Conto: ATÉ O ÚLTIMO PEDAÇO pt.2

PRIMEIRA VISITA

             Na manhã seguinte tomei um táxi e fui para o hospital. Lá fui novamente levada diante da “junta médica”. Já havia uma espécie de consenso entre eles a meu respeito e a recepção que me deram não foi nem de longe parecida com a falsa hospitalidade do dia anterior.
          _As regras aqui são muito rígidas – disse o diretor Marcelo de-cabelos-tingidos-de-preto-e-bigode-de-salafrário – Não costumamos permitir este tipo de visitas, porque isso afeta a rotina dos internos e só Deus sabe como eles dependem da rotina, como nós dependemos da rotina para manter tudo sob controle. Por sorte o Doutor Daniel fica numa ala especial, separada do restante dos internos, cujo o acesso é ainda mais restrito. Decidimos autorizar suas visitas, desde que você concorde em não transitar por outras dependências do hospital...
         Ele me encarou e fiquei pensando no que eu haveria de ver se ficasse andando por aí, sem a vigilância da diretoria...
           _Concordo. - disse balançando a cabeça.
       Em seguida Marcelo repetiu tudo aquilo que Rodrigo me tinha dito ao telefone: eu deveria escrever um artigo sobre o hospital, baseando-me no material de publicidade institucional. Em outras palavras, eu deveria mentir sobre aquele lugar, passando a impressão de que todos os problemas anteriores haviam sido resolvidos, que os internos sentiam-se como no paraíso, que a junta médica era a mais bem equipada e preparada para a tarefa de curar as enfermidades mentais daqueles presidiários e que tudo o que eles precisavam era de um pouco mais de verbas...
          Marcelo parecia não querer mais perder seu tempo comigo e indicou o Dr. Emerson Bachi para servir-me de guia naquela primeira visita ao Dr. Macabro.
          _Ele irá levá-la até o Dr. Daniel e lhe explicar as regras.
           Emerson levantou-se e me indicou a porta. Já do lado de fora ele começou a falar:
       _O Doutor Daniel Malbenito fica numa cela especial, feita com vidro blindado de dois centímetros de espessura. Tivemos que adaptá-la para ele, porque ele costumava agarrar os faxineiros, guardas e internos através das barras. Nós tentamos colocá-lo num quarto, com uma porta e uma portinhola de vigilância, mas esse sistema não funcionou porque ele se escondia das nossas vistas e sempre tentava atacar quem quer que entrasse ali. A solução do vidro blindado trouxe paz aos funcionários que precisam vez por outra se aproximar dele. Temos uma câmera de áudio e vídeo que filma todas as atividades do Doutor. Você não precisa se preocupar, o vidro não pode ser quebrado e estaremos de olho em tudo. No entanto – Emerson fez uma pausa enquanto me indicava a direção. Encarou-me nos olhos, pude ver que tinha um rosto bonito, não carregado como o dos outros membros da junta médica e deduzi que ele era novo ali -, o Doutor Daniel não é perigoso apenas fisicamente. Há alguns anos um interno que ficava na mesma ala desse hospital, cometeu suicídio dentro da cela. Ele mordeu os próprios pulsos e sangrou até morrer. Os outros internos da ala disseram que o Doutor conversava com ele dia e noite... suspeitamos que o suicídio foi cometido por influência do Daniel.
         Emerson parou de caminhar e me encarou nos olhos. Era alto, cabeça e meia maior do que eu e seus olhos castanhos me fixaram:
          _Não sei por que você quer tanto falar com ele. Não sei se ele aceitará conversar com você, mas se aceitar, não deixe ele entrar na sua cabeça. Evite assuntos pessoais, não diga seu nome verdadeiro, nem onde mora, nem qualquer outra coisa que possa levá-lo a deduzir isso. Nós suspeitamos que o Doutor tenha um simpatizante, por assim dizer, que está solto. Você deve saber que o primeiro advogado dele morreu brutalmente assassinado dias depois da sentença do juiz, sobre a extração de seus dentes... - a afirmação soou como pergunta e eu balancei a cabeça – O culpado jamais foi encontrado e apesar de monitorarmos todas as correspondências do Doutor, não sabemos se ele é capaz de se comunicar com este simpatizante, ele pode ter algum tipo de código...
          _O Doutor recebe muitas correspondências? - perguntei achando aquela informação interessante.
        _Houve um tempo em que ele recebia muitas cartas do mundo inteiro! - Emerson respondeu – Hoje em dia ele recebe uma ou outra, de vez em quando, geralmente de jornalistas, psiquiatras e psicólogos... todos querem alguma coisa dele...
           _E como ele responde?
        _Sempre educadamente. Não fala sobre seus crimes e às vezes mostra-se solícito a resolver outros tipos de problemas.
           _Que problemas?
          _Coisas que ele deduz ao ler as cartas. - Nós descíamos as escadas para o primeiro piso e suas palavras ecoaram nas paredes vazias daquela ala administrativa – Ele percebe coisas... tem uma visão muito... muito... observadora. Costuma dizer que as pessoas atraídas para as histórias dos crimes brutais, são pessoas frustradas, amorosa, ou profissionalmente em sua maioria e que precisam de cuidados especiais...
           _Então ele quer ajudar essas pessoas?
           Emerson riu:
          _Ele não sente este tipo de empatia. Responde positivamente porque não tem nada melhor para fazer. Estas cartas lhe quebram a rotina, mas não posso dizer que ele ajuda essas pessoas, só as usa para se gabar de sua capacidade intelectual. Faz isso por vaidade, não por bondade... Não se iluda. O Doutor Daniel não é humano. Quero dizer... não tem sentimentos comuns aos seres humanos como empatia, amor, solidariedade, compaixão... tome cuidado com ele.
      Saímos da ala administrativa, atravessando um pequeno pátio ornamentado com vasos de samambaias desgrenhadas. Entramos por uma porta eletronicamente travada e depois de algumas palavras trocadas com os guardas, recebi um crachá amarelo.
         _Escreva seu nome aí. - disse Emerson estendendo uma caneta – Não seu nome verdadeiro, mas um apelido qualquer, apenas para que possamos identificá-la.
         Sem pensar duas vezes redigi o pseudônimo: “Donna”
        Emerson franziu o cenho por um instante e fiquei tentada a perguntar se havia algum problema com o nome, mas ele já estava caminhando novamente pelos corredores. Segui-o e percebi que ele me conduzia através das passagens de serviços do hospital, sem nunca entrar na ala dos internos propriamente dita. Não pude deixar de pensar como seriam as coisas do outro lado daquelas paredes. No dia anterior, quando minha visita era aguardada, todos os internos provavelmente tinham recebido instruções, roupas limpas e alguns privilégios raros. Hoje as coisas deviam ter voltado ao seu ritmo normal e me lembrei das palavras de Chico Fuma, sobre os internos dali estarem em condições parecidas com a dos “judeus do holocausto nazista”.
           Emerson me conduziu através de um corredor que cheirava à creolina até uma porta corta-fogo. Ela abria-se para um lance de escadas que conduzia ao subsolo do edifício, onde ficava a ala de “alta periculosidade”. Ao final da escada, passamos por mais uma porta travada eletronicamente, onde dois guardas monitoravam os presos através de pequenos televisores.
         Fui apresentada aos guardas, que me devolveram olhares de desconfiança, em seguida um deles destrancou um portão de barras de ferro para nos dar passagem.
Caminhamos pelo corredor onde pude ver celas de ambos os lados, com seus respectivos internos atrás das grades. Alguns tinham aparência assustadora, de verdadeiros animais, outros pareciam normais, alguns manifestaram entusiasmo ao me verem e chegaram a fazer comentários obscenos, outros limitaram-se a me olhar com desprezo. O Doutor Emerson foi a vítima mais constante dos insultos de um determinado presidiário, mas ele continuou caminhando como se não tivesse ouvido nada.
Dobramos a quina do corredor à direita. Emerson parou por um momento e me olhou uma última vez:
_A cela do Doutor Daniel é a última. Vou mandar o Jaderson lhe trazer uma cadeira. Você tem certeza de que quer isso mesmo?
_Vim aqui para isso...
_Então lembre-se: não deixe ele entrar na sua cabeça. Esse homem é o tipo mais perigoso de psicopata. Ele é manipulador e extremamente persuasivo. Tenha cuidado. Não lhe dê nada. Não lhe empreste caneta, papel, lápis, ou qualquer outro objeto. Não lhe faça promessas, não barganhe e principalmente: não o subestime. Ele é extremamente inteligente, apesar de ser mentalmente doente. Não pense que sua doença o impede de raciocinar logicamente. – ele me olhava diretamente nos olhos, certificando-se de que eu estava atenta às suas recomendações - Vou deixá-la aqui. Ele não gosta muito de mim e não quero que me veja. Boa sorte.
Dizendo essas palavras o Doutor Emerson saiu apressado e ao passar diante da cela do interno que o tinha insultado, ele lhe fez um cumprimento com as mãos.
_Filho da puta! Desgraçado! Entra aqui se for homem! Seu covarde! Seu viado! - gritou o detento de volta.
Naquele corredor, onde estava a cela do Doutor Daniel, não havia nenhum detento. As celas vazias estavam empoeiradas e sem colchões, como se tivessem sido abandonadas há um bom tempo. As palavras do Doutor Emerson voltaram à minha mente e por um instante hesitei em continuar. No fim do corredor pude ouvir um assobio, um tema musical que me pareceu familiar. O Doutor Daniel, o Macabro, tocava uma música para mim...
Quase gritei quando senti uma mão me tocar.
Era Jaderson, que tinha trazido uma cadeira.
_Vamos? - ele sinalizou para o fim do corredor, convidando-me a segui-lo quase como um desafio.
Já tinha visto fotos do Doutor Daniel durante a pesquisa que fiz sobre ele. Era um homem jovem quando foi preso, doze anos antes. Tinha então trinta e seis anos, cabelos pretos, pele branca, olhos pretos, nariz ligeiramente aquilino, boca pequena, lábios bem desenhados, queixo levemente protuberante, cerca de um metro e setenta e cinco de altura e magro. Não era um homem feio.
Doze anos depois, a visão que tive me deixou um tanto perturbada.
Chegamos diante da cela e o Doutor Daniel estava semi-nu, de ponta cabeças, apoiado pelas mãos, esticado em perfeito equilíbrio, há alguns centímetros da parede do fundo de sua cela. Ao ver-nos, sorriu e lentamente desceu as pernas até o chão, voltando à posição natural, de costas para nós.
Pude ver que ele não estava magro como nas fotos, mas sua massa corporal não era de gordura. Era visível que o Doutor usava suas horas ociosas para exercitar-se e tinha músculos fortes por todos os lados. O corpo dele me fez lembrar o daquele falecido ator chinês, mestre em kung-fu, chamado Bruce Lee. Era surpreendente que ele conseguisse manter aquela forma exercitando-se somente naquela cela pequena.
Sem qualquer pressa ele pegou uma toalha e secou o suor que lhe escorria pelo pescoço, antes de virar-se de frente. Seus cabelos estavam começando a ficar grisalhos, eram compridos até os ombros e estavam presos num rabo de cavalo por um elástico.
_Você devia ter me avisado que a visita viria antes do almoço, Jaderson. - ele disse com uma voz ligeiramente rouca, num tom compassado, soando a advertência quase com gentileza, como teria dito a uma criança. Virou-se de frente para nós. Seu rosto não havia mudado. Ainda poderia passar-se por um homem de trinta e tantos anos. Não tinha rugas, nem manchas. Ele sorria e seu sorriso mostrava próteses dentárias muito bem feitas.
Que merda! Pensei. Se encontrasse um homem assim num bar, eu o teria paquerado...
_Bom dia. - ele disse cordialmente – Desculpe-me pela bagunça, mas eu não esperava sua visita antes do almoço. Achei que viria no horário regular. Se alguém tivesse me avisado que viria a essa hora eu teria me preparado melhor.
_Se preferir que eu volte em outra hora... - disse sentindo o suor nas palmas das mãos, tentando controlar a respiração que de repente ficou difícil.
_Não! Absolutamente! - disse sacudindo a cabeça – Só peço que não repare no suor, nem na bagunça da minha cela. Imagino que levou um susto ao ver-me de ponta cabeças – ele sorriu novamente -, mas isso é só uma rotina de exercícios. Eu gosto de me exercitar pela manhã...
Jaderson ajeitou a cadeira diante da cela e murmurou: _Não chega perto do vidro, nem passa nada para ele pela gaveta. - balancei a cabeça em concordância e depois, dirigindo-se ao Doutor ele disse mais alto – Fica comportado Doutor Daniel, a moça só quer lhe fazer algumas perguntas.
_Claro Jaderson! Quem você pensa que eu sou? Um bárbaro?
Jaderson grunhiu qualquer coisa e depois de me lançar mais um olhar enviesado, saiu deixando-me sozinha com o “Doutor Macabro”.
Fiquei olhando para aquele homem na cela blindada. Apesar de já tê-lo visto nas fotos, a impressão pessoal não era tão assustadora quanto a fama que o precedia. Como disse, eu poderia tê-lo paquerado num bar se o encontrasse sem saber de sua história, pois ele era um homem bonito, asseado, com um brilho de inteligência nítido no olhar, sorriso largo, sem qualquer traço aparente de doença mental.
Procurei um tema para iniciarmos a conversa. Queria causar-lhe boa impressão, parecer amigável, sem excessos desnecessários e principalmente, sem qualquer traço de piedade.
Antes que eu partisse para a devida apresentação o Daniel largou a toalha sobre a cama de alvenaria, vestiu uma camiseta e puxou uma cadeira de plástico, sentando-se e apontando para a minha cadeira, para que eu fizesse o mesmo.
_Imagino que veio atrás de uma boa história para escrever... -ele disse.
_Ah... - disfarcei um engasgo com o ato de sentar – Já te contaram...
_Não. - ele respondeu me interrompendo – Disseram tão somente que eu receberia uma visita, mas não explicaram a natureza dela. Deduzo que veio atrás de uma boa história para escrever, porque posso ver daqui o seu calo de escritor, no dedo médio da mão direita. Contudo... - os olhos dele apertaram-se na minha direção e ele maneou a cabeça ligeiramente – Você não me parece jornalista... não tem aquele brilho de ansiedade nos olhos. - ele sentou-se e relaxou - Também não parece ser estudante... Se me permite a indelicadeza, você é muito velha para ser estudante, a menos que esteja escrevendo alguma tese de pós graduação... mas então, teria sido mais apropriado vir com um gravador, ao invés de um caderno e uma caneta... - ele fez uma pausa e me encarou com mais firmeza. - Bem... estou em dúvida – continuou -. Não sei se é estudante de pós graduação, ou escritora de ficção, mas sei que não se chama “Donna”. Este não é um nome brasileiro e mesmo aquelas mulheres pobres, que dão nomes estrangeirados aos seus filhos, para que eles pareçam mais importantes do que são, não lhe dariam um nome desses... “Donna” soa como “dona”, que no Brasil é sinônimo de “possuidora de bens” e que tornou-se um pronome de tratamento, dado o fato de nossa cultura ter evoluído a partir de relações aristocráticas e autoritárias. Nenhuma mulher pobre se arriscaria a chamar a própria filha de “dona”, porque isso soaria confuso aos ouvidos dos outros. Dona de quê? As pessoas perguntariam... - Daniel deu uma gargalhada – Não me leve a mal... eu não tenho muito o que fazer aqui dentro, então, quando recebo uma visita, gosto de saboreá-la ao máximo, por assim dizer...
          Senti um calafrio que veio dos ossos até os cabelos e quis de repente sair correndo dali.
          O que é que eu to fazendo aqui? Perguntei de repente a mim mesma.
          _Não se incomode... - foi o que consegui balbuciar – Fique à vontade.
          Daniel balançou a cabeça ligeiramente, fixou seu olhar em mim por um instante e perguntou se eu queria beber um copo de água, ou café.
        _É o que tenho para servi-la. - ele disse apontando para uma mesinha onde havia uma garrafa plástica e outra térmica.
           Observei a cela.
           O cubículo devia ter cerca de oito metros quadrados. Do lado esquerdo havia uma cama de alvenaria, forrada com um colchão fino que parecia desconfortável, alguns cobertores meio desalinhados e um travesseiro baixo. Aos fundos havia um vaso sanitário e uma pia, do lado direito uma mesinha de plástico contendo as garrafas, alguns copos descartáveis e um pacote de biscoitos de água e sal. Sobre a mesinha, incrustada na parede, havia uma prateleira também de alvenaria, onde estava um calhamaço de papel sulfite, uma carga de caneta sem o invólucro e um livro. Ao lado da mesinha havia uma porta com barras de ferro, trancada eletronicamente e que levava a uma sala ao lado, por onde Daniel entrava e saía quando ia ao pátio, ou à clínica. Não havia janelas e o ar circulava através de orifícios arredondados no blindex. Não havia desenhos nas paredes, nem qualquer outro tipo de ornamento típico das celas de presidiários. O interior daquele cubículo estava imaculadamente branco como se tivesse sido recentemente pintado.
         _Desculpe-me por fazer estas deduções a seu respeito. - ele continuou falando com aquele mesmo tom de gentileza – É uma distração... um entretenimento...
            _Como eu disse, fique à vontade... - respondi devolvendo o tom de gentileza em igual medida.
          Daniel sorriu: _Obrigado. E já que está assim disposta, devo dizer que percebi que é solteira. Não tem alianças em nenhuma das mãos, nem marcas recentes nos dedos... acho que julga-se uma mulher inteligente. As mulheres inteligentes tendem a ser relapsas com sua própria aparência. Mulheres inteligentes em geral desprezam a vaidade. Acreditam que irão atrair os homens certos através de outras qualidades. Acreditam que os homens certos são aqueles capazes de ver através dos artifícios da vaidade e que buscam o mesmo que elas: parceiros unidos pelo intelecto e não pelas aparências. - ele riu timidamente antes de continuar: - Infelizmente as mulheres inteligentes são estúpidas quando acreditam nisso. - desta vez sua voz soou um tanto irônica – Porque os homens realmente não se interessam tanto pelo conteúdo, quanto pela forma e isso faz com que a maioria das mulheres inteligentes e relapsas com sua aparência, permaneçam solitárias. - Seu rosto ficou sério, quase pesaroso – Não quero ofendê-la, acredite. Só estou lhe dando um conselho: cuide melhor de sua aparência, você não é nem um pouco feia, mas tem medo da própria beleza. Teme não ser levada a sério pelo mundo do trabalho, se estiver bem cuidada e bonita. Pode ser que encontre em seu caminho homens mais interessados em sua aparência, do que na inteligência que acredita ter, mas isso fará de você uma mulher mais feliz, menos solitária, menos disposta a arriscar-se tanto na vida. A propósito, vejo também que não é do estado de São Paulo. Não está apropriadamente vestida para esta última frente fria. Deve ter vindo de uma região mais quente, pois está vestindo muitas blusas sobrepostas, ao invés de lã e um grosso casaco... De onde veio? Certamente que não veio do nordeste, pois não há editoras significativas naquela região. Imagino que veio do Rio de Janeiro, mas não é natural daquele estado, pois não tem aquele sotaque irritante dos cariocas... acho que nasceu no interior de São Paulo, ou talvez no sul de Minas, mas mudou-se para o Rio de Janeiro há alguns anos – Daniel riu – É uma caipira tentando a grande chance na capital...
         Não sei dizer o que senti com aquela torrente de deduções corretas ao meu respeito e já não sabia mais como retomar a palavra, aliás eu não havia dito nada além de “fique à vontade”... Fiquei perdida e assim permiti que ele continuasse falando. O máximo que pude fazer foi tomar anotações mentais sobre seu comportamento, seu ambiente, acreditando que essas observações poderiam ser úteis mais tarde, quando eu deveria refletir, avaliar e buscar um meio de abordar a conversa nas visitas futuras.
         Ele riu como se tivesse percebido meu embaraço e sacudiu uma das mãos, levantando-se da cadeira e indo até a mesinha. Serviu dois copos de café, pôs um deles na gaveta de comunicação do blindex, empurrando-a na minha direção.
          _Tome café comigo.
          Aceitei a gentileza apesar das recomendações do carcereiro Jaderson.
         _Infelizmente não é um bom café. Gosto de café com paladar duro, torra em grau três, moagem fina e sem açúcar. Este café foi colhido verde e torrado demais para compensar, foi moído grosseiramente e mesmo que eu implore para que não o adocem, ele sempre vem melado. O resultado, como pode ver, é de um café excessivamente aguado, com um ranço amargo, que nem o açúcar é capaz de disfarçar. Tem gosto de cueca mal lavada, mas é um dos poucos luxos que me restam...
         Ri da comparação. Como o Doutor poderia saber que gosto tem uma cueca mal lavada? Então me lembrei da natureza de seus crimes e parei de rir. Talvez ele soubesse...
         Experimentei o café que me pareceu exatamente como ele havia descrito, mesmo assim a bebida ainda quente caiu bem no meu estômago.
         _O senhor acertou quase tudo o que disse a meu respeito... - falei – Não esperava por este frio e tive que improvisar usando de uma só vez todas as roupas que trouxe. - ri estupidamente e fechei a boca assim que percebi isso.
         Ele sorriu: _Chame-me por Daniel. O tratamento de senhor é um dado cultural que demonstra sua origem humilde. É óbvio que você não tem dinheiro, senão não estaria aqui trabalhando, mas no mundo dos negócios, se quiser ser bem sucedida, é bom fazer as pessoas pensarem que veio de uma família tradicional que tem, ou já teve posses... numa família assim você jamais seria ensinada a chamar as pessoas por esta forma de tratamento, exceto é claro, aos velhos. Tratar homens jovens, ou de meia idade por “senhor” demonstra subserviência, submissão... você jamais conseguirá promoções na empresa, ou oportunidades de gerenciar negócios comportando-se como uma caipira descendente de escravos. - ele sorriu – Desculpe-me novamente. Não tenho recebido muitas visitas ultimamente e devo confessar que esse isolamento prolongado me fez esquecer os bons modos. Sei que vai dizer que não se incomoda, que eu fique à vontade, mas o resultado disso é que desconheço até agora, exatamente, em que posso ajudá-la. Por favor, tome a palavra.
         Tomei fôlego, eu estava nervosa e quanto mais tentava disfarçar esse incômodo, mais aparente ele se tornava. Percebi que tinha de escolher bem as palavras antes de abrir a boca. Aquele homem na minha frente tinha se formado em Medicina aos vinte e quatro anos, especializando-se em Cirurgia Plástica e Psicologia. Sua tese de Doutorado intitulava-se: “Sagrado e Profano na Figura Feminina da Mitologia Clássica: perspectiva Histórica e Comparativa do Tema na Literatura Medieval e na Literatura Médica do século XIX e XX.”
         Uma olhada superficial no livro, mostrava citações de obras sobre mitologia que ele tinha lido no original, ou seja, em grego e latim. O sumário tinha trinta páginas de títulos citados na obra... O Doutor Daniel tinha sido formado no melhor colégio de São Paulo em sua época, havia se diplomado pela USP em medicina e na sequência viajara para a Europa, onde se especializou em psiquiatria com passagens por universidades na França e Alemanha.
         Enfim... a lista de seus feitos era extensa e precoce. A educação dele estava muito além da minha e não adiantava ficar me sentindo estúpida, ao contrário, me admirei pensando que poderia aprender muita coisa com aquele homem, se estivesse disposta a ouvi-lo com atenção.
         _Bem, não sei por onde começar, acho que estou nervosa...
         Daniel teve um sobressalto.
       _Nervosa? Não há razão para estar nervosa, eu estou aqui dentro e você está aí fora. Não vou atacá-la.
         E me atacaria se pudesse...- pensei.
          Apertei os lábios e suspirei: _Não estou nervosa porque estou com medo. Estou nervosa porque não sei o que esperar. Você não se parece com a imagem mental que eu tive, a partir do que li e ouvi a seu respeito.
           Ele sacudiu a cabeça: _E o que você esperava encontrar?
         _Alguém menos si... - eu ia dizer “simpático”, mas achei que isso alimentaria a vaidade dele e poderia gerar um mal entendido entre nós - Menos sociável – emendei.
           Daniel sorriu sem mostrar os dentes e desviou os olhos.
         _Sociável? - olhou de novo – Gentileza sua dizer isso...
         Sacudi os ombros: _Foi só uma impressão inicial. Um choque de realidade.
          Ele arregalou os olhos: _Devem falar muito mal de mim por aí, pra você ficar assim tão chocada. Esperava encontrar um animal enjaulado, choroso e doente, não é? Eu estou muito bem, como pode ver. O que falam de mim por aí não é importante. Não vou repetir o clichê do doente mental preso no manicômio... você sabe, aquele que fica dizendo que é inocente e não está louco... – ele arregalou os olhos e sacudiu as mãos enquanto dizia estas últimas palavras, não pude deixar de rir de sua mímica – Contudo, o que dizem por aí ao meu respeito tem uma boa carga de fantasia e má informação. – ele continuou voltando ao tom gentil e ligeiramente sério de antes - Muita gente me procura com excessiva cautela, como se eu pudesse mordê-las através das cartas. Algumas pessoas se chocam como você, já estou habituado a esse tipo de reações. Sobre o que quer escrever, senhorita?... vou chamá-la de Donna, embora eu saiba que esse não é o seu nome verdadeiro.
         _Eu não quero escrever sobre você. - disse – Estou aqui em busca inspiração para escrever um livro de ficção policial. Sou escritora de novelas policiais.
         Daniel parou de sorrir e assumiu um ar de desprezo.
         _Novelas policiais...e veio até minha cela, como se eu estivesse num zoológico. - disse sem qualquer traço da simpatia anterior – Desculpe minha rudeza, mas eu esperava algo mais voltado para a minha pessoa. Tenho alguns fãs que adorariam ler um novo livro a meu respeito, mas ultimamente nenhum escritor parece interessado em me retratar. Já faz um tempo que mídia me esqueceu e mídia é algo que pode me ajudar nesse momento...
          Fiquei tentada a perguntar se ele estava precisando de alguma coisa, mas então me lembrei do conselho do Doutor Emerson, de não barganhar com o Macabro.
Daniel continuou a me olhar com desprezo:
        _Quer inspiração para escrever um livro policial? Quer uma história, é isso? Só isso? - ele perguntou com ironia – Não tem nada mais que eu possa fazer para ajudá-la? Talvez esteja se sentindo solitária demais... sabia que pode me visitar aqui dentro se quiser? Basta assinar um termo de responsabilidade e formalizar o pedido para um juiz, mas se subornar os guardas, estou certo de que eles deixam você entrar agora mesmo. Quer ter um pouco de emoção? Ser fodida talvez? Bem fodida, como nunca foi na sua vida?
          Levantei da cadeira chocada com a brusca mudança no tom da conversa. Era óbvio que aquele homem era maluco e ter vindo até aquele lugar me pareceu um desperdício de tempo.
         _Isso, vá embora, diga lá fora o que quiser. Se não pode me ajudar, é melhor não me atrapalhar o sossego. Não tenho interesse em perder meu tempo, preciso é de jornais, livros, uma janela, um rádio e um bom advogado. Se não pode me ajudar nisso, não te dou história alguma.
         Não barganhe, não barganhe, não barganhe... eu ficava dizendo para mim mesma, mas pensei no esforço de ter vindo até esse lugar, pensei na espectativa do meu editor e minha boca disse o seguinte:
       _Eu sou apenas uma visitante, não tenho poder algum de mudar a sua condição. Também não conheço nenhum advogado que eu possa indicar...
        _Mas me faria um favor se pudesse, em troca de uma história? – disse ele mudando de tom, parecendo simpático novamente.
          Não barganhe, não barganhe, não barganhe...
          Balancei a cabeça afirmativamente: _Depende... se estiver dentro das regras desse hospital... dentro da lei... posso lhe fazer um favor em troca de uma história, mas não estou aqui exatamente buscando uma história. Quero dizer... eu estou buscando uma impressão, um perfil para que possa usar numa ficção. Não quero escrever uma biografia, porque meu público leitor é popular. Escrevo estorinhas de mistério, que são vendidas nas bancas de jornais e revistas das rodoviárias do país. O que eu quero é construir um perfil de assassino e talvez lançar meu primeiro grande romance policial... Não quero ir para a literatura clássica, nem para a literatura médica, porque meus leitores não estão interessados na patologia do assassino, mas na anatomia dos seus crimes. É ficção, um pouco mais sofisticada do que o que eu costumo escrever. Não sou literata, nem culta, sou apenas uma contadora de estórias para entreter e divertir.
          Daniel continuou com aquele olhar desdém.
          _E está procurando uma oportunidade. - ele concluiu sem traço de ironia - Me faria um favor se pudesse? Compreenda, estou apenas tornando as coisas mais claras. Você não está aqui porque é fã do personagem “Macabro”, nem porque estuda psicologia e tem ambições de “classificar” a minha “doença” - ele disse fazendo as áspas com as pontas dos dedos e retornando ao tom irônico – Está aqui porque quer que eu lhe preste um serviço. Quer uma consultoria, não?
          _Sim.
          _Muito bem. Eu sou profissional e cobro pelos meus serviços de consultoria. Não preciso de dinheiro, preciso de um rádio, uma janela, uma assinatura de algum jornal de atualidades, livros e um bom advogado. Este é o meu preço. Você não precisa pagar pelo advogado. Tenho dinheiro para isso, mas não tenho um voluntário. Você terá que intermediar o negócio. Pago o quanto ele quiser, desde que dentro das taxas legais do serviço... pago também a assinatura do jornal... do seu bolso eu só posso exigir um rádio de pilhas e isso você consegue junto à diretoria, com ajuda de um advogado...
          Não barganhe, não barganhe, não barganhe...
         _Eu não posso conseguir um advogado para você! Não conheço nenhum e não posso sair por aí procurando. Tenho dois empregos...
         _Você pode denunciar meu caso para a Comissão Internacional dos Direitos Humanos...
         _Você mesmo pode fazer isso...
         Daniel riu: _Você acha que eu já não fiz? Só que a diretoria do hospital tem o péssimo hábito de abrir a correspondência alheia e fazer desaparecer as cartas que julgam não ser adequadas. Nenhuma das cartas que escrevi para a Comissão jamais foi respondida, porque jamais chegaram ao seu destino! Não posso mencionar o assunto em outras correspondências, porque o hospital censura tudo aquilo que possa colocar seu poder de intervenção em risco e você é a primeira pessoa que aparece aqui, desde muito tempo. Não sei quando terei outra chance de denunciar os maus tratos e infrações aos direitos fundamentais que venho sofrendo regularmente. Preciso de um advogado para conseguir coisas simples, que qualquer presidiário, seja desse hospital, seja de qualquer presídio, é autorizado por lei a ter. Em qualquer lugar os presos assistem TV, lêem jornal, ouvem rádio, fumam e até recebem visitas íntimas. Para mim o tratamento é totalmente diferente, como se não houvesse o princípio da igualdade perante à lei. Não tenho direito ao pátio, embora isso não me interesse tanto quanto ler as notícias do dia a dia no jornal. Preciso de um rádio para ouvir música, uma janela para respirar ar puro e leituras para alimentar a mente. Não é muito o que peço, mas para tudo isso preciso de um maldito advogado!
         Daniel levantou-se levemente perturbado. Perambulou pela cela, serviu-se de um copo de água e retrucou:
         _Eu não quero ser mal educado. Desculpe-me pela minha indelicadeza. Podemos conversar sobre alguma trivialidade? Nunca recebo visitas e não quero parecer mal agradecido por você ter se disposto a vir até aqui. Posso lhe presentear a gentileza com uma pequena história, se estiver interessada em ouvir...
          Daniel falou sem ironia, mas também sem a gentileza inicial. Senti um pouco de amargura no tom de sua voz .
         Em suma ele explicou o motivo de desejar tanto um advogado, além dos pequenos confortos que a lei permitia a um preso com nível superior de ensino.
         _Eu tenho direito à ampla defesa e a pedir uma revisão do meu julgamento. Fui preso em 1982 e julgado em 1983, na vigência da antiga Constituição, durante a ditadura militar. Na prisão fui interrogado com métodos de tortura, fui violentado pelos outros presos da cela onde estava e por ter me defendido dessas agressões, fui considerado doente mental e tive meus dentes arrancados por determinação judicial! Sei que uma nova Constituição foi aprovada e que tenho direito a uma revisão da minha sentença. Durante o meu processo ninguém jamais investigou a hipótese da minha inocência. Há anos venho tentando chamar a atenção das instituições de defesa dos direitos humanos, para que meu caso seja reavaliado.. Não cometi os crimes de que sou acusado e sei quem plantou evidências contra mim. O advogado que defendeu minha causa, não investigou o homem que acuso de ter cometido aqueles crimes, não chamou-o a depor, não apresentou o argumento... enfim. O que aconteceu comigo seria inadmissível nos dias de hoje! Mereço um bom advogado que possa reabrir o caso e provar minha inocência...
          _Você é inocente? – não consegui disfarçar uma risada de incredulidade - Até onde sei foi pego em flagrante serrando e embalando pedaços de um corpo humano na sua própria casa. Foi preso, condenado e na prisão matou mais pessoas, feriu seriamente uma enfermeira, infringiu leves ferimentos em outros funcionários e internos... enfim, o senhor é classificado como indivíduo de alta periculosidade, psocipata paranóico, esquizofrênico, manipulador, mentiroso compulsivo, maníaco sexual e altamente violento. Não sou eu quem estou dizendo! Só estou relatando os pareceres que li da imprensa e dos médicos...
          _Eu não quis dizer inocente de todas as acusações. Realmente matei e feri pessoas na cadeia, mas não cometi os crimes de que me acusam. Aqueles corpos mutilados apareceram na minha casa. Estavam lá quando cheguei do consultório naquele dia. Entrei em pânico sem saber o que fazer por um momento, mas antes que decidisse qualquer coisa a polícia apareceu e me levou para a cadeia. Eles disseram que eu havia sido denunciado por uma testemunha anônima... Você percebe a armação? Não foi testemunha coisa alguma, quem ligou para a polícia, foi a mesma pessoa que matou e plantou aqueles corpos na minha casa! Não me importa se acredita ou não no que estou dizendo. A verdade é que tenho direito a uma revisão do caso. É um direito constitucional e os meus têm sido constantemente negligenciados. Se fizer uma denúncia para a Comissão Internacional dos Direitos Humanos, tenho certeza de que eles se sensibilizarão a enviar um ouvidor e poderei, enfim, ter um advogado.
         Baixei a cabeça e suspirei. Não barganhe, não barganhe, não barganhe...
         _Entendo sua situação. Façamos o seguinte: escreva uma carta para a Comissão e eu cobrarei a postagem da Diretoria desse Hospital.
          Daniel olhou-me de esguelha, desconfiado:
         _Como assim, irá cobrar a postagem?
        _Eles deverão me deixar postar a carta, com minhas próprias mãos. Até onde sei, isso não é crime.
      _Eles não deixarão você sair daqui com uma carta minha para a Comissão Internacional de Direitos Humanos.
         _Deixarão. Eu sou uma escritora, posso escrever sobre isso...
       Os olhos dele brilharam e pude ver o interesse renovado neles. Imediatamente Daniel retomou assento e sorridente perguntou:
       _Como você vê esse seu assassino ficcional? Já deve ter um boneco dele, não? Alguns traços gerais de personalidade, alguma característica específica... fale-me sobre ele.
Suspirei feliz por termos encerrado aquele assunto de advogados e inocência. Finalmente ele abordava a questão que me interessava. Ajeitei minha postura na cadeira e procurei falar sem muita empolgação, mas também sem imprimir tédio no tom de voz. Queria capturar-lhe a atenção, que era o único modo de conquistar sua disposição para me ajudar.
_Imagino-o como um criminoso sofisticado, em liberdade porque está acima de qualquer suspeita. Um assassino profissional, que mata por dinheiro. Eu sei que é um cliché, mas meus leitores são leitores de clichés. O que eu queria na verdade é que me sugerisse um perfil mais realista, que se diferenciasse um pouco desse cliché. Por isso estou aqui observando você... Posso até me interessar pela sua história e escrever uma biografia, por que não? Mas não posso dizer por hora que é isso o que vou fazer. Preciso de uma amostra grátis, por assim dizer. Não quero ofender você, se é que me entende. Só estou tentando ganhar a vida... é o meu trabalho inventar personagens. Sou mais ou menos como jornalista. Quero ouvir suas histórias, para que sirvam de inspiração para aquilo que estou escrevendo, mas não estou documentando...
_Entendi tudo isso da primeira vez que pus os olhos em você, não precisa se justificar. Já sei o que quer e sei como posso te ajudar. Tenho um preço e você prometeu pagar a primeira prestação. Vou escrever a carta esta tarde. Volte amanhã e a terá. Terá também uma história.
Dizendo isso Daniel virou as costas para o vidro e completou: _Acho que esta visita está encerrada senhorita Donna.
Saí daquela ala e enquanto passava pela sala de vigilância, Jaderson me alertou:
_É tudo mentira dele senhora Donna. Ele matou todas aquelas pessoas sim. Só está dizendo isso porque acha que você pode sentir pena dele e ajudá-lo. Não deixe ele te manipular.
_Eu sei que pode ser tudo mentira, mas ele tem o direito de escrever uma denúncia à Comissão de Direitos Humanos se quiser.
_Ele escreve e as cartas são enviadas. A Comissão Internacional é que não responde porque não quer. Ninguém quer ajudar esse cara aí.
_Por que não?
Jaderson e o outro guarda arregalaram os olhos na minha direção como se eu tivesse dito ou feito uma grande estupidez.
_Senhora Donna, a senhora não sabe o que ele faz quando chega perto de uma pessoa?
_Ouvi dizer que ele as ataca.
_E mata e come! Ele não pode conviver com ninguém, porque tenta matar todo mundo que se aproxima. Ele está te manipulando, não porque tem esperanças de conseguir qualquer coisa dessas que ele pediu, mas porque quer ver se a senhora aceita ajudar ele... - Jaderson riu – Vai vendo... esse aí é completamente desparafusado, só que não diz besteira não... ele tenta entrar na sua cabeça, isso sim e se você deixar ele faz uma bagunça danada lá dentro. Conheci o interno que se matou por conta disso, tinha um faxineiro aqui também, que pediu transferência para outra ala, porque não aguentava os assédios do Macabro. O cara não é moleza não. Ainda bem que não é sua obrigação vir aqui todo dia como nós. A gente é que sabe o que sofre na mão dele. Não é Zico?
O outro guarda grunhiu um sim e completou:
_Ele vai espremer você como laranja e jogar o bagaço fora.
Agradeci aos conselhos daqueles carcereiros e saí do hospital meio perturbada.
O doutor Emerson tinha saído para o almoço, assim não o encontrei naquele dia e não pude trocar com ninguém minhas primeiras impressões sobre o Doutor Macabro.
No pensionato as mulheres tentaram me abordar, mas dei a desculpa de querer comer alguma coisa e saí a esmo pela cidade. Já não chovia, muito embora o dia estivesse nublado e o frio fosse bastante inconveniente. Acabei indo parar num restaurante onde pude matar duas horas diante de algumas batatas, um bife duro e uma garrafa de refrigerantes enquanto fazia perguntas ao balconista sobre a cidade. No caderno anotei estas impressões enquanto convencia a mim mesma de que eu havia me saído bem neste primeiro contato.
TERCEIRA PARTE

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