TERCEIRA
VISITA
Saí
daquela conversa com o Dr. Emerson com a promessa de que a diretoria
chamaria o pessoal da manutenção para planejar a
reforma de uma cela no último andar do prédio dos
detentos. Isso me daria algum poder de barganha com o Dr. Daniel.
Encontrei-o
arrumado. A cela estava limpa e organizada, mas os papéis
ainda estavam escondidos das minhas vistas.
_Bom dia
Donna! - disse ele e confesso que foi impossível vê-lo
da mesma forma que nas duas visitas anteriores. De repente o humano à
minha frente, não era mais um humano e senti um desprezo
imenso por aquele cinismo com o qual ele tentava me convencer de sua
inocência.
Não
respondi ao cumprimento, simplesmente sentei na cadeira e o observei
em silêncio.
Daniel
sorriu: _Hoje vamos jogar o jogo do silêncio. - ele disse –
Eu tinha a rotina de me exercitar pela manhã. Mudei isso nas
últimas três manhãs por conta de suas visitas, se
vamos jogar o jogo do silêncio, peço licença para
seguir com minha rotina de sempre.
Daniel
esperou minha resposta. Eu queria dizer a ele que não tinha
palavras...
Estava
ali em busca de um perfil de assassino que pudesse ser usado em meu
próximo livro. Rodrigo tinha razão, pois nenhum
assassino podia ter sido mais cruel e repugnante quanto aquele homem
e nenhum perfil poderia ser mais atraente para minhas ambições
literárias. Só por esse motivo eu estava ali, do
contrário já teria fugido.
Daniel
tirou a camisa e o macacão, ficando somente de cuecas exibindo
seu corpo definido. Deitou-se sobre uma toalha estendida no chão
e começou a fazer abdominais, rápidas, cheias de força,
uma atrás da outra, interminavelmente e quase sem ofegar.
Tinha de admitir que ele estava em uma forma física
excepcional. Observei-o por mais de meia hora, quando ele finalmente
parou de se movimentar. Depois de descansar e se refrescar na pia,
sentou-se na cadeira diante do vidro que nos separava e perguntou:
_Vai
continuar em silêncio por todo o dia? Dá pra ver que
você teve notícias desagradáveis e agora está
repensando toda sua vida. Às vezes compartilhar o que nos
aflige é a melhor solução para a aflição.
Você conversou com a diretoria do hospital e eles te
convenceram a participar do complô para me manter encarcerado?
Eu já imaginava...
Continuei
em silêncio e procurei ficar impassível, mas ele sorriu
desarmando minha coragem. Não adiantava fingir, o Doutor
Daniel tinha uma intuição ultra sensível e eu
não era uma boa mentirosa.
_Eles te
mostraram as fotos dos pedaços de corpos? Adoram fazer isso...
é o maior desestimulante aos covardes e aos que têm
estômago enjoado. Depois de ver as fotos a maioria se convence
de que meu caso é perdido. Só que nunca conseguiram
encontrar qualquer outra evidência que me ligasse àqueles
pedaços...
_Consegui
um rádio para você. - eu o interrompi quebrando meu
longo silêncio .
Os olhos
dele se abriram em interesse e pude sentir até um princípio
de alegria.
_Sou
muito grato por isso. Não é como ter um advogado, mas
já é muito melhor do que nada.
_E não
precisa ocultar suas folhas de papel debaixo do colchão. Sei
que não escreveu aquela carta à Comissão de
Direitos Humanos, porque eles não vão ajudá-lo e
você já sabe disso. Você queria que eu escrevesse
um artigo denunciando esse hospital e tentou me manipular...
_Você
assistiu aos video-tapes gravados das minhas atividades? Quanta
astúcia da sua parte! - Daniel riu – Estou impressionado com
sua esperteza! Tinha a esperança de que ninguém
estivesse prestando muita atenção...
Era
óbvio que ele estava sendo irônico e de novo tive aquela
sensação de: que-merda-estou-fazendo-aqui?
_Vamos
ficar nesse cabo de guerra para sempre? - perguntei.
_Desculpe,
mas não compreendi o que quis dizer. - ele falou cerrando o
cenho.
_Você
tentando me convencer de que é inocente e eu tentando
convencê-lo de que não estou convencida...
O rosto
dele se fechou e novamente e perdeu qualquer traço de
gentileza.
_Não
sou obrigado a satisfazer sua curiosidade, nem a lhe prestar qualquer
outro tipo de serviço gratuitamente. Vá embora e me
deixe em paz.
_Eu não
quero ir embora. Quero lhe fazer uma pergunta.
_Pergunte
o que quiser, talvez eu responda, talvez não.
Suspirei.
_Você
matou aquelas pessoas por que gosta de matar, ou por que gosta de
comer a carne humana?
Daniel
ficou me encarando por um momento, com uma expressão enojada
no rosto. Por um instante pensei que ele fosse vomitar, como eu tinha
vomitado depois de ver aquelas fotografias forenses.
_Sabe de
uma coisa? - ele perguntou antes de relaxar com uma risada – Você
é muito sádica, muito mesmo! Quer a resposta àquela
pergunta? Experimente matar e comer alguém, talvez você
descubra o que é mais prazeroso.
Torci o
nariz.
_Prefiro
ouvir a sua opinião sobre o assunto. Já sei qual é
a minha. - eu disse.
_E qual
é a sua opinião?
_A de
que não é nada prazeroso. Matar ou comer uma pessoa,
nenhuma das duas coisas me interessam.
Daniel
riu e sacudiu a cabeça em discordância: _Você está
enganada. Não estaria tão curiosa sobre o perfil de um
assassino como o que acredita ser eu, se não tivesse uma
curiosidade mórbida e predisposta ao assunto. O que te falta
não é curiosidade para experimentar cozinhar um rim
humano, ou assar uma nádega. O que te falta é coragem
para matar uma pessoa. Mas não é isso que te faz sádica
e sim o fato de ter consciência do meu processo. Saber que fui
amplamente negligenciado pela justiça e mesmo assim vir até
aqui para explorar meu sofrimento, sem se comover, sem procurar me
ajudar. Tudo o que te interessa é conseguir uma história
e já escolheu sua vítima. Só não me mata,
cozinha e come a minha carne porque não tem coragem..- Daniel
lambeu os beiços para enfatizar aquelas últimas
palavras - Você está tão distante de um
assassinato quanto a espessura deste vidro que nos separa.
_E tão
resistente a isso quanto ele. - retruquei me sentindo ousada, movida
pelo desprezo àquele homem.
Daniel
riu.
_Resistente?
Talvez este vidro seja resistente às pancadas das minhas mãos,
mas dê-me um martelo e um prego e verá o quanto este
vidro é resistente. Na verdade tenho a impressão de que
já me deu estas ferramentas. Você quer um perfil de
assassino ideal para o entretenimento das pessoas, mas intimamente
sei que quer mais que isso. Você quer saber como é a
sensação de matar e comer uma pessoa.
_E você
está louco para me contar! Se eu admitir que sou sádica,
que tenho uma mórbida curiosidade para saber como é,
que me falta mesmo é coragem para tentar, você me
ajudaria?
Daniel
levantou da cadeira e foi servir o café que já havia se
tornado uma espécie de ritual entre nós. A segunda fase
daquela conversa estava para começar.
_Ajudaria
a fazer o que? A escolher uma vítima, matá-la e
cozinhá-la?
_Sim.
Daniel
pôs o café na gaveta e a empurrou na minha direção.
O barulho dos trilhos meio enferrujados do dispositivo alimentação
da cela ecoou pelo corredor.
_Se não
estivéssemos sendo filmados eu proporia um desafio... - ele
disse sentando-se calmamente.
_As
câmeras não me importam. Estas visitas não são
oficiais, estamos tratando aqui do plano da ficção.
Tudo o que me disser pode ser compreendido como fantasia...
O
Macabro me interrompeu com uma risada sinistra.
_Você
é sádica e cínica. Pensa que não sei qual
o jogo que me propõe? Mas eu estou me divertindo com essas
suas visitas e já que tem tanta curiosidade para saber,
continuo a insistir: por que não experimenta?
_Tudo o
que quero é compreender os motivos de um assassino sádico
e cínico...
_Tudo o
que eu quero é uma janela, o rádio que você disse
ter conseguido, revistas, jornais e um advogado.
_Ninguém
consegue ter tudo o que quer, mas se me ajudar – eu barganhei com
cautela – talvez eu consiga mudar você de cela...
Os olhos
dele brilharam e pela primeira vez senti que tinha o controle da
situação.
_Muito
bem. Você conseguiu o que queria. Eu lhe dou o perfil do seu
assassino, satisfaço sua curiosidade mórbida, se
conseguir me mudar de cela, mas há uma regra que deve ser
estabelecida em compensação pela sua falta de interesse
em me arrumar um advogado... - ele encostou na cadeira – Para cada
pergunta que você me fizer, farei outra a você.
_Muito
bem, eu aceito. - respondi sem pestanejar.
_Vá
embora agora. – ele disse se levantando e me dando as costas -
Começaremos quando eu estiver na nova cela...
Era
estranho estar de repente envolvida na melhoria das condições
de vida de um homem que era um verdadeiro monstro e com quem eu
jamais teria tido algum contato, se não fosse pelas minhas
atividades enquanto escritora. Por outro lado era natural que eu
trabalhasse no sentido de conseguir aquela história. Desde o
primeiro momento em que vi o Dr. Macabro pessoalmente, soube que ele
poderia me render um bom livro. Por essa ambição eu
estava disposta a fazer o possível. Daniel havia cativado a
minha imaginação de forma bizarra e quanto mais eu
lutava contra essa mórbida curiosidade, mais interessada eu
ficava em conhecer detalhes que só a mente diabólica
dele poderiam revelar.
Hoje penso que o Dr. Emerson e toda aquela junta médica
poderiam ter me poupado de tudo isso se soubessem melhor com quem
estavam lidando...
SEXTA PARTE
SEXTA PARTE
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