Conto: ATÉ O ÚLTIMO PEDAÇO pt.5

TERCEIRA VISITA

Saí daquela conversa com o Dr. Emerson com a promessa de que a diretoria chamaria o pessoal da manutenção para planejar a reforma de uma cela no último andar do prédio dos detentos. Isso me daria algum poder de barganha com o Dr. Daniel.
Encontrei-o arrumado. A cela estava limpa e organizada, mas os papéis ainda estavam escondidos das minhas vistas.
_Bom dia Donna! - disse ele e confesso que foi impossível vê-lo da mesma forma que nas duas visitas anteriores. De repente o humano à minha frente, não era mais um humano e senti um desprezo imenso por aquele cinismo com o qual ele tentava me convencer de sua inocência.
Não respondi ao cumprimento, simplesmente sentei na cadeira e o observei em silêncio.
Daniel sorriu: _Hoje vamos jogar o jogo do silêncio. - ele disse – Eu tinha a rotina de me exercitar pela manhã. Mudei isso nas últimas três manhãs por conta de suas visitas, se vamos jogar o jogo do silêncio, peço licença para seguir com minha rotina de sempre.
Daniel esperou minha resposta. Eu queria dizer a ele que não tinha palavras...
Estava ali em busca de um perfil de assassino que pudesse ser usado em meu próximo livro. Rodrigo tinha razão, pois nenhum assassino podia ter sido mais cruel e repugnante quanto aquele homem e nenhum perfil poderia ser mais atraente para minhas ambições literárias. Só por esse motivo eu estava ali, do contrário já teria fugido.
Daniel tirou a camisa e o macacão, ficando somente de cuecas exibindo seu corpo definido. Deitou-se sobre uma toalha estendida no chão e começou a fazer abdominais, rápidas, cheias de força, uma atrás da outra, interminavelmente e quase sem ofegar. Tinha de admitir que ele estava em uma forma física excepcional. Observei-o por mais de meia hora, quando ele finalmente parou de se movimentar. Depois de descansar e se refrescar na pia, sentou-se na cadeira diante do vidro que nos separava e perguntou:
_Vai continuar em silêncio por todo o dia? Dá pra ver que você teve notícias desagradáveis e agora está repensando toda sua vida. Às vezes compartilhar o que nos aflige é a melhor solução para a aflição. Você conversou com a diretoria do hospital e eles te convenceram a participar do complô para me manter encarcerado? Eu já imaginava...
Continuei em silêncio e procurei ficar impassível, mas ele sorriu desarmando minha coragem. Não adiantava fingir, o Doutor Daniel tinha uma intuição ultra sensível e eu não era uma boa mentirosa.
_Eles te mostraram as fotos dos pedaços de corpos? Adoram fazer isso... é o maior desestimulante aos covardes e aos que têm estômago enjoado. Depois de ver as fotos a maioria se convence de que meu caso é perdido. Só que nunca conseguiram encontrar qualquer outra evidência que me ligasse àqueles pedaços...
_Consegui um rádio para você. - eu o interrompi quebrando meu longo silêncio .
Os olhos dele se abriram em interesse e pude sentir até um princípio de alegria.
_Sou muito grato por isso. Não é como ter um advogado, mas já é muito melhor do que nada.
_E não precisa ocultar suas folhas de papel debaixo do colchão. Sei que não escreveu aquela carta à Comissão de Direitos Humanos, porque eles não vão ajudá-lo e você já sabe disso. Você queria que eu escrevesse um artigo denunciando esse hospital e tentou me manipular...
_Você assistiu aos video-tapes gravados das minhas atividades? Quanta astúcia da sua parte! - Daniel riu – Estou impressionado com sua esperteza! Tinha a esperança de que ninguém estivesse prestando muita atenção...
Era óbvio que ele estava sendo irônico e de novo tive aquela sensação de: que-merda-estou-fazendo-aqui?
_Vamos ficar nesse cabo de guerra para sempre? - perguntei.
_Desculpe, mas não compreendi o que quis dizer. - ele falou cerrando o cenho.
_Você tentando me convencer de que é inocente e eu tentando convencê-lo de que não estou convencida...
O rosto dele se fechou e novamente e perdeu qualquer traço de gentileza.
_Não sou obrigado a satisfazer sua curiosidade, nem a lhe prestar qualquer outro tipo de serviço gratuitamente. Vá embora e me deixe em paz.
_Eu não quero ir embora. Quero lhe fazer uma pergunta.
_Pergunte o que quiser, talvez eu responda, talvez não.
Suspirei.
_Você matou aquelas pessoas por que gosta de matar, ou por que gosta de comer a carne humana?
Daniel ficou me encarando por um momento, com uma expressão enojada no rosto. Por um instante pensei que ele fosse vomitar, como eu tinha vomitado depois de ver aquelas fotografias forenses.
_Sabe de uma coisa? - ele perguntou antes de relaxar com uma risada – Você é muito sádica, muito mesmo! Quer a resposta àquela pergunta? Experimente matar e comer alguém, talvez você descubra o que é mais prazeroso.
Torci o nariz.
_Prefiro ouvir a sua opinião sobre o assunto. Já sei qual é a minha. - eu disse.
_E qual é a sua opinião?
_A de que não é nada prazeroso. Matar ou comer uma pessoa, nenhuma das duas coisas me interessam.
Daniel riu e sacudiu a cabeça em discordância: _Você está enganada. Não estaria tão curiosa sobre o perfil de um assassino como o que acredita ser eu, se não tivesse uma curiosidade mórbida e predisposta ao assunto. O que te falta não é curiosidade para experimentar cozinhar um rim humano, ou assar uma nádega. O que te falta é coragem para matar uma pessoa. Mas não é isso que te faz sádica e sim o fato de ter consciência do meu processo. Saber que fui amplamente negligenciado pela justiça e mesmo assim vir até aqui para explorar meu sofrimento, sem se comover, sem procurar me ajudar. Tudo o que te interessa é conseguir uma história e já escolheu sua vítima. Só não me mata, cozinha e come a minha carne porque não tem coragem..- Daniel lambeu os beiços para enfatizar aquelas últimas palavras - Você está tão distante de um assassinato quanto a espessura deste vidro que nos separa.
_E tão resistente a isso quanto ele. - retruquei me sentindo ousada, movida pelo desprezo àquele homem.
Daniel riu.
_Resistente? Talvez este vidro seja resistente às pancadas das minhas mãos, mas dê-me um martelo e um prego e verá o quanto este vidro é resistente. Na verdade tenho a impressão de que já me deu estas ferramentas. Você quer um perfil de assassino ideal para o entretenimento das pessoas, mas intimamente sei que quer mais que isso. Você quer saber como é a sensação de matar e comer uma pessoa.
_E você está louco para me contar! Se eu admitir que sou sádica, que tenho uma mórbida curiosidade para saber como é, que me falta mesmo é coragem para tentar, você me ajudaria?
Daniel levantou da cadeira e foi servir o café que já havia se tornado uma espécie de ritual entre nós. A segunda fase daquela conversa estava para começar.
_Ajudaria a fazer o que? A escolher uma vítima, matá-la e cozinhá-la?
_Sim.
Daniel pôs o café na gaveta e a empurrou na minha direção. O barulho dos trilhos meio enferrujados do dispositivo alimentação da cela ecoou pelo corredor.
_Se não estivéssemos sendo filmados eu proporia um desafio... - ele disse sentando-se calmamente.
_As câmeras não me importam. Estas visitas não são oficiais, estamos tratando aqui do plano da ficção. Tudo o que me disser pode ser compreendido como fantasia...
O Macabro me interrompeu com uma risada sinistra.
_Você é sádica e cínica. Pensa que não sei qual o jogo que me propõe? Mas eu estou me divertindo com essas suas visitas e já que tem tanta curiosidade para saber, continuo a insistir: por que não experimenta?
_Tudo o que quero é compreender os motivos de um assassino sádico e cínico...
_Tudo o que eu quero é uma janela, o rádio que você disse ter conseguido, revistas, jornais e um advogado.
_Ninguém consegue ter tudo o que quer, mas se me ajudar – eu barganhei com cautela – talvez eu consiga mudar você de cela...
Os olhos dele brilharam e pela primeira vez senti que tinha o controle da situação.
_Muito bem. Você conseguiu o que queria. Eu lhe dou o perfil do seu assassino, satisfaço sua curiosidade mórbida, se conseguir me mudar de cela, mas há uma regra que deve ser estabelecida em compensação pela sua falta de interesse em me arrumar um advogado... - ele encostou na cadeira – Para cada pergunta que você me fizer, farei outra a você.
_Muito bem, eu aceito. - respondi sem pestanejar.
_Vá embora agora. – ele disse se levantando e me dando as costas - Começaremos quando eu estiver na nova cela...
Era estranho estar de repente envolvida na melhoria das condições de vida de um homem que era um verdadeiro monstro e com quem eu jamais teria tido algum contato, se não fosse pelas minhas atividades enquanto escritora. Por outro lado era natural que eu trabalhasse no sentido de conseguir aquela história. Desde o primeiro momento em que vi o Dr. Macabro pessoalmente, soube que ele poderia me render um bom livro. Por essa ambição eu estava disposta a fazer o possível. Daniel havia cativado a minha imaginação de forma bizarra e quanto mais eu lutava contra essa mórbida curiosidade, mais interessada eu ficava em conhecer detalhes que só a mente diabólica dele poderiam revelar.
Hoje penso que o Dr. Emerson e toda aquela junta médica poderiam ter me poupado de tudo isso se soubessem melhor com quem estavam lidando...
SEXTA PARTE

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