PRIMEIRA
VISITA
Na manhã seguinte tomei um táxi e fui para o hospital. Lá fui novamente levada diante da “junta médica”. Já havia uma espécie de consenso entre eles a meu respeito e a recepção que me deram não foi nem de longe parecida com a falsa hospitalidade do dia anterior.
_As regras aqui são muito rígidas – disse o diretor Marcelo de-cabelos-tingidos-de-preto-e-bigode-de-salafrário – Não costumamos permitir este tipo de visitas, porque isso afeta a rotina dos internos e só Deus sabe como eles dependem da rotina, como nós dependemos da rotina para manter tudo sob controle. Por sorte o Doutor Daniel fica numa ala especial, separada do restante dos internos, cujo o acesso é ainda mais restrito. Decidimos autorizar suas visitas, desde que você concorde em não transitar por outras dependências do hospital...
Ele me encarou e fiquei pensando no que eu haveria de ver se ficasse andando por aí, sem a vigilância da diretoria...
_Concordo. - disse balançando a cabeça.
Na manhã seguinte tomei um táxi e fui para o hospital. Lá fui novamente levada diante da “junta médica”. Já havia uma espécie de consenso entre eles a meu respeito e a recepção que me deram não foi nem de longe parecida com a falsa hospitalidade do dia anterior.
_As regras aqui são muito rígidas – disse o diretor Marcelo de-cabelos-tingidos-de-preto-e-bigode-de-salafrário – Não costumamos permitir este tipo de visitas, porque isso afeta a rotina dos internos e só Deus sabe como eles dependem da rotina, como nós dependemos da rotina para manter tudo sob controle. Por sorte o Doutor Daniel fica numa ala especial, separada do restante dos internos, cujo o acesso é ainda mais restrito. Decidimos autorizar suas visitas, desde que você concorde em não transitar por outras dependências do hospital...
Ele me encarou e fiquei pensando no que eu haveria de ver se ficasse andando por aí, sem a vigilância da diretoria...
_Concordo. - disse balançando a cabeça.
Em
seguida Marcelo repetiu tudo aquilo que Rodrigo me tinha dito ao
telefone: eu deveria escrever um artigo sobre o hospital, baseando-me
no material de publicidade institucional. Em outras palavras, eu
deveria mentir sobre aquele lugar, passando a impressão de que
todos os problemas anteriores haviam sido resolvidos, que os internos
sentiam-se como no paraíso, que a junta médica era a
mais bem equipada e preparada para a tarefa de curar as enfermidades
mentais daqueles presidiários e que tudo o que eles precisavam
era de um pouco mais de verbas...
Marcelo
parecia não querer mais perder seu tempo comigo e indicou o
Dr. Emerson Bachi para servir-me de guia naquela primeira visita ao
Dr. Macabro.
_Ele irá levá-la até o Dr. Daniel e lhe explicar as regras.
_Ele irá levá-la até o Dr. Daniel e lhe explicar as regras.
Emerson
levantou-se e me indicou a porta. Já do lado de fora ele
começou a falar:
_O
Doutor Daniel Malbenito fica numa cela especial, feita com vidro
blindado de dois centímetros de espessura. Tivemos que
adaptá-la para ele, porque ele costumava agarrar os
faxineiros, guardas e internos através das barras. Nós
tentamos colocá-lo num quarto, com uma porta e uma portinhola
de vigilância, mas esse sistema não funcionou porque ele
se escondia das nossas vistas e sempre tentava atacar quem quer que
entrasse ali. A solução do vidro blindado trouxe paz
aos funcionários que precisam vez por outra se aproximar dele.
Temos uma câmera de áudio e vídeo que filma todas
as atividades do Doutor. Você não precisa se preocupar,
o vidro não pode ser quebrado e estaremos de olho em tudo. No
entanto – Emerson fez uma pausa enquanto me indicava a direção.
Encarou-me nos olhos, pude ver que tinha um rosto bonito, não
carregado como o dos outros membros da junta médica e deduzi
que ele era novo ali -, o Doutor Daniel não é perigoso
apenas fisicamente. Há alguns anos um interno que ficava na
mesma ala desse hospital, cometeu suicídio dentro da cela. Ele
mordeu os próprios pulsos e sangrou até morrer. Os
outros internos da ala disseram que o Doutor conversava com ele dia e
noite... suspeitamos que o suicídio foi cometido por
influência do Daniel.
Emerson
parou de caminhar e me encarou nos olhos. Era alto, cabeça e
meia maior do que eu e seus olhos castanhos me fixaram:
_Não
sei por que você quer tanto falar com ele. Não sei se
ele aceitará conversar com você, mas se aceitar, não
deixe ele entrar na sua cabeça. Evite assuntos pessoais, não
diga seu nome verdadeiro, nem onde mora, nem qualquer outra coisa que
possa levá-lo a deduzir isso. Nós suspeitamos que o
Doutor tenha um simpatizante, por assim dizer, que está solto.
Você deve saber que o primeiro advogado dele morreu brutalmente
assassinado dias depois da sentença do juiz, sobre a extração
de seus dentes... - a afirmação soou como pergunta e eu
balancei a cabeça – O culpado jamais foi encontrado e apesar
de monitorarmos todas as correspondências do Doutor, não
sabemos se ele é capaz de se comunicar com este simpatizante,
ele pode ter algum tipo de código...
_O
Doutor recebe muitas correspondências? - perguntei achando
aquela informação interessante.
_Houve
um tempo em que ele recebia muitas cartas do mundo inteiro! - Emerson
respondeu – Hoje em dia ele recebe uma ou outra, de vez em quando,
geralmente de jornalistas, psiquiatras e psicólogos... todos
querem alguma coisa dele...
_E como
ele responde?
_Sempre
educadamente. Não fala sobre seus crimes e às vezes
mostra-se solícito a resolver outros tipos de problemas.
_Que
problemas?
_Coisas que ele deduz ao ler as cartas. - Nós descíamos as escadas para o primeiro piso e suas palavras ecoaram nas paredes vazias daquela ala administrativa – Ele percebe coisas... tem uma visão muito... muito... observadora. Costuma dizer que as pessoas atraídas para as histórias dos crimes brutais, são pessoas frustradas, amorosa, ou profissionalmente em sua maioria e que precisam de cuidados especiais...
_Coisas que ele deduz ao ler as cartas. - Nós descíamos as escadas para o primeiro piso e suas palavras ecoaram nas paredes vazias daquela ala administrativa – Ele percebe coisas... tem uma visão muito... muito... observadora. Costuma dizer que as pessoas atraídas para as histórias dos crimes brutais, são pessoas frustradas, amorosa, ou profissionalmente em sua maioria e que precisam de cuidados especiais...
_Então
ele quer ajudar essas pessoas?
Emerson
riu:
_Ele não
sente este tipo de empatia. Responde positivamente porque não
tem nada melhor para fazer. Estas cartas lhe quebram a rotina, mas
não posso dizer que ele ajuda essas pessoas, só as usa
para se gabar de sua capacidade intelectual. Faz isso por vaidade,
não por bondade... Não se iluda. O Doutor Daniel não
é humano. Quero dizer... não tem sentimentos comuns aos
seres humanos como empatia, amor, solidariedade, compaixão...
tome cuidado com ele.
Saímos
da ala administrativa, atravessando um pequeno pátio
ornamentado com vasos de samambaias desgrenhadas. Entramos por uma
porta eletronicamente travada e depois de algumas palavras trocadas
com os guardas, recebi um crachá amarelo.
_Escreva
seu nome aí. - disse Emerson estendendo uma caneta – Não
seu nome verdadeiro, mas um apelido qualquer, apenas para que
possamos identificá-la.
Sem
pensar duas vezes redigi o pseudônimo: “Donna”
Emerson
franziu o cenho por um instante e fiquei tentada a perguntar se havia
algum problema com o nome, mas ele já estava caminhando
novamente pelos corredores. Segui-o e percebi que ele me conduzia
através das passagens de serviços do hospital, sem
nunca entrar na ala dos internos propriamente dita. Não pude
deixar de pensar como seriam as coisas do outro lado daquelas
paredes. No dia anterior, quando minha visita era aguardada, todos os
internos provavelmente tinham recebido instruções,
roupas limpas e alguns privilégios raros. Hoje as coisas
deviam ter voltado ao seu ritmo normal e me lembrei das palavras de
Chico Fuma, sobre os internos dali estarem em condições
parecidas com a dos “judeus do holocausto nazista”.
Emerson
me conduziu através de um corredor que cheirava à
creolina até uma porta corta-fogo. Ela abria-se para um lance
de escadas que conduzia ao subsolo do edifício, onde ficava a
ala de “alta periculosidade”. Ao final da escada, passamos por
mais uma porta travada eletronicamente, onde dois guardas monitoravam
os presos através de pequenos televisores.
Fui
apresentada aos guardas, que me devolveram olhares de desconfiança,
em seguida um deles destrancou um portão de barras de ferro
para nos dar passagem.
Caminhamos pelo corredor onde pude ver celas de ambos os lados, com
seus respectivos internos atrás das grades. Alguns tinham
aparência assustadora, de verdadeiros animais, outros pareciam
normais, alguns manifestaram entusiasmo ao me verem e chegaram a
fazer comentários obscenos, outros limitaram-se a me olhar com
desprezo. O Doutor Emerson foi a vítima mais constante dos
insultos de um determinado presidiário, mas ele continuou
caminhando como se não tivesse ouvido nada.
Dobramos a quina do corredor à direita. Emerson parou por um momento e me olhou uma última vez:
_A cela do Doutor Daniel é a última. Vou mandar o Jaderson lhe trazer uma cadeira. Você tem certeza de que quer isso mesmo?
_Vim aqui para isso...
_Então lembre-se: não deixe ele entrar na sua cabeça. Esse homem é o tipo mais perigoso de psicopata. Ele é manipulador e extremamente persuasivo. Tenha cuidado. Não lhe dê nada. Não lhe empreste caneta, papel, lápis, ou qualquer outro objeto. Não lhe faça promessas, não barganhe e principalmente: não o subestime. Ele é extremamente inteligente, apesar de ser mentalmente doente. Não pense que sua doença o impede de raciocinar logicamente. – ele me olhava diretamente nos olhos, certificando-se de que eu estava atenta às suas recomendações - Vou deixá-la aqui. Ele não gosta muito de mim e não quero que me veja. Boa sorte.
Dizendo essas palavras o Doutor Emerson saiu apressado e ao passar diante da cela do interno que o tinha insultado, ele lhe fez um cumprimento com as mãos.
_Filho da puta! Desgraçado! Entra aqui se for homem! Seu covarde! Seu viado! - gritou o detento de volta.
Dobramos a quina do corredor à direita. Emerson parou por um momento e me olhou uma última vez:
_A cela do Doutor Daniel é a última. Vou mandar o Jaderson lhe trazer uma cadeira. Você tem certeza de que quer isso mesmo?
_Vim aqui para isso...
_Então lembre-se: não deixe ele entrar na sua cabeça. Esse homem é o tipo mais perigoso de psicopata. Ele é manipulador e extremamente persuasivo. Tenha cuidado. Não lhe dê nada. Não lhe empreste caneta, papel, lápis, ou qualquer outro objeto. Não lhe faça promessas, não barganhe e principalmente: não o subestime. Ele é extremamente inteligente, apesar de ser mentalmente doente. Não pense que sua doença o impede de raciocinar logicamente. – ele me olhava diretamente nos olhos, certificando-se de que eu estava atenta às suas recomendações - Vou deixá-la aqui. Ele não gosta muito de mim e não quero que me veja. Boa sorte.
Dizendo essas palavras o Doutor Emerson saiu apressado e ao passar diante da cela do interno que o tinha insultado, ele lhe fez um cumprimento com as mãos.
_Filho da puta! Desgraçado! Entra aqui se for homem! Seu covarde! Seu viado! - gritou o detento de volta.
Naquele corredor, onde estava a cela do Doutor Daniel, não
havia nenhum detento. As celas vazias estavam empoeiradas e sem
colchões, como se tivessem sido abandonadas há um bom
tempo. As palavras do Doutor Emerson voltaram à minha mente e
por um instante hesitei em continuar. No fim do corredor pude ouvir
um assobio, um tema musical que me pareceu familiar. O Doutor Daniel,
o Macabro, tocava uma música para mim...
Quase gritei quando senti uma mão me tocar.
Era Jaderson, que tinha trazido uma cadeira.
_Vamos? - ele sinalizou para o fim do corredor, convidando-me a segui-lo quase como um desafio.
Já tinha visto fotos do Doutor Daniel durante a pesquisa que fiz sobre ele. Era um homem jovem quando foi preso, doze anos antes. Tinha então trinta e seis anos, cabelos pretos, pele branca, olhos pretos, nariz ligeiramente aquilino, boca pequena, lábios bem desenhados, queixo levemente protuberante, cerca de um metro e setenta e cinco de altura e magro. Não era um homem feio.
Doze anos depois, a visão que tive me deixou um tanto perturbada.
Chegamos diante da cela e o Doutor Daniel estava semi-nu, de ponta cabeças, apoiado pelas mãos, esticado em perfeito equilíbrio, há alguns centímetros da parede do fundo de sua cela. Ao ver-nos, sorriu e lentamente desceu as pernas até o chão, voltando à posição natural, de costas para nós.
Pude ver que ele não estava magro como nas fotos, mas sua massa corporal não era de gordura. Era visível que o Doutor usava suas horas ociosas para exercitar-se e tinha músculos fortes por todos os lados. O corpo dele me fez lembrar o daquele falecido ator chinês, mestre em kung-fu, chamado Bruce Lee. Era surpreendente que ele conseguisse manter aquela forma exercitando-se somente naquela cela pequena.
Sem qualquer pressa ele pegou uma toalha e secou o suor que lhe escorria pelo pescoço, antes de virar-se de frente. Seus cabelos estavam começando a ficar grisalhos, eram compridos até os ombros e estavam presos num rabo de cavalo por um elástico.
_Você devia ter me avisado que a visita viria antes do almoço, Jaderson. - ele disse com uma voz ligeiramente rouca, num tom compassado, soando a advertência quase com gentileza, como teria dito a uma criança. Virou-se de frente para nós. Seu rosto não havia mudado. Ainda poderia passar-se por um homem de trinta e tantos anos. Não tinha rugas, nem manchas. Ele sorria e seu sorriso mostrava próteses dentárias muito bem feitas.
Que merda! Pensei. Se encontrasse um homem assim num bar, eu o teria paquerado...
_Bom dia. - ele disse cordialmente – Desculpe-me pela bagunça, mas eu não esperava sua visita antes do almoço. Achei que viria no horário regular. Se alguém tivesse me avisado que viria a essa hora eu teria me preparado melhor.
_Se preferir que eu volte em outra hora... - disse sentindo o suor nas palmas das mãos, tentando controlar a respiração que de repente ficou difícil.
_Não! Absolutamente! - disse sacudindo a cabeça – Só peço que não repare no suor, nem na bagunça da minha cela. Imagino que levou um susto ao ver-me de ponta cabeças – ele sorriu novamente -, mas isso é só uma rotina de exercícios. Eu gosto de me exercitar pela manhã...
Jaderson ajeitou a cadeira diante da cela e murmurou: _Não chega perto do vidro, nem passa nada para ele pela gaveta. - balancei a cabeça em concordância e depois, dirigindo-se ao Doutor ele disse mais alto – Fica comportado Doutor Daniel, a moça só quer lhe fazer algumas perguntas.
_Claro Jaderson! Quem você pensa que eu sou? Um bárbaro?
Jaderson grunhiu qualquer coisa e depois de me lançar mais um olhar enviesado, saiu deixando-me sozinha com o “Doutor Macabro”.
Fiquei olhando para aquele homem na cela blindada. Apesar de já tê-lo visto nas fotos, a impressão pessoal não era tão assustadora quanto a fama que o precedia. Como disse, eu poderia tê-lo paquerado num bar se o encontrasse sem saber de sua história, pois ele era um homem bonito, asseado, com um brilho de inteligência nítido no olhar, sorriso largo, sem qualquer traço aparente de doença mental.
Procurei um tema para iniciarmos a conversa. Queria causar-lhe boa impressão, parecer amigável, sem excessos desnecessários e principalmente, sem qualquer traço de piedade.
Antes que eu partisse para a devida apresentação o Daniel largou a toalha sobre a cama de alvenaria, vestiu uma camiseta e puxou uma cadeira de plástico, sentando-se e apontando para a minha cadeira, para que eu fizesse o mesmo.
_Imagino que veio atrás de uma boa história para escrever... -ele disse.
_Ah... - disfarcei um engasgo com o ato de sentar – Já te contaram...
_Não. - ele respondeu me interrompendo – Disseram tão somente que eu receberia uma visita, mas não explicaram a natureza dela. Deduzo que veio atrás de uma boa história para escrever, porque posso ver daqui o seu calo de escritor, no dedo médio da mão direita. Contudo... - os olhos dele apertaram-se na minha direção e ele maneou a cabeça ligeiramente – Você não me parece jornalista... não tem aquele brilho de ansiedade nos olhos. - ele sentou-se e relaxou - Também não parece ser estudante... Se me permite a indelicadeza, você é muito velha para ser estudante, a menos que esteja escrevendo alguma tese de pós graduação... mas então, teria sido mais apropriado vir com um gravador, ao invés de um caderno e uma caneta... - ele fez uma pausa e me encarou com mais firmeza. - Bem... estou em dúvida – continuou -. Não sei se é estudante de pós graduação, ou escritora de ficção, mas sei que não se chama “Donna”. Este não é um nome brasileiro e mesmo aquelas mulheres pobres, que dão nomes estrangeirados aos seus filhos, para que eles pareçam mais importantes do que são, não lhe dariam um nome desses... “Donna” soa como “dona”, que no Brasil é sinônimo de “possuidora de bens” e que tornou-se um pronome de tratamento, dado o fato de nossa cultura ter evoluído a partir de relações aristocráticas e autoritárias. Nenhuma mulher pobre se arriscaria a chamar a própria filha de “dona”, porque isso soaria confuso aos ouvidos dos outros. Dona de quê? As pessoas perguntariam... - Daniel deu uma gargalhada – Não me leve a mal... eu não tenho muito o que fazer aqui dentro, então, quando recebo uma visita, gosto de saboreá-la ao máximo, por assim dizer...
Quase gritei quando senti uma mão me tocar.
Era Jaderson, que tinha trazido uma cadeira.
_Vamos? - ele sinalizou para o fim do corredor, convidando-me a segui-lo quase como um desafio.
Já tinha visto fotos do Doutor Daniel durante a pesquisa que fiz sobre ele. Era um homem jovem quando foi preso, doze anos antes. Tinha então trinta e seis anos, cabelos pretos, pele branca, olhos pretos, nariz ligeiramente aquilino, boca pequena, lábios bem desenhados, queixo levemente protuberante, cerca de um metro e setenta e cinco de altura e magro. Não era um homem feio.
Doze anos depois, a visão que tive me deixou um tanto perturbada.
Chegamos diante da cela e o Doutor Daniel estava semi-nu, de ponta cabeças, apoiado pelas mãos, esticado em perfeito equilíbrio, há alguns centímetros da parede do fundo de sua cela. Ao ver-nos, sorriu e lentamente desceu as pernas até o chão, voltando à posição natural, de costas para nós.
Pude ver que ele não estava magro como nas fotos, mas sua massa corporal não era de gordura. Era visível que o Doutor usava suas horas ociosas para exercitar-se e tinha músculos fortes por todos os lados. O corpo dele me fez lembrar o daquele falecido ator chinês, mestre em kung-fu, chamado Bruce Lee. Era surpreendente que ele conseguisse manter aquela forma exercitando-se somente naquela cela pequena.
Sem qualquer pressa ele pegou uma toalha e secou o suor que lhe escorria pelo pescoço, antes de virar-se de frente. Seus cabelos estavam começando a ficar grisalhos, eram compridos até os ombros e estavam presos num rabo de cavalo por um elástico.
_Você devia ter me avisado que a visita viria antes do almoço, Jaderson. - ele disse com uma voz ligeiramente rouca, num tom compassado, soando a advertência quase com gentileza, como teria dito a uma criança. Virou-se de frente para nós. Seu rosto não havia mudado. Ainda poderia passar-se por um homem de trinta e tantos anos. Não tinha rugas, nem manchas. Ele sorria e seu sorriso mostrava próteses dentárias muito bem feitas.
Que merda! Pensei. Se encontrasse um homem assim num bar, eu o teria paquerado...
_Bom dia. - ele disse cordialmente – Desculpe-me pela bagunça, mas eu não esperava sua visita antes do almoço. Achei que viria no horário regular. Se alguém tivesse me avisado que viria a essa hora eu teria me preparado melhor.
_Se preferir que eu volte em outra hora... - disse sentindo o suor nas palmas das mãos, tentando controlar a respiração que de repente ficou difícil.
_Não! Absolutamente! - disse sacudindo a cabeça – Só peço que não repare no suor, nem na bagunça da minha cela. Imagino que levou um susto ao ver-me de ponta cabeças – ele sorriu novamente -, mas isso é só uma rotina de exercícios. Eu gosto de me exercitar pela manhã...
Jaderson ajeitou a cadeira diante da cela e murmurou: _Não chega perto do vidro, nem passa nada para ele pela gaveta. - balancei a cabeça em concordância e depois, dirigindo-se ao Doutor ele disse mais alto – Fica comportado Doutor Daniel, a moça só quer lhe fazer algumas perguntas.
_Claro Jaderson! Quem você pensa que eu sou? Um bárbaro?
Jaderson grunhiu qualquer coisa e depois de me lançar mais um olhar enviesado, saiu deixando-me sozinha com o “Doutor Macabro”.
Fiquei olhando para aquele homem na cela blindada. Apesar de já tê-lo visto nas fotos, a impressão pessoal não era tão assustadora quanto a fama que o precedia. Como disse, eu poderia tê-lo paquerado num bar se o encontrasse sem saber de sua história, pois ele era um homem bonito, asseado, com um brilho de inteligência nítido no olhar, sorriso largo, sem qualquer traço aparente de doença mental.
Procurei um tema para iniciarmos a conversa. Queria causar-lhe boa impressão, parecer amigável, sem excessos desnecessários e principalmente, sem qualquer traço de piedade.
Antes que eu partisse para a devida apresentação o Daniel largou a toalha sobre a cama de alvenaria, vestiu uma camiseta e puxou uma cadeira de plástico, sentando-se e apontando para a minha cadeira, para que eu fizesse o mesmo.
_Imagino que veio atrás de uma boa história para escrever... -ele disse.
_Ah... - disfarcei um engasgo com o ato de sentar – Já te contaram...
_Não. - ele respondeu me interrompendo – Disseram tão somente que eu receberia uma visita, mas não explicaram a natureza dela. Deduzo que veio atrás de uma boa história para escrever, porque posso ver daqui o seu calo de escritor, no dedo médio da mão direita. Contudo... - os olhos dele apertaram-se na minha direção e ele maneou a cabeça ligeiramente – Você não me parece jornalista... não tem aquele brilho de ansiedade nos olhos. - ele sentou-se e relaxou - Também não parece ser estudante... Se me permite a indelicadeza, você é muito velha para ser estudante, a menos que esteja escrevendo alguma tese de pós graduação... mas então, teria sido mais apropriado vir com um gravador, ao invés de um caderno e uma caneta... - ele fez uma pausa e me encarou com mais firmeza. - Bem... estou em dúvida – continuou -. Não sei se é estudante de pós graduação, ou escritora de ficção, mas sei que não se chama “Donna”. Este não é um nome brasileiro e mesmo aquelas mulheres pobres, que dão nomes estrangeirados aos seus filhos, para que eles pareçam mais importantes do que são, não lhe dariam um nome desses... “Donna” soa como “dona”, que no Brasil é sinônimo de “possuidora de bens” e que tornou-se um pronome de tratamento, dado o fato de nossa cultura ter evoluído a partir de relações aristocráticas e autoritárias. Nenhuma mulher pobre se arriscaria a chamar a própria filha de “dona”, porque isso soaria confuso aos ouvidos dos outros. Dona de quê? As pessoas perguntariam... - Daniel deu uma gargalhada – Não me leve a mal... eu não tenho muito o que fazer aqui dentro, então, quando recebo uma visita, gosto de saboreá-la ao máximo, por assim dizer...
Senti um
calafrio que veio dos ossos até os cabelos e quis de repente
sair correndo dali.
O que é que eu to fazendo aqui? Perguntei de repente a mim mesma.
O que é que eu to fazendo aqui? Perguntei de repente a mim mesma.
_Não
se incomode... - foi o que consegui balbuciar – Fique à
vontade.
Daniel
balançou a cabeça ligeiramente, fixou seu olhar em mim
por um instante e perguntou se eu queria beber um copo de água,
ou café.
_É
o que tenho para servi-la. - ele disse apontando para uma mesinha
onde havia uma garrafa plástica e outra térmica.
Observei
a cela.
O
cubículo devia ter cerca de oito metros quadrados. Do lado
esquerdo havia uma cama de alvenaria, forrada com um colchão
fino que parecia desconfortável, alguns cobertores meio
desalinhados e um travesseiro baixo. Aos fundos havia um vaso
sanitário e uma pia, do lado direito uma mesinha de plástico
contendo as garrafas, alguns copos descartáveis e um pacote de
biscoitos de água e sal. Sobre a mesinha, incrustada na
parede, havia uma prateleira também de alvenaria, onde estava
um calhamaço de papel sulfite, uma carga de caneta sem o
invólucro e um livro. Ao lado da mesinha havia uma porta com
barras de ferro, trancada eletronicamente e que levava a uma sala ao
lado, por onde Daniel entrava e saía quando ia ao pátio,
ou à clínica. Não havia janelas e o ar circulava
através de orifícios arredondados no blindex. Não
havia desenhos nas paredes, nem qualquer outro tipo de ornamento
típico das celas de presidiários. O interior daquele
cubículo estava imaculadamente branco como se tivesse sido
recentemente pintado.
_Desculpe-me
por fazer estas deduções a seu respeito. - ele
continuou falando com aquele mesmo tom de gentileza – É uma
distração... um entretenimento...
_Como eu disse, fique à vontade... - respondi devolvendo o tom de gentileza em igual medida.
_Como eu disse, fique à vontade... - respondi devolvendo o tom de gentileza em igual medida.
Daniel
sorriu: _Obrigado. E já que está assim disposta, devo
dizer que percebi que é solteira. Não tem alianças
em nenhuma das mãos, nem marcas recentes nos dedos... acho que
julga-se uma mulher inteligente. As mulheres inteligentes tendem a
ser relapsas com sua própria aparência. Mulheres
inteligentes em geral desprezam a vaidade. Acreditam que irão
atrair os homens certos através de outras qualidades.
Acreditam que os homens certos são aqueles capazes de ver
através dos artifícios da vaidade e que buscam o mesmo
que elas: parceiros unidos pelo intelecto e não pelas
aparências. - ele riu timidamente antes de continuar: -
Infelizmente as mulheres inteligentes são estúpidas
quando acreditam nisso. - desta vez sua voz soou um tanto irônica
– Porque os homens realmente não se interessam tanto pelo
conteúdo, quanto pela forma e isso faz com que a maioria das
mulheres inteligentes e relapsas com sua aparência, permaneçam
solitárias. - Seu rosto ficou sério, quase pesaroso –
Não quero ofendê-la, acredite. Só estou lhe dando
um conselho: cuide melhor de sua aparência, você não
é nem um pouco feia, mas tem medo da própria beleza.
Teme não ser levada a sério pelo mundo do trabalho, se
estiver bem cuidada e bonita. Pode ser que encontre em seu caminho
homens mais interessados em sua aparência, do que na
inteligência que acredita ter, mas isso fará de você
uma mulher mais feliz, menos solitária, menos disposta a
arriscar-se tanto na vida. A propósito, vejo também que
não é do estado de São Paulo. Não está
apropriadamente vestida para esta última frente fria. Deve ter
vindo de uma região mais quente, pois está vestindo
muitas blusas sobrepostas, ao invés de lã e um grosso
casaco... De onde veio? Certamente que não veio do nordeste,
pois não há editoras significativas naquela região.
Imagino que veio do Rio de Janeiro, mas não é natural
daquele estado, pois não tem aquele sotaque irritante dos
cariocas... acho que nasceu no interior de São Paulo, ou
talvez no sul de Minas, mas mudou-se para o Rio de Janeiro há
alguns anos – Daniel riu – É uma caipira tentando a grande
chance na capital...
Não
sei dizer o que senti com aquela torrente de deduções
corretas ao meu respeito e já não sabia mais como
retomar a palavra, aliás eu não havia dito nada além
de “fique à vontade”... Fiquei perdida e assim permiti que
ele continuasse falando. O máximo que pude fazer foi tomar
anotações mentais sobre seu comportamento, seu
ambiente, acreditando que essas observações poderiam
ser úteis mais tarde, quando eu deveria refletir, avaliar e
buscar um meio de abordar a conversa nas visitas futuras.
Ele riu
como se tivesse percebido meu embaraço e sacudiu uma das mãos,
levantando-se da cadeira e indo até a mesinha. Serviu dois
copos de café, pôs um deles na gaveta de comunicação
do blindex, empurrando-a na minha direção.
_Tome
café comigo.
Aceitei
a gentileza apesar das recomendações do carcereiro
Jaderson.
_Infelizmente
não é um bom café. Gosto de café com
paladar duro, torra em grau três, moagem fina e sem açúcar.
Este café foi colhido verde e torrado demais para compensar,
foi moído grosseiramente e mesmo que eu implore para que não
o adocem, ele sempre vem melado. O resultado, como pode ver, é
de um café excessivamente aguado, com um ranço amargo,
que nem o açúcar é capaz de disfarçar.
Tem gosto de cueca mal lavada, mas é um dos poucos luxos que
me restam...
Ri da
comparação. Como o Doutor poderia saber que gosto tem
uma cueca mal lavada? Então me lembrei da natureza de seus
crimes e parei de rir. Talvez ele soubesse...
Experimentei
o café que me pareceu exatamente como ele havia descrito,
mesmo assim a bebida ainda quente caiu bem no meu estômago.
_O
senhor acertou quase tudo o que disse a meu respeito... - falei –
Não esperava por este frio e tive que improvisar usando de uma
só vez todas as roupas que trouxe. - ri estupidamente e fechei
a boca assim que percebi isso.
Ele
sorriu: _Chame-me por Daniel. O tratamento de senhor é um dado
cultural que demonstra sua origem humilde. É óbvio que
você não tem dinheiro, senão não estaria
aqui trabalhando, mas no mundo dos negócios, se quiser ser bem
sucedida, é bom fazer as pessoas pensarem que veio de uma
família tradicional que tem, ou já teve posses... numa
família assim você jamais seria ensinada a chamar as
pessoas por esta forma de tratamento, exceto é claro, aos
velhos. Tratar homens jovens, ou de meia idade por “senhor”
demonstra subserviência, submissão... você jamais
conseguirá promoções na empresa, ou
oportunidades de gerenciar negócios comportando-se como uma
caipira descendente de escravos. - ele sorriu – Desculpe-me
novamente. Não tenho recebido muitas visitas ultimamente e
devo confessar que esse isolamento prolongado me fez esquecer os bons
modos. Sei que vai dizer que não se incomoda, que eu fique à
vontade, mas o resultado disso é que desconheço até
agora, exatamente, em que posso ajudá-la. Por favor, tome a
palavra.
Tomei
fôlego, eu estava nervosa e quanto mais tentava disfarçar
esse incômodo, mais aparente ele se tornava. Percebi que tinha
de escolher bem as palavras antes de abrir a boca. Aquele homem na
minha frente tinha se formado em Medicina aos vinte e quatro anos,
especializando-se em Cirurgia Plástica e Psicologia. Sua tese
de Doutorado intitulava-se: “Sagrado e Profano na Figura Feminina
da Mitologia Clássica: perspectiva Histórica e
Comparativa do Tema na Literatura Medieval e na Literatura Médica
do século XIX e XX.”
Uma
olhada superficial no livro, mostrava citações de obras
sobre mitologia que ele tinha lido no original, ou seja, em grego e
latim. O sumário tinha trinta páginas de títulos
citados na obra... O Doutor Daniel tinha sido formado no melhor
colégio de São Paulo em sua época, havia se
diplomado pela USP em medicina e na sequência viajara para a
Europa, onde se especializou em psiquiatria com passagens por
universidades na França e Alemanha.
Enfim...
a lista de seus feitos era extensa e precoce. A educação
dele estava muito além da minha e não adiantava ficar
me sentindo estúpida, ao contrário, me admirei pensando
que poderia aprender muita coisa com aquele homem, se estivesse
disposta a ouvi-lo com atenção.
_Bem,
não sei por onde começar, acho que estou nervosa...
Daniel
teve um sobressalto.
_Nervosa?
Não há razão para estar nervosa, eu estou aqui
dentro e você está aí fora. Não vou
atacá-la.
E me
atacaria se pudesse...- pensei.
Apertei
os lábios e suspirei: _Não estou nervosa porque estou
com medo. Estou nervosa porque não sei o que esperar. Você
não se parece com a imagem mental que eu tive, a partir do que
li e ouvi a seu respeito.
Ele
sacudiu a cabeça: _E o que você esperava encontrar?
_Alguém
menos si... - eu ia dizer “simpático”, mas achei que isso
alimentaria a vaidade dele e poderia gerar um mal entendido entre nós
- Menos sociável – emendei.
Daniel
sorriu sem mostrar os dentes e desviou os olhos.
_Sociável?
- olhou de novo – Gentileza sua dizer isso...
Sacudi
os ombros: _Foi só uma impressão inicial. Um choque de
realidade.
Ele
arregalou os olhos: _Devem falar muito mal de mim por aí, pra
você ficar assim tão chocada. Esperava encontrar um
animal enjaulado, choroso e doente, não é? Eu estou
muito bem, como pode ver. O que falam de mim por aí não
é importante. Não vou repetir o clichê do doente
mental preso no manicômio... você sabe, aquele que fica
dizendo que é inocente e não está louco... –
ele arregalou os olhos e sacudiu as mãos enquanto dizia estas
últimas palavras, não pude deixar de rir de sua mímica
– Contudo, o que dizem por aí ao meu respeito tem uma boa
carga de fantasia e má informação. – ele
continuou voltando ao tom gentil e ligeiramente sério de antes
- Muita gente me procura com excessiva cautela, como se eu pudesse
mordê-las através das cartas. Algumas pessoas se chocam
como você, já estou habituado a esse tipo de reações.
Sobre o que quer escrever, senhorita?... vou chamá-la de
Donna, embora eu saiba que esse não é o seu nome
verdadeiro.
_Eu não
quero escrever sobre você. - disse – Estou aqui em busca
inspiração para escrever um livro de ficção
policial. Sou escritora de novelas policiais.
Daniel
parou de sorrir e assumiu um ar de desprezo.
_Novelas
policiais...e veio até minha cela, como se eu estivesse num
zoológico. - disse sem qualquer traço da simpatia
anterior – Desculpe minha rudeza, mas eu esperava algo mais voltado
para a minha pessoa. Tenho alguns fãs que adorariam ler um
novo livro a meu respeito, mas ultimamente nenhum escritor parece
interessado em me retratar. Já faz um tempo que mídia
me esqueceu e mídia é algo que pode me ajudar nesse
momento...
Fiquei
tentada a perguntar se ele estava precisando de alguma coisa, mas
então me lembrei do conselho do Doutor Emerson, de não
barganhar com o Macabro.
Daniel
continuou a me olhar com desprezo:
_Quer
inspiração para escrever um livro policial? Quer uma
história, é isso? Só isso? - ele perguntou com
ironia – Não tem nada mais que eu possa fazer para ajudá-la?
Talvez esteja se sentindo solitária demais... sabia que pode
me visitar aqui dentro se quiser? Basta assinar um termo de
responsabilidade e formalizar o pedido para um juiz, mas se subornar
os guardas, estou certo de que eles deixam você entrar agora
mesmo. Quer ter um pouco de emoção? Ser fodida talvez?
Bem fodida, como nunca foi na sua vida?
Levantei da cadeira chocada com a brusca mudança no tom da
conversa. Era óbvio que aquele homem era maluco e ter vindo
até aquele lugar me pareceu um desperdício de tempo.
_Isso,
vá embora, diga lá fora o que quiser. Se não
pode me ajudar, é melhor não me atrapalhar o sossego.
Não tenho interesse em perder meu tempo, preciso é de
jornais, livros, uma janela, um rádio e um bom advogado. Se
não pode me ajudar nisso, não te dou história
alguma.
Não
barganhe, não barganhe, não barganhe... eu ficava
dizendo para mim mesma, mas pensei no esforço de ter vindo até
esse lugar, pensei na espectativa do meu editor e minha boca disse o
seguinte:
_Eu sou
apenas uma visitante, não tenho poder algum de mudar a sua
condição. Também não conheço
nenhum advogado que eu possa indicar...
_Mas me
faria um favor se pudesse, em troca de uma história? – disse
ele mudando de tom, parecendo simpático novamente.
Não
barganhe, não barganhe, não barganhe...
Balancei
a cabeça afirmativamente: _Depende... se estiver dentro das
regras desse hospital... dentro da lei... posso lhe fazer um favor em
troca de uma história, mas não estou aqui exatamente
buscando uma história. Quero dizer... eu estou buscando uma
impressão, um perfil para que possa usar numa ficção.
Não quero escrever uma biografia, porque meu público
leitor é popular. Escrevo estorinhas de mistério, que
são vendidas nas bancas de jornais e revistas das rodoviárias
do país. O que eu quero é construir um perfil de
assassino e talvez lançar meu primeiro grande romance
policial... Não quero ir para a literatura clássica,
nem para a literatura médica, porque meus leitores não
estão interessados na patologia do assassino, mas na anatomia
dos seus crimes. É ficção, um pouco mais
sofisticada do que o que eu costumo escrever. Não sou
literata, nem culta, sou apenas uma contadora de estórias para
entreter e divertir.
Daniel
continuou com aquele olhar desdém.
_E está
procurando uma oportunidade. - ele concluiu sem traço de
ironia - Me faria um favor se pudesse? Compreenda, estou apenas
tornando as coisas mais claras. Você não está
aqui porque é fã do personagem “Macabro”, nem
porque estuda psicologia e tem ambições de
“classificar” a minha “doença” - ele disse fazendo as
áspas com as pontas dos dedos e retornando ao tom irônico
– Está aqui porque quer que eu lhe preste um serviço.
Quer uma consultoria, não?
_Sim.
_Muito
bem. Eu sou profissional e cobro pelos meus serviços de
consultoria. Não preciso de dinheiro, preciso de um rádio,
uma janela, uma assinatura de algum jornal de atualidades, livros e
um bom advogado. Este é o meu preço. Você não
precisa pagar pelo advogado. Tenho dinheiro para isso, mas não
tenho um voluntário. Você terá que intermediar o
negócio. Pago o quanto ele quiser, desde que dentro das taxas
legais do serviço... pago também a assinatura do
jornal... do seu bolso eu só posso exigir um rádio de
pilhas e isso você consegue junto à diretoria, com ajuda
de um advogado...
Não
barganhe, não barganhe, não barganhe...
_Eu não
posso conseguir um advogado para você! Não conheço
nenhum e não posso sair por aí procurando. Tenho dois
empregos...
_Você
pode denunciar meu caso para a Comissão Internacional dos
Direitos Humanos...
_Você
mesmo pode fazer isso...
Daniel
riu: _Você acha que eu já não fiz? Só que
a diretoria do hospital tem o péssimo hábito de abrir a
correspondência alheia e fazer desaparecer as cartas que julgam
não ser adequadas. Nenhuma das cartas que escrevi para a
Comissão jamais foi respondida, porque jamais chegaram ao seu
destino! Não posso mencionar o assunto em outras
correspondências, porque o hospital censura tudo aquilo que
possa colocar seu poder de intervenção em risco e você
é a primeira pessoa que aparece aqui, desde muito tempo. Não
sei quando terei outra chance de denunciar os maus tratos e infrações
aos direitos fundamentais que venho sofrendo regularmente. Preciso de
um advogado para conseguir coisas simples, que qualquer presidiário,
seja desse hospital, seja de qualquer presídio, é
autorizado por lei a ter. Em qualquer lugar os presos assistem TV,
lêem jornal, ouvem rádio, fumam e até recebem
visitas íntimas. Para mim o tratamento é totalmente
diferente, como se não houvesse o princípio da
igualdade perante à lei. Não tenho direito ao pátio,
embora isso não me interesse tanto quanto ler as notícias
do dia a dia no jornal. Preciso de um rádio para ouvir música,
uma janela para respirar ar puro e leituras para alimentar a mente.
Não é muito o que peço, mas para tudo isso
preciso de um maldito advogado!
Daniel
levantou-se levemente perturbado. Perambulou pela cela, serviu-se de
um copo de água e retrucou:
_Eu não
quero ser mal educado. Desculpe-me pela minha indelicadeza. Podemos
conversar sobre alguma trivialidade? Nunca recebo visitas e não
quero parecer mal agradecido por você ter se disposto a vir até
aqui. Posso lhe presentear a gentileza com uma pequena história,
se estiver interessada em ouvir...
Daniel
falou sem ironia, mas também sem a gentileza inicial. Senti um
pouco de amargura no tom de sua voz .
Em suma
ele explicou o motivo de desejar tanto um advogado, além dos
pequenos confortos que a lei permitia a um preso com nível
superior de ensino.
_Eu
tenho direito à ampla defesa e a pedir uma revisão do
meu julgamento. Fui preso em 1982 e julgado em 1983, na vigência
da antiga Constituição, durante a ditadura militar. Na
prisão fui interrogado com métodos de tortura, fui
violentado pelos outros presos da cela onde estava e por ter me
defendido dessas agressões, fui considerado doente mental e
tive meus dentes arrancados por determinação judicial!
Sei que uma nova Constituição foi aprovada e que tenho
direito a uma revisão da minha sentença. Durante o meu
processo ninguém jamais investigou a hipótese da minha
inocência. Há anos venho tentando chamar a atenção
das instituições de defesa dos direitos humanos, para
que meu caso seja reavaliado.. Não cometi os crimes de que sou
acusado e sei quem plantou evidências contra mim. O advogado
que defendeu minha causa, não investigou o homem que acuso de
ter cometido aqueles crimes, não chamou-o a depor, não
apresentou o argumento... enfim. O que aconteceu comigo seria
inadmissível nos dias de hoje! Mereço um bom advogado
que possa reabrir o caso e provar minha inocência...
_Você
é inocente? – não consegui disfarçar uma
risada de incredulidade - Até onde sei foi pego em flagrante
serrando e embalando pedaços de um corpo humano na sua própria
casa. Foi preso, condenado e na prisão matou mais pessoas,
feriu seriamente uma enfermeira, infringiu leves ferimentos em outros
funcionários e internos... enfim, o senhor é
classificado como indivíduo de alta periculosidade, psocipata
paranóico, esquizofrênico, manipulador, mentiroso
compulsivo, maníaco sexual e altamente violento. Não
sou eu quem estou dizendo! Só estou relatando os pareceres que
li da imprensa e dos médicos...
_Eu não
quis dizer inocente de todas as acusações. Realmente
matei e feri pessoas na cadeia, mas não cometi os crimes de
que me acusam. Aqueles corpos mutilados apareceram na minha casa.
Estavam lá quando cheguei do consultório naquele dia.
Entrei em pânico sem saber o que fazer por um momento, mas
antes que decidisse qualquer coisa a polícia apareceu e me
levou para a cadeia. Eles disseram que eu havia sido denunciado por
uma testemunha anônima... Você percebe a armação?
Não foi testemunha coisa alguma, quem ligou para a polícia,
foi a mesma pessoa que matou e plantou aqueles corpos na minha casa!
Não me importa se acredita ou não no que estou dizendo.
A verdade é que tenho direito a uma revisão do caso. É
um direito constitucional e os meus têm sido constantemente
negligenciados. Se fizer uma denúncia para a Comissão
Internacional dos Direitos Humanos, tenho certeza de que eles se
sensibilizarão a enviar um ouvidor e poderei, enfim, ter um
advogado.
Baixei a
cabeça e suspirei. Não barganhe, não barganhe,
não barganhe...
_Entendo
sua situação. Façamos o seguinte: escreva uma
carta para a Comissão e eu cobrarei a postagem da Diretoria
desse Hospital.
Daniel
olhou-me de esguelha, desconfiado:
_Como
assim, irá cobrar a postagem?
_Eles
deverão me deixar postar a carta, com minhas próprias
mãos. Até onde sei, isso não é crime.
_Eles
não deixarão você sair daqui com uma carta minha
para a Comissão Internacional de Direitos Humanos.
_Deixarão.
Eu sou uma escritora, posso escrever sobre isso...
Os olhos
dele brilharam e pude ver o interesse renovado neles. Imediatamente
Daniel retomou assento e sorridente perguntou:
_Como
você vê esse seu assassino ficcional? Já deve ter
um boneco dele, não? Alguns traços gerais de
personalidade, alguma característica específica...
fale-me sobre ele.
Suspirei
feliz por termos encerrado aquele assunto de advogados e inocência.
Finalmente ele abordava a questão que me interessava. Ajeitei
minha postura na cadeira e procurei falar sem muita empolgação,
mas também sem imprimir tédio no tom de voz. Queria
capturar-lhe a atenção, que era o único modo de
conquistar sua disposição para me ajudar.
_Imagino-o como um criminoso sofisticado, em liberdade porque está
acima de qualquer suspeita. Um assassino profissional, que mata por
dinheiro. Eu sei que é um cliché, mas meus leitores são
leitores de clichés. O que eu queria na verdade é que
me sugerisse um perfil mais realista, que se diferenciasse um pouco
desse cliché. Por isso estou aqui observando você...
Posso até me interessar pela sua história e escrever
uma biografia, por que não? Mas não posso dizer por
hora que é isso o que vou fazer. Preciso de uma amostra
grátis, por assim dizer. Não quero ofender você,
se é que me entende. Só estou tentando ganhar a vida...
é o meu trabalho inventar personagens. Sou mais ou menos como
jornalista. Quero ouvir suas histórias, para que sirvam de
inspiração para aquilo que estou escrevendo, mas não
estou documentando...
_Entendi tudo isso da primeira vez que pus os olhos em você, não precisa se justificar. Já sei o que quer e sei como posso te ajudar. Tenho um preço e você prometeu pagar a primeira prestação. Vou escrever a carta esta tarde. Volte amanhã e a terá. Terá também uma história.
Dizendo isso Daniel virou as costas para o vidro e completou: _Acho que esta visita está encerrada senhorita Donna.
Saí daquela ala e enquanto passava pela sala de vigilância, Jaderson me alertou:
_É tudo mentira dele senhora Donna. Ele matou todas aquelas pessoas sim. Só está dizendo isso porque acha que você pode sentir pena dele e ajudá-lo. Não deixe ele te manipular.
_Eu sei que pode ser tudo mentira, mas ele tem o direito de escrever uma denúncia à Comissão de Direitos Humanos se quiser.
_Ele escreve e as cartas são enviadas. A Comissão Internacional é que não responde porque não quer. Ninguém quer ajudar esse cara aí.
_Por que não?
Jaderson e o outro guarda arregalaram os olhos na minha direção como se eu tivesse dito ou feito uma grande estupidez.
_Senhora Donna, a senhora não sabe o que ele faz quando chega perto de uma pessoa?
_Ouvi dizer que ele as ataca.
_E mata e come! Ele não pode conviver com ninguém, porque tenta matar todo mundo que se aproxima. Ele está te manipulando, não porque tem esperanças de conseguir qualquer coisa dessas que ele pediu, mas porque quer ver se a senhora aceita ajudar ele... - Jaderson riu – Vai vendo... esse aí é completamente desparafusado, só que não diz besteira não... ele tenta entrar na sua cabeça, isso sim e se você deixar ele faz uma bagunça danada lá dentro. Conheci o interno que se matou por conta disso, tinha um faxineiro aqui também, que pediu transferência para outra ala, porque não aguentava os assédios do Macabro. O cara não é moleza não. Ainda bem que não é sua obrigação vir aqui todo dia como nós. A gente é que sabe o que sofre na mão dele. Não é Zico?
O outro guarda grunhiu um sim e completou:
_Ele vai espremer você como laranja e jogar o bagaço fora.
Agradeci aos conselhos daqueles carcereiros e saí do hospital meio perturbada.
_Entendi tudo isso da primeira vez que pus os olhos em você, não precisa se justificar. Já sei o que quer e sei como posso te ajudar. Tenho um preço e você prometeu pagar a primeira prestação. Vou escrever a carta esta tarde. Volte amanhã e a terá. Terá também uma história.
Dizendo isso Daniel virou as costas para o vidro e completou: _Acho que esta visita está encerrada senhorita Donna.
Saí daquela ala e enquanto passava pela sala de vigilância, Jaderson me alertou:
_É tudo mentira dele senhora Donna. Ele matou todas aquelas pessoas sim. Só está dizendo isso porque acha que você pode sentir pena dele e ajudá-lo. Não deixe ele te manipular.
_Eu sei que pode ser tudo mentira, mas ele tem o direito de escrever uma denúncia à Comissão de Direitos Humanos se quiser.
_Ele escreve e as cartas são enviadas. A Comissão Internacional é que não responde porque não quer. Ninguém quer ajudar esse cara aí.
_Por que não?
Jaderson e o outro guarda arregalaram os olhos na minha direção como se eu tivesse dito ou feito uma grande estupidez.
_Senhora Donna, a senhora não sabe o que ele faz quando chega perto de uma pessoa?
_Ouvi dizer que ele as ataca.
_E mata e come! Ele não pode conviver com ninguém, porque tenta matar todo mundo que se aproxima. Ele está te manipulando, não porque tem esperanças de conseguir qualquer coisa dessas que ele pediu, mas porque quer ver se a senhora aceita ajudar ele... - Jaderson riu – Vai vendo... esse aí é completamente desparafusado, só que não diz besteira não... ele tenta entrar na sua cabeça, isso sim e se você deixar ele faz uma bagunça danada lá dentro. Conheci o interno que se matou por conta disso, tinha um faxineiro aqui também, que pediu transferência para outra ala, porque não aguentava os assédios do Macabro. O cara não é moleza não. Ainda bem que não é sua obrigação vir aqui todo dia como nós. A gente é que sabe o que sofre na mão dele. Não é Zico?
O outro guarda grunhiu um sim e completou:
_Ele vai espremer você como laranja e jogar o bagaço fora.
Agradeci aos conselhos daqueles carcereiros e saí do hospital meio perturbada.
O doutor Emerson tinha saído para o almoço, assim não
o encontrei naquele dia e não pude trocar com ninguém
minhas primeiras impressões sobre o Doutor Macabro.
No pensionato as mulheres tentaram me abordar, mas dei a desculpa de querer comer alguma coisa e saí a esmo pela cidade. Já não chovia, muito embora o dia estivesse nublado e o frio fosse bastante inconveniente. Acabei indo parar num restaurante onde pude matar duas horas diante de algumas batatas, um bife duro e uma garrafa de refrigerantes enquanto fazia perguntas ao balconista sobre a cidade. No caderno anotei estas impressões enquanto convencia a mim mesma de que eu havia me saído bem neste primeiro contato.
TERCEIRA PARTE
No pensionato as mulheres tentaram me abordar, mas dei a desculpa de querer comer alguma coisa e saí a esmo pela cidade. Já não chovia, muito embora o dia estivesse nublado e o frio fosse bastante inconveniente. Acabei indo parar num restaurante onde pude matar duas horas diante de algumas batatas, um bife duro e uma garrafa de refrigerantes enquanto fazia perguntas ao balconista sobre a cidade. No caderno anotei estas impressões enquanto convencia a mim mesma de que eu havia me saído bem neste primeiro contato.
TERCEIRA PARTE
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