O OUTRO
CONVIDADO
João
ficou me observando por quase uma hora. Todas as vezes que eu tentava
falar ele fazia sinal exigindo silêncio e me ameaçava
com um novo banho de água fria. Jamais pensei que a água
pudesse ser um instrumento de tortura tão assustador, mas
naquele frio, com as roupas molhadas, eu tremia tanto que mal podia
manter a boca fechada, meus dedos das mãos estavam arroxeados
e tomar outro banho daqueles, parecia ser uma sentença de
morte na madrugada que se avizinhava.
Por fim
ele se levantou, apagou as luzes e saiu. Como na noite anterior a
casa mergulhou em silêncio, exceto pelos ruídos
familiares dos pequenos animais e do zum-zum dos carros passando ao
longe, em alguma auto-estrada.
Lentamente
minhas roupas iam secando, roubando-me o calor do corpo, ao mesmo
tempo em que a temperatura ambiente ia despencando. Torci o cobertor
ensopado, até sentir dor nos pulsos e tentei me cobrir com ele
o melhor que pude. A fome agora começava a competir em
igualdade com o frio pelo campeonato do desconforto. A comida
estragada no chão me convidava a experimentar a sensação
de um andarilho esfomeado. Não era isso que eu queria fazer da
vida, caso saísse dali? Por que então não
começar a treinar? Por que não pegar aquele pão
encharcado com respingos de lama e comer?
Ignorei
a comida e a bebida. Se tivesse sorte morreria de frio naquela noite,
se tivesse azar, morreria de fome em uma ou duas semanas, mas não
queria morrer espetada pelo garfo daquele homem!
O sono
finalmente veio e caí num sonho perturbador, povoado de
perseguições, fugas e eternos retornos. Não sei
que horas eram quando as luzes se ascenderam e JM veio, de olhos
arregalados com uma expressão de ansiedade.
_Ele
chegou! Ele chegou! –foi dizendo enquanto corria apressado para a
cozinha.
_Quem
chegou? – perguntei em vão.
Então
ouvi um barulho vindo do outro lado da casa e que parecia ser o de
uma porta sendo bruscamente aberta. Passos soaram pelo assoalho e em
poucos instantes vi surgir a figura conhecida do Dr. Daniel. Não
sei dizer se senti terror ou alívio ao vê-lo ali. Pensei
alucinada que ele talvez tivesse vindo me salvar.
_Donna!
O que está fazendo aqui? – ele perguntou com um risinho de
incredulidade.
_Dr.
Daniel, por favor, me tire daqui! Este homem é maluco, o
senhor tinha razão. Ele matou aquelas pessoas... agora eu sei.
_Onde
ele está?
_Na
cozinha...
_Estou
aqui. – disse JM aparecendo na sala de jantar, com o carrinho de
alimentação abarrotado de comida e bebidas. – Bom
dia Dr. Daniel, há muito que não nos vemos. Por favor
sente-se, preparei um jantar pois esperava-o mais cedo, a refeição
ficou aquecida no forno, podemos cear civilizadamente e conversar
sobre a nossa situação.
Daniel estudou João por um instante, trocou o pé de
apoio e perguntou calmamente: _Você acha que vim até
aqui para conversar?
João deu um sorriso e começou lentamente a aparelhar a
mesa: _ Desde que fugiu da prisão eu sabia que você
viria até mim. Há muito tempo eu esperava por esse
momento. Sei porque está aqui e tudo o que eu lhe peço
por hora, é que ceie comigo e me escute um pouco.
_Eu vim
aqui matar você. – disse Daniel – Espera que eu seja
civilizado?
_Eu sei
porque veio, mas se me ouvir, talvez mude de idéia... – JM
não tinha agora qualquer traço da ansiedade de minutos
atrás. Calmamente ele aparelhou as duas cabeceiras da grande
mesa com pratos, talheres e taças para duas pessoas. Puxou uma
cadeira e ofereceu-a ao Dr. Daniel.
Da minha
“jaula” eu torcia para que Daniel pulasse sobre ele e o
esganasse. Surpreendentemente o médico aceitou a oferta e se
sentou diante do prato.
JM
serviu então um talharim ao molho de trufas e se desculpou por
pular a entrada de saladas:
_Imagino
que deve estar esfomeado e que dispense a salada para ir direto a
algo mais consistente. Estas trufas são importadas da França,
como sei que prefere... A pasta foi feita por mim mesmo. Em seguida
servirei medalhões de filé mignon ao molho de amendoas
e pistache, um bom purê de mandioca com queijo coalho da
Canastra gratinado e um risoto de mariscos Portugueses, uma iguaria
raríssima! – disse ele com indisfarçado orgulho -
Deve estar adequado ao seu gosto, depois de tantos anos comendo
marmita azeda de presídio... – João deu um sorriso de
escárnio enquanto Daniel fazia uma careta – Desculpe –
emendou – não deveria debochar da sua situação
de presidiário, mas ambos sabemos como e porque você foi
parar lá...
Daniel
encarou o prato e esperou que João levasse o primeiro bocado à
boca.
_ Você
evoluiu bastante como cozinheiro desde nosso último encontro.
– Daniel comentou olhando para a comida.
JM deu
um sorriso enquanto engolia o bocado com um pouco de vinho.
_Ah!
Sim, evoluí muito, mas jamais serei como você. Não
tenho o dom. Pude ir até onde as aulas de culinária me
levaram, mas falta-me aquele toque inato que só você
tem. Jamais conseguirei superá-lo na cozinha caro amigo.
_Amigo?
– Daniel perguntou enquanto levava à boca uma garfada do
talharim. Ele saboreou a comida e chegou mesmo a revirar os olhos de
contentamento – Acho que está enganado... – disse por fim
– Você me superou. – e ofereceu um brinde ligeiro a JM.
João
Miguel encostou-se na cadeira, com uma expressão de satisfação
no rosto:
_Esperava
que reconhecesse isso.
_Oh!
Sim! Reconheço que fez um excelente trabalho. Fiquei preso por
doze anos. O que fez durante este tempo?
João
Miguel engoliu mais uma garfada e bebericou seu vinho antes de
responder:
_Tive de
colocar em prática as suas recomendações...
_Você
se controlou então...
_O
suficiente para manter a polícia longe dos meus calcanhares.
Os dois
homens se estudaram mutuamente. De onde eu estava podia ver toda a
cena com detalhes e senti uma tensão entre eles que poderia
culminar, a qualquer momento, num esfusiante abraço de
reencontro, ou num ataque feroz. Torci desesperadamente por esta
última opção e pela vitória do Dr.
Daniel. Ele era minha última esperança de salvação.
Não que acreditasse ter ele algum bom motivo para me salvar,
mas imaginei que os motivos que deveria ter para vir até esse
lugar, superariam qualquer mágoa que pudesse sentir por mim.
_Diga-me
Dr. Daniel, esta prótese lhe serviu adequadamente?
Daniel
sorriu mostrando os dentes postiços: _Foi você quem a
mandou para mim?
_Gostou
do meu presente? Era o mínimo que eu poderia fazer por você
depois que aquele advogadozinho de porta de cadeia falhou em
defendê-lo...
_Ah! Mas
não foi só isso que você fez não é?
JM deu
um sorriso enigmático em seguida puxou mais uma garfada do
talharim.
_Compreenda,
Dr. Daniel, que eu não tive escolha. Quando descobri que
andava conversando com o investigador do caso dos desaparecimentos,
percebi que era uma questão de tempo até que você
me entregasse para a polícia. Eu estava descontrolado, como
você bem sabe. Não consegui suportar a idéia de
ser preso e condenado a passar o resto de meus dias numa cela. Não
pude aceitar este fato e tive a louca idéia de invadir sua
casa e plantar as provas ali... as chances de sucesso era mínimas,
mas armação deu certo, você foi preso, eu não.
Contudo, não posso deixar de lhe dizer que me arrependi
imensamente. Não devia ter feito isso, pois devo muito a você.
Devo tudo a você!
_Deve. –
Daniel respondeu secamente.
O
relógio badalou três horas da manhã e o som
pareceu distrair momentaneamente aqueles homens. Eu já não
sentia mais frio, estava tomada por ansiedade e podia perceber que a
paciência do Dr. Daniel estava por um fio. Acompanhava o
diálogo na espectativa de que a qualquer momento aqueles dois
homens se engalfinhassem numa luta até a morte e na minha
contabilidade, havia uma única chance de salvação.
_E o que
te faz pensar que eu o perdoaria? – Daniel perguntou naquele
familiar tom de escárnio.
JM
limpou os lábios com um guarda-napo de pano que tinha suas
iniciais bordadas em azul.
_Peço
que tenha um pouco mais de paciência. Vou servir a carne e
depois a sobremesa. Um sorbet de flor de laranjeira com massa de
filó.
O
segundo prato foi servido, parecia delicioso, mas de onde eu estava,
só podia torcer para que aqueles pedaços de filé
alto e mal passados engasgassem João Miguel.
Ambos os
homens comeram em silêncio, observando-se mutuamente a cada
gesto.
JM
terminou sua porção e foi até a cozinha com a
desculpa de trazer o sorvete. Daniel olhou para mim.
_Você
está molhada. – ele constatou a obviedade do fato.
_Ele me
deu um jato de água fria porque eu estava gritando por
socorro. Por favor Dr. Daniel, me tire daqui enquanto ele está
na cozinha. Vamos fugir. Esse homem é louco...- minhas
palavras foram interrompidas com um gesto brusco do médico
sinalizando silêncio. Em seguida JM apareceu trazendo uma
vasilha contendo o sorvete e um prato com vários discos de
massa de filó.
_O que
ela está fazendo aqui? – Daniel perguntou.
_É
minha convidada. Pensei que fosse gostar. – ele respondeu enquanto
servia a sobremesa – Soube que ela andou te visitando na cadeia,
entrevistando você a pretexto de escrever um livro...
_Soube?
_Sim...
eu me mudei para Franco da Rocha pouco tempo depois que você
foi transferido para lá. Queria estar perto, acompanhar seu
caso e ajudá-lo se fosse possível, mas nunca tive
coragem de visitá-lo no presídio. Você me
conhece, sabe que tenho minhas fraquezas... diga-me, como conseguiu
fugir?
Daniel
esperou que João provasse o sorvete e só então
experimentou uma pequena porção. Torceu o nariz,
visivelmente insatisfeito e comentou que a flor de laranjeira tinha
sido usada em demasia. João Miguel ouviu-o de olhos
arregalados, sorriu constrangido, limpou a boca com o guarda-napo e
empurrou o prato com os restos de sorvete para o lado.
_No
mais, foi um excelente jantar. – Daniel completou – Uma mistura
um tanto incomum de filé e mariscos Percebis, mas muito
agradável! A massa de filó estava perfeitamente
crocante e o filét no ponto ideal. – Daniel beijou as pontas
dos dedos num gesto tipicamente italiano. JM respondeu aos
cumprimentos com um gesto de cabeça, como se tivesse acabado
de apresentar um concerto musical. Ambos sorriram um para o outro e
naquele momento pareceram velhos amigos comemorando o reencontro. _
Respondendo à sua pergunta sobre como fugi da cadeia, -
continuou Daniel - não foi tão difícil.
Aproveitei a visita de uma amiga para simular um envenenamento. –ele
olhou rapidamente na minha direção - Ela me deixou um
pedaço de bolo, que comi depois que partiu. Esperei um tempo e
me forcei a vomitar, depois fingi que caí da cama enquanto
dormia e fiquei inerte no chão, vomitado, mijado e
aparentemente inconsciente, como se estivesse sofrendo uma
overdose... demorou quase vinte e quatro horas até que aqueles
animais viessem ver o que estava acontecendo, quando entraram na cela
eu os ataquei. Esta foi a parte mais difícil porque apesar de
eu ter treinado meu corpo dia após dia durante esses doze
anos, tive que sair de uma posição de inércia,
na qual estava há quase vinte e quatro horas, para assaltá-los
sem lhes dar chance para fuga: ataquei os três homens. O
primeiro com uma mordida mortífera na jugular, ao mesmo tempo
em que lhe roubava a arma de choque. O segundo derrubei com um golpe
forte e certeiro na cabeça. O terceiro foi dominado por um
choque elétrico da arma que eu tinha roubado. Tudo isso em
exatos três segundos, contados! – o Dr. sorriu visivelmente
orgulhoso de si mesmo - Depois disso roubei-lhes as armas, a munição,
as chaves e saí. Matei mais cinco deles no caminho, sequestrei
a Dr. Elza e a fiz dirigir até São Paulo, onde eu a
deixei trancada no porta malas do carro, devidamente morta, é
claro. Em São Paulo me escondi num motel de quinta categoria,
me perguntando se você ainda estaria no seu velho endereço
e pensando numa vingança à altura de sua traição.
JM deu uma olhada rápida na minha direção:
_Quando soube que você tinha fugido, decidi voltar para cá
e esperá-lo. – ele disse - Sei que jamais conseguirei
compensá-lo pelo tempo em que passou na cadeia. Sei que seu
desejo é vigar-se de mim da maneira mais cruel que puder
conceber, mas se fizer isso, para onde irá depois? Será
obrigado a fugir do país, sem dinheiro, sem rumo, passando as
piores necessidades. Será obrigado a roubar e a matar se
quiser sobreviver e isso irá atrair a atenção
das autoridades, que lhe caçarão até o fim dos
tempos... você sabe que sou rico, tenho muito dinheiro e muitos
bens. Pessoas do meu nível conseguem comprar a privacidade.
Tenho uma mansão numa ilha particular em Angra dos Reis, onde
você poderá viver com todo conforto, toda privacidade,
boas roupas, excelente comida, todos os livros que desejar, aparelhos
de ginástica, cozinha equipada, bons ingredientes e segurança.
Posso comprar documentos falsos para você, posso pagar uma
cirurgia plástica para mudar um pouco sua aparência e
então poderemos viajar quando quiser, para onde quiser.
JM
debruçou-se sobre a mesa, olhando fixamente para Daniel: _Você
entende que eu também poderia matá-lo? Sabia que viria
atrás de mim e que não se demoraria. Poderia ter
chamado a polícia, poderia pô-lo de volta na cadeia,
poderia até ter envenenado essa comida! – ele riu – Mas
não quero isso. Já disse que devo tudo a você e
que me arrependi do que fiz. O que estou lhe propondo é uma
segurança que jamais terá. Ninguém suspeita que
esteja aqui, ninguém virá procurá-lo. Se me
matar, continuará sendo apenas um foragido sem eira nem beira.
O que estou lhe propondo é estabilidade e segurança.
Coloco minha fortuna à sua disposição...
_E o que
irá querer em troca disso? – perguntou Daniel encostando-se
na cadeira.
Meu
Deus! Ele está negociando a proposta! Eu pensei enquanto minha
última chance de salvação evaporava.
JM
pareceu ofender-se com a pergunta: _Nada! Apenas a garantia de que
não irá me matar... estou fazendo isso para tentar
compensar um pouco do mal que lhe causei. Tenho um helicóptero
pronto a decolar para Angra dos Reis, tenho roupas novas feitas na
sua medida, a geladeira da casa está cheia das iguarias mais
apetitosas: caviar beluga, trufas, cogumelos rosas, carnes bovina,
suína, de cordeiro e cabrito, vinhos, champagne, wisky, além
do conforto de uma bela piscina, sauna, jacuzzi, um lindo jardim e
privacidade, o que é mais importante. Terá também
a companhia desta mulher, se desejar, ou qualquer outra...
_Eu
serei então seu prisioneiro...
_Não!
De forma alguma! – JM sacudiu a cabeça – Vai levar um bom
tempo até que as autoridades se esqueçam de você.
Neste período precisarei da sua cooperação, você
não poderá ficar zanzando por aí em liberdade,
pois sua foto está em todos os jornais... Com alguns anos,
dois, ou três, conseguirei documentos falsos para você e
poderá ir viver onde quiser. Posso lhe arranjar uma renda
própria e seremos apenas amigos. Agora que fugiu, eu só
quero poder protegê-lo...
_Não
entendo... você se esforçou tanto para me destruir e
agora quer me salvar?
_Eu não
queria destruir você! Fiz o que fiz para escapar da prisão,
você me traiu primeiro! Foi você quem convidou o
investigador para jantar e lhe contou a meu respeito...
_Eu não disse nada a ele. Pretendia estudá-lo...
_Mas não foi isso o que eu pensei na época... achei que
você pretendia me entregar! Eu estava descontrolado e acabaria
sendo pego mais cedo ou mais tarde, e justamente por causa desse
descontrole, entrei em pânico naquele momento e resolvi tomar
esta atitude. – JM levou as mãos ao rosto – Mas depois que
você foi preso, minha vida perdeu um pouco o sentido. Nada mais
parecia me satisfazer, nem mesmo as experiências... Descobri
que era mais feliz quando podia contar com sua terapia... sei que me
odeia e que talvez nós nunca mais possamos ser amigos
novamente, mas pense na minha proposta! Você não
precisará fugir nunca mais, não precisará
trabalhar, terá todo conforto e eu lhe darei tudo o que
desejar. Tudo! Qualquer coisa! – JM apontou seu dedo para mim –
Por isso eu a trouxe, para provar que estou falando a verdade, que
posso conseguir tudo o que você desejar.
_Não.
– Daniel disse com secura – Você a trouxe aqui como um
trunfo, para que a polícia pense que fui eu que a raptei.
Novamente você está tentando me incriminar e espera com
isso que eu, sem saída, aceite sua proposta.
João
Miguel ficou boquiaberto e sacudiu freneticamente a cabeça:
_Não
foi essa a minha intenção! Eu só quero
agradá-lo. Ela é um presente meu para você, é
sua para fazer o que quiser.
Ambos
olharam para mim. Do que eles estavam falando? O que escapava à
minha percepção? Minhas parcas esperanças iam se
esgotando tanto quanto o calor de meu corpo e eu tremia de medo e de
frio.
Daniel
me observou por um minuto e depois encarou João Miguel.
_Não
sei como lhe dizer isso de maneira branda JM, mas nunca fui seu
amigo. Você era meu paciente e sempre mantive uma distinção
entre ambas as coisas. Você me contou sobre seus anseios e eu
lhe encorajei a experimentar suas vontades, para que pudesse superar
seus temores e reencontrar um sentido na vida. Você compreendeu
mal minhas palavras e se descontrolou. Tornou-se um assassino em
fúria, cuja fome de sangue não podia ser saciada. Não
acredito que ir viver com você seja algo que possa compensar os
anos que passei na cadeia em seu lugar...
_Não
iremos viver juntos! A casa em Angra é sua! Leve a moça
se quiser, tenho uma sala especial no subsolo da casa, à prova
de som e com diversos aparelhos para diversão. Use-a! Tenho
outras residências e só irei visitá-lo quando me
quiser para alguma tarefa. Serei seu escravo submisso... – e para
reforçar aquelas palavras, JM ajoelhou-se diante de Daniel,
cabisbaixo. – Deixe-me compensá-lo, mestre. Deixe-me tentar.
Use-me, como quiser...
_Se eu
usá-lo como quero, não sobrará muito de você
para manter essas promessas.
JM
ergeu-se do chão e tornou a sentar-se à cabeceira da
mesa parecendo resignado:
_Mas o que
acha da proposta? Tem algo a acrescentar? Quer alguma garantia? O que
você quer? Me matar? Só isso? E depois continuar
fugindo, na miséria, sem rumo, arriscando-se a ser pego, sem
conseguir dormir tranquilamente? Eu posso devolver a sua vida e de
forma melhorada, ainda mais confortável do que aquela que
tinha antes de ser preso. Não quero nada em troca, além
da minha própria vida e se possível, o seu perdão,
um dia, talvez... o que pode ser melhor do que isso? Liberdade,
dinheiro, diversão, conforto, privacidade e um leal e devotado
servo, para lhe proporcionar tudo isso e o que mais você
desejar! Posso conseguir mulheres para você, já que as
prefere... posso pagar uma cirurgia plástica, mudar seu rosto,
posso conseguir documentos falsos, um diploma falso e você
poderá inclusive voltar a clinicar se quiser...
Daniel
ergueu uma mão: _Já compreendi a sua oferta, não
precisa ficar repetitivo. Realmente é uma excelente oferta.
Muito melhor do que a oferta de uma vingança que redundará
em uma eterna fuga da justiça.
_Então
você aceita? – ele perguntou com os olhos brilhantes.
_Posso
ter sido imprudente, mas jamais fui estúpido. Por que não
aceitaria?
JM deu
um enorme sorriso, alegre como um cachorrinho eu pensei, faltando
apenas um rabo para sacudir de contentamento.
Ele deu
palmas à decisão do Dr. Daniel e imediatamente começou
a fazer planos:
_O
helicóptero está no heliporto de Guarulhos... sei o que
está pensando, que é arriscado demais você ir até
um lugar cheio de câmeras, mas não se preocupe, meu
carro tem vidros escurecidos e autorização para
estacionar na pista. Ninguém o verá com suspeitas, ou
desconfianças, você é um foragido da justiça,
ninguém o irá procurar num heliporto... se quiser levar
a moça viva, sugiro que faça como eu e a coloque dentro
da mala, anestesiada por um sedativo. Não é bom que
pessoas a vejam embarcar. Alguém mais tarde pode estranhar o
fato dela nunca ter voltado da ilha. Ela não é magra,
mas ninguém irá questionar porque a mala é tão
pesada. Estes pilotos estão acostumados a clientes
excêntricos... – JM olhou na minha direção e
lambeu o beiços – Podemos prepará-la antes de partir.
– ele sugeriu insinuante - Eu não tenho pressa e ninguém
suspeita que estejamos aqui.
Daniel
também olhou na minha direção:
_Foi por
isso que a trouxe, não foi? Você está faminto
novamente...
JM
sorriu: _Há muito tempo não faço uma refeição
decente. Desde que você foi preso eu tenho evitado caçar.
De lá para cá, cacei apenas duas vezes. Não
queria que a polícia percebesse o engano, mas também
não via muita graça em caçar sem a sua
orientação.
Caçar?
Orientação? Eu gritei em desespero conforme ia me dando
conta de que a prisão de Daniel não havia sido um
completo engano. Aqueles dois não eram rivais! Eles eram
parceiros e pretendiam me preparar como prato principal, exótico,
de uma refeição gourmet!
JM
saboreou meu desespero: _Ela é bastante quieta no geral. Hoje
deu uns gritos, mas eu a acalmei com um jato d’água. Quer
outro banho? – ele me perguntou diretamente.
_Acho
que o jato d’água não vai resolver o problema agora.
– sugeriu Daniel.
_Podemos
abatê-la já! Tenho tudo o que é preciso aqui, uma
cozinha equipada com serras, facas elétricas, moedor e
embalador... se preferir podemos prepará-la e deixá-la
prontinha para ser feita na casa de Angra. Que tal um churrasco? Sei
que não é o tipo de preparo que você prefere, mas
acho que seria perfeito para aquele ambiente e para a nossa
comemoração! Podemos prepará-la hoje, deixar a
carne marinando no tempero e partiríamos para Angra amanhã
bem cedo. A previsão do tempo indica temperaturas amenas e Sol
o dia todo... a piscina é aquecida, podemos tomar banho,
comer, beber e colocar a conversa em dia. Tenho tantas coisas para te
contar! Você sabia que minha mãe morreu?
Daniel
torceu o nariz e sacudiu a cabeça.
_Pois é! Morreu
há cinco anos, pobrezinha. Teve um derrame cerebral fatal. Eu
tirei alguns pedaços dela antes de abrir o velório para
visitação e posso dizer que a jantei naquela noite. –
JM deu uma gargalhada histérica – A melhor refeição
profunda que já fiz! Senti como se tivesse finalmente dado uma
resposta adequada aos anos de dominação dela e de
quebra descobri que carne velha não é tão
saborosa... – ele riu novamente e sacudiu a cabeça – Você
teria ficado orgulhoso se me visse naqueles dias. Foi a melhor
terapia. Nunca me senti tão seguro e confiante... mas deixemos
esse assunto de lado por um momento. Estou falando demais, não
estou?
Daniel
balançou a cabeça. Tinha um sorriso estranho no rosto e
o olhar meio perdido, como que imerso em recordações.
Apesar
da auto-advertência João continuou a falar: _É
que estou tão empolgado! Você veio aqui me matar, eu
estava preparado para revidar, tenho até um revólver
carregado, mas eu tinha certeza de que você ouviria a voz da
razão. Sei que ainda deve estar com raiva de mim, mas em
alguns dias isso irá passar. Quando você vir minha casa
em Angra, quando vir as coisas lindas que comprei para você, os
livros, os discos, as roupas, as obras de arte... irá
compreender finalmente que seus doze anos na prisão acabaram
valendo a pena.
Algo na
expressão de Daniel me incomodou mais do que toda aquela
conversa até aquele momento. Ao invés de sua frieza
característica, percebi que ele se esforçava para
manter a aparência de calma e tranquilidade. Alguma coisa
agitava-se sob sua pele, talvez ele ainda não estivesse muito
seguro de sua decisão, ou talvez estivesse apenas pensando na
melhor forma de me preparar para o jantar.
Eu
chorava e batia as mãos impotentes no vidro. Cheguei a dar
alguns chutes e gritar novamente, mas o vidro não era como as
muralhas de Jericó e Deus parecia ter me abandonado nas mãos
do Macabro e de seu escravo aprendiz.
Meu
comportamento irritou JM novamente, que se levantou tirando uma chave
do bolso, provavelmente para abrir a porta do jardim de inverno e me
“abater”. Daniel segurou-lhe o braço e este toque, embora
leve, disparou um sobressalto no outro.
Percebi
que JM ainda não se sentia completamente seguro diante da
presença do seu mentor. Havia desconfiança entre eles e
pensei que as coisas talvez não estivessem ainda tão
definidas.
_Espere.
– Daniel disse e tenho certeza de que o choque que seu toque
provocou em JM não lhe passou despercebido – Não
quero abatê-la. Ainda não. – ele completou.
Eu
choraminguei palavras que procuravam apelar para qualquer sentimento
humano, mas aqueles dois não eram humanos, não estavam
nem um pouco comovidos com a minha situação e me
observavam de suas cadeiras, como donos de gado observam seus animais
no pasto.
_Ela
está me perturbando com essas lamentações. –
disse JM.
_E o que
você esperava? Estamos aqui planejando qual a melhor forma de
prepará-la para uma refeição, ela está
presa ali, vendo e ouvindo tudo... está sentindo na pele o que
eu senti enquanto estava naquela cela. Está experimentando o
papel de objeto de desejo de dois sádicos. Deve estar
extraindo um material bruto e intenso para seu próximo livro,
não é?
Não
respondi. A idéia de escrever um livro me pareceu distante e
nublada. Poderia jurar que não era escritora, que não
era nada, além de uma criança assustada querendo sair e
começar a viver. A louca idéia de virar andarilha
voltou à minha mente. Um passo diante do outro, para sempre,
para longe dali...
JM
observou seu mentor por um instante antes de perguntar:
_Você
quer torturá-la? – a pergunta soou quase como uma exclamação
de surpresa.
_Não
exatamente. Quero deixá-la ali por mais um tempo. Quero ver
como ela reagirá quando eu lhe fizer uma proposta.
_Que
proposta?
Daniel
sorriu, os dentes caninos de sua dentadura ficaram mais evidentes
naquela luz branca da sala de jantar: _É cedo ainda para
tratar deste assunto...
JM
cerrou as sobrancelhas: _Mas precisamos decidir logo o que fazer...
_Você
disse que tinha tempo.
_E
tenho... é só que não vejo muito propósito
em ficarmos aqui, quando poderíamos ir para Angra... o que há
de errado na idéia de um churrasco? A mim parece perfeita e
não gosto de ficar ouvindo lamentações...
_Podemos
aproveitar o tempo para colocar o assunto em dia. Até agora
você não me disse exatamente o que ficou fazendo nestes
anos...
_Bem...
eu comprei uma casa e alguns negócios em Franco da Rocha e
passei a viver lá. Tenho um restaurante na cidade e recebo
frequentemente os médicos do hospital, que me contam histórias
sobre os pacientes. Finjo que estou interessado em ouvir essas
histórias e sempre acabo sabendo alguma coisa a seu respeito,
foi assim que descobri que havia fugido. Sabe, eu não consegui
suportar a idéia de ficar tão distante. Eu quis te
visitar, soube que você precisava de um advogado, mas tive medo
de te prestar esta ajuda, porque você iria basear sua defesa me
acusando daqueles crimes, então esperei pelo dia em que você
conseguiria uma chance para fugir, jamais duvidei que conseguiria.
_Você
é ardiloso, JM. Pensa que eu não percebo a verdade por
detrás de suas palavras? Sei que você ficou me vigiando
não porque não suportasse ficar tão distante de
mim, mas porque tinha medo de que eu fugisse sem que você
ficasse sabendo, sem que estivesse preparado para me receber. Você
planejou tudo muito bem, voltou para seu antigo endereço e
trouxe até esta mulher como garantia de que teria uma
cobertura caso as coisas não saíssem conforme o seu
desejo.
_Eu a
trouxe porque pensei que a desejasse. Se não a deseja pode
matá-la se quiser.
Daniel
maneou a cabeça: _Não acho que tenho escolha agora...
_Por
favor! Não me matem, não me matem! – eu gritei,
sentindo as pernas fraquejarem. Caí no chão abandonada
aos prantos, mas de algum modo meus ouvidos atentos captaram uma nota
de desaprovação na voz de Daniel.
_Meu
interesse por ela era meramente profissional, por assim dizer...
Houve
uma pausa e percebi que ambos me estudavam: _Você quer dizer
que acha que ela tem potencial? – perguntou o aprendiz.
Daniel
deu de ombros: _Ela não é como você. – ele
disse – Acho que é mais parecida comigo, mas agora não
poderei saber. Não poderei estudá-la, ou observá-la
sem interferência. Ela já está comprometida a
aceitar qualquer proposta que fizermos, porque está com medo
de morrer. O ideal teria sido uma aproximação natural,
sem pressões pela sobrevivência e só então
eu saberia com certeza se ela tem ou não potencial.
Do que
aqueles dois estavam falando? A curiosidade me obrigou a controlar o
pânico e atentei para aquele diálogo insano, esperando
uma brecha, qualquer coisa por onde eu pudesse barganhar pela minha
vida. Até aquela jaula me parecia mais confortável
agora, diante da opção de ir para a grelha de uma
churrasqueira...
JM
sacudiu a cabeça: _Ela não tem potencial nenhum. É
fraca e pouco inteligente, como pode dizer que ela se parece com
você?
_Ela não
teve boa educação, isso é diferente de ser ou
não inteligente. Ela só não foi instruída...
quanto a ser mais parecida comigo, bem, isso é uma questão
mais delicada, que nunca discutimos, você e eu. Ela é
curiosa e imaginativa. Acredito que em condições
normais estaria susceptível às novas experiências,
seria um bom desafio convencê-la e durante alguns dias pensei
ser possível conseguir mudar sua perspectiva de vida, mas
agora, presa como está, não acho que ela irá
colaborar por espontânea vontade. Você devia ter pensado
nisso, devia ter me consultado antes de raptá-la. Ela seria
muito mais interessante para mim se viesse até nós por
vontade própria. Poderíamos ter montado uma estratégia
de aproximação através de você, a quem ela
ainda não conhecia e então eu a teria como nova
aprendiz...
Jamais!
Eu pensei e sacudi a cabeça reafirmando as palavras que não
haviam saído da minha boca.
João
Miguel observou-me parecendo frustrado e olhou de novo para seu
mestre, com uma expressão de visível desagrado.
_Não
pensei que fosse esse o seu interesse. De qualquer maneira, você
não precisa de um novo aprendiz. Estou disposto a retomar o
tratamento e seguir com o nosso antigo acordo. Na verdade acho que o
arranjo está perfeito. A polícia nem irá
desconfiar, vai continuar te procurando, achando que você é
o responsável e isso me dará liberdade para caçar
por nós dois. – ele deu um sorriso e esfregou as mãos
como se mal pudesse esperar pelo momento.
Daniel
sacudiu a cabeça: _Você não precisa mais de
tratamento, ou terapia. Você não é mais um
aprendiz. Já me superou no jogo, me mandou para a cadeia
quando eu menos esperava. Está pronto para seguir seu caminho
sem a minha orientação.
_Mas eu
quero a sua orientação! Já disse que a vida
perdeu um pouco o sentido depois que você foi preso. Perdi o
tesão para caçar. Com você por perto essa
atividade é muito mais interessante. Nós podemos
retomar no ponto onde paramos...
_Não
há como as coisas serem como antes. Eu já não o
vejo da mesma forma. Você tem objetivos diferentes dos meus...
_Você
está me dizendo que parou? – João Miguel estava tão
decepcionado que pensei que fosse desabar em lágrimas.
_Sim.
Meus interesses mudaram ao longo desses anos. Continuo minha busca,
mas minhas prioridades hoje em dia são diferentes.
Interessa-me mais encontrar alguém com quem compartilhar minha
experiência de caça, do que continuar caçando...
_Você
pode compartilhar tudo comigo! Não estou entendendo... pensei
que tínhamos um acordo!
_Você
me ofereceu asilo e segurança. Isso não significa que
eu esteja interessado em retomar nossa parceria. Como eu disse, você
é diferente de mim, tem outros objetivos e estes já não
me interessam mais como antigamente.
JM
levantou-se da cadeira subitamente. Seu rosto estava ficando
vermelho, mas ele procurou conter a raiva, demonstrando apenas um
nervosismo perigoso e ameaçador:
_Pare de
falar que somos diferentes! Não somos! Você me
introduziu nisso, porque viu em mim a sua alma gêmea. Sei que
nunca irá admitir completamente o que sente por mim, mas tudo
bem... isso não me incomoda. O que me incomoda profundamente é
essa sua nova postura, como se seus interesses fossem superiores aos
meus. É óbvio que você ainda não admitiu
ter sido superado e está mudando as regras do jogo porque quer
retomar sua posição de mestre. – João tomou
fôlego e procurou se acalmar – Tudo bem mestre! Você
quer mudar as regras, por mim está ótimo! O jogo agora
é encontrar um novo aprendiz, alguém que possa realizar
as caçadas para nós? Já temos uma candidata,
talvez ela ainda sirva... se não servir, posso encontrar outra
pessoa, ou você julga que eu não tenho o dom para
reconhecer meus semelhantes?
Daniel
sacudiu a cabeça novamente e eu já não estava
compreendendo mais nada daquela conversa.
_Você
não entendeu o que eu disse... gostaria de ter um novo
aprendiz porque não compartilhamos mais os mesmos interesses e
objetivos. De certa forma a culpa disso é sua, por jamais
compreender exatamente o que eu sou e o que você é! –
Daniel explicou diminuindo o tom de voz conforme ia falando - Não
somos iguais, sequer somos semelhantes. O que nos liga é
apenas a experiência canibalesca e o assassinato, mas os
motivos que o levaram a isso, são completamente diferentes dos
meus, para não dizer opostos. Desde que nos conhecemos você
tem se esforçado para se parecer comigo, no seu modo de falar,
vestir, andar, se comportar... antes de mim você se esforçava
para parecer com sua mãe! Se na sua vida surgisse uma nova
pessoa, de personalidade forte, carisma e liderança e que ao
invés de matar e comer, preferisse estuprar e torturar, você
se esforçaria para se parecer com ela e assim por diante. Você
sofre do que eu chamo de “síndrome do espelho”, uma
dissociação de personalidade tão rara que
precisei inventar um termo para classificá-la. Sua
personalidade é tão dissociada, que de fato não
há personalidade alguma! Jamais te falei isso, porque naquela
época em que era meu paciente, você me servia bem como
batedor, como soldado de infantaria na linha de frente, mas eu jamais
te vi como um semelhante. Talvez eu tenha tido essa ilusão no
princípio, bem lá no princípio, quando você
confessou pela primeira vez que sonhava em poder matar alguém,
só pelo prazer e curiosidade de sentir-se forte, seguro e sem
medo. Essa ilusão contudo, não durou muito tempo. Logo
vi que você estava intuindo inconscientemente quem eu era e me
copiando, sem qualquer traço de identidade própria, que
não fosse o desejo imenso de possuir alguma identidade. Por
isso foi fácil convencê-lo a provar o canibalismo, lhe
ofereci o arquétipo do antropófago, algo sobre o qual
você se lançou com uma fúria que me surpreendeu e
você respondeu ao tratamento incorporando literalmente as
personalidades que te faltam... Você se tornou um reflexo
invertido e distorcido do que eu sou. Somos de espécies
diferentes: eu sou um canibal de verdade, você é apenas
um vampiro.
João
Miguel estava horrorizado e boquiaberto. Aquela revelação
parecia ter sido mais do que ele era capaz de suportar, pois ele
tremia da cabeça aos pés, os punhos estavam fechados e
seu tronco meio inclinado na direção de Daniel estava
prestes a atacá-lo.
O Dr.
Macabro por outro lado continuava sentado tranquilamente. As mãos
estavam postas em concha sobre a mesa e ele falava com aquele tom que
era mais apropriado a uma criança do que a um adulto.
_Você
não está falando sério! – retrucou João
com uma risada irônica – Não pode estar... se estiver
falando sério significa que eu não gosto do que faço?
Que matei e comi aquelas pessoas porque sou influenciável? Que
não tenho personalidade? Que me deixei ser usado por você,
por não ter identidade própria? Que sou apenas uma
cópia? Um sanguessuga?
_Sim.
Alguma
coisa pareceu romper dentro da cabeça de JM, pois ele levou as
mãos ao rosto e sacudiu seu corpo de uma forma esquisita, como
se fosse entrar em convulsão. Um gemido gutural escapou de sua
garaganta e quando ele tirou as mãos do rosto, seus olhos
estavam esbugalhados, a boca aberta num esgar de ira, as mãos
crispadas pareciam apertar um pescoço imaginário.
_Você
não sabe o que está dizendo! – ele rugiu - Enquanto
esteve preso eu raptei uma mãe com seu bebê de colo,
porque queria experimentar fazer queijo com o leite materno. Comi o
bebê na forma de um paté de ervas, ela comeu também,
sem saber que aquele delicioso paté era seu precioso rebento.
O tempo todo ela chorava e gritava pela criança. Cortei-lhe a
língua com uma tesoura e continuei ordenhando suas tetas por
vários dias consecutivos até ter o bastante para minha
experiência. Fiz o queijo e o degustei com geléia de
damasco, enquanto ela gemia de desespero. Quando o leite dela começou
a secar eu a abati com uma marreta e cozinhei seu corpo besuntado com
o que restara do patê. – ele deu uma risada insana - Agora
diga-me, se esta experiência não coroa meu estilo? Se
ela não é mais diabólica do que qualquer coisa
que você já conseguiu conceber na vida? De fato somos
diferentes, porque eu não tenho restrições
quanto aos métodos. Não tenho piedade, não me
desagrado com o sofrimento alheio. Você em meu lugar teria
desperdiçado a chance de experimentar o leite abatendo
antecipadamente a mãe, para que ela não sofresse
imaginando o que foi feito de seu filho... Você é fraco!
Fica melindroso diante da brutalidade e da tortura. Eu não
contei a ela de que aquele paté era feito, para que ela não
entrasse em choque e a adrenalina afetasse sua produção
de leite. Neste sentido você tem razão: somos
diferentes, porque a minha personalidade, a minha identidade é
mais poderosa do que a sua! Eu não sou um covarde como você.
Não escondo sentimentos humanos por detrás de uma
fachada de frieza, simplesmente porque não tenho sentimentos
humanos. Na verdade eu tinha admiração e gratidão
por ter me libertado da culpa e me mostrado o caminho que me fez
superar o humano. Chamam-no de “Dr. Macabro”, mas de onde estou
hoje, olhando para você, me parece uma menininha chorosa.
Aquela carne que está ali – ele disse apontando o dedo para
mim – é uma presa, jamais poderia vir a ser uma caçadora
e se você vê nela qualquer potencial, é porque os
anos de prisão realmente cegaram seus instintos e o
transformaram numa geléia sentimental. Acho que foi um erro
você ter vindo aqui me dizer estas palavras. Eu estava tão
empolgado! Tinha certeza de que juntos poderíamos refinar
nossos métodos, ir além da imaginação,
além de qualquer limite... – JM sacudiu a cabeça e vi
quando sua mão direita lentamente foi levada para trás.
Daniel
também percebeu o gesto e assim como eu, intuiu o que viria a
seguir.
O que se
seguiu foi rápido, feroz e mortífero. Daniel
praticamente voôu sobre a mesa, num salto extraordinário,
que só um homem muito forte e bem treinado seria capaz de dar.
Num segundo ele estava sobre JM. Suas mãos agarradas à
mão dele que empunhava um revólver. Um tiro foi
disparado, mas acertou a parede. Os dois rosnaram um para o outro
como cães e no instante seguinte estavam se mordendo
mutuamente. Daniel estava em desvantagem por usar uma dentadura,
ironicamente presenteada por João Miguel. Este com a mão
livre, tentou arrancá-la da boca de seu mestre. Nesta
tentativa, acabou perdendo a ponta de um dedo e gritou de dor. O
esforço de gritar expôs a parte mais sensível de
seu pescoço e as mandíbulas do Dr. Macabro se fecharam
sobre ele, arrancando um enorme pedaço de carne.
Instantes
depois Daniel se levantou com a posse do revolver. Tinha o rosto
ensanguentado. JM caído ao chão, possuía uma
laceração no pescoço, na altura da jugular, de
onde o sangue de seu corpo minava em golfadas sincronizadas com as
últimas batidas de seu coração. O Dr. Macabro
mastigava... Deus! Ele mastigava o pedaço de carne que
arrancara do pescoço de seu antigo aprendiz! Foi até a
mesa de jantar, levantou a cadeira que havia derrubado e serviu-se
uma taça de vinho. Vi quando engoliu aquele pedaço,
empurrando-o para baixo com um gole da bebida, em seguida pegou um
garda-napo e limpou parte do sangue que estava sobre seu rosto e sua
boca. Tinha a marca de uma mordida profunda na bochecha, um ferimento
que por pouco não lhe custara uma parte do rosto. Ele sorria e
sua dentadura estava manchada de vermelho. Seus olhos contudo, não
demonstravam satisfação, repugnância, nervosismo,
ou qualquer outro sentimento. Era como se ao invés de ter
acabado de matar um homem às mordidas, ele tivesse acabado de
lixar as unhas, ou de regar uma planta...
_ Acho
que isso põe fim a este capítulo dessa história.
– ele disse olhando na minha direção.
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