava prestes a atacá-lo.
O Dr. Macabro por outro lado continuava sentado tranquilamente. As mãos estavam postas em concha sobre a mesa e ele falava com aquele tom que era mais apropriado a uma criança do que a um adulto.
_Você não está falando sério! – retrucou João com uma risada irônica – Não pode estar... se estiver falando sério significa que eu não gosto do que faço? Que matei e comi aquelas pessoas porque sou influenciável? Que não tenho personalidade? Que me deixei ser usado por você, por não ter identidade própria? Que sou apenas uma cópia? Um sanguessuga?
_Sim.
Alguma coisa pareceu romper dentro da cabeça de JM, pois ele levou as mãos ao rosto e sacudiu seu corpo de uma forma esquisita, como se fosse entrar em convulsão. Um gemido gutural escapou de sua garaganta e quando ele tirou as mãos do rosto, seus olhos estavam esbugalhados, a boca aberta num esgar de ira, as mãos crispadas pareciam apertar um pescoço imaginário.
_Você não sabe o que está dizendo! – ele rugiu - Enquanto esteve preso eu raptei uma mãe com seu bebê de colo, porque queria experimentar fazer queijo com o leite materno. Comi o bebê na forma de um paté de ervas, ela comeu também, sem saber que aquele delicioso paté era seu precioso rebento. O tempo todo ela chorava e gritava pela criança. Cortei-lhe a língua com uma tesoura e continuei ordenhando suas tetas por vários dias consecutivos até ter o bastante para minha experiência. Fiz o queijo e o degustei com geléia de damasco, enquanto ela gemia de desespero. Quando o leite dela começou a secar eu a abati com uma marreta e cozinhei seu corpo besuntado com o que restara do patê. – ele deu uma risada insana - Agora diga-me, se esta experiência não coroa meu estilo? Se ela não é mais diabólica do que qualquer coisa que você já conseguiu conceber na vida? De fato somos diferentes, porque eu não tenho restrições quanto aos métodos. Não tenho piedade, não me desagrado com o sofrimento alheio. Você em meu lugar teria desperdiçado a chance de experimentar o leite abatendo antecipadamente a mãe, para que ela não sofresse imaginando o que foi feito de seu filho... Você é fraco! Fica melindroso diante da brutalidade e da tortura. Eu não contei a ela de que aquele paté era feito, para que ela não entrasse em choque e a adrenalina afetasse sua produção de leite. Neste sentido você tem razão: somos diferentes, porque a minha personalidade, a minha identidade é mais poderosa do que a sua! Eu não sou um covarde como você. Não escondo sentimentos humanos por detrás de uma fachada de frieza, simplesmente porque não tenho sentimentos humanos. Na verdade eu tinha admiração e gratidão por ter me libertado da culpa e me mostrado o caminho que me fez superar o humano. Chamam-no de “Dr. Macabro”, mas de onde estou hoje, olhando para você, me parece uma menininha chorosa. Aquela carne que está ali – ele disse apontando o dedo para mim – é uma presa, jamais poderia vir a ser uma caçadora e se você vê nela qualquer potencial, é porque os anos de prisão realmente cegaram seus instintos e o transformaram numa geléia sentimental. Acho que foi um erro você ter vindo aqui me dizer estas palavras. Eu estava tão empolgado! Tinha certeza de que juntos poderíamos refinar nossos métodos, ir além da imaginação, além de qualquer limite... – JM sacudiu a cabeça e vi quando sua mão direita lentamente foi levada para trás.
Daniel também percebeu o gesto e assim como eu, intuiu o que viria a seguir.
O que se seguiu foi rápido, feroz e mortífero. Daniel praticamente voôu sobre a mesa, num salto extraordinário, que só um homem muito forte e bem treinado seria capaz de dar. Num segundo ele estava sobre JM. Suas mãos agarradas à mão dele que empunhava um revólver. Um tiro foi disparado, mas acertou a parede. Os dois rosnaram um para o outro como cães e no instante seguinte estavam se mordendo mutuamente. Daniel estava em desvantagem por usar uma dentadura, ironicamente presenteada por João Miguel. Este com a mão livre, tentou arrancá-la da boca de seu mestre. Nesta tentativa, acabou perdendo a ponta de um dedo e gritou de dor. O esforço de gritar expôs a parte mais sensível de seu pescoço e as mandíbulas do Dr. Macabro se fecharam sobre ele, arrancando um enorme pedaço de carne.
Instantes depois Daniel se levantou com a posse do revolver. Tinha o rosto ensanguentado. JM caído ao chão, possuía uma laceração no pescoço, na altura da jugular, de onde o sangue de seu corpo minava em golfadas sincronizadas com as últimas batidas de seu coração. O Dr. Macabro mastigava... Deus! Ele mastigava o pedaço de carne que arrancara do pescoço de seu antigo aprendiz! Foi até a mesa de jantar, levantou a cadeira que havia derrubado e serviu-se uma taça de vinho. Vi quando engoliu aquele pedaço, empurrando-o para baixo com um gole da bebida, em seguida pegou um garda-napo e limpou parte do sangue que estava sobre seu rosto e sua boca. Tinha a marca de uma mordida profunda na bochecha, um ferimento que por pouco não lhe custara uma parte do rosto. Ele sorria e sua dentadura estava manchada de vermelho. Seus olhos contudo, não demonstravam satisfação, repugnância, nervosismo, ou qualquer outro sentimento. Era como se ao invés de ter acabado de matar um homem às mordidas, ele tivesse acabado de lixar as unhas, ou de regar uma planta...
_ Acho que isso põe fim a este capítulo dessa história. – ele disse olhando na minha direção.

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