Conto: ATÉ O ÚLTIMO PEDAÇO pt.9

RIO DE JANEIRO

Meu retorno para casa não foi tranquilo. Rodrigo ficou possesso quando ouviu minha história por inteiro e tomou conhecimento de meu pequeno progresso. Acusou-me de covardia e incompetência, jogou na minha cara o dinheiro gasto com a reforma da cela, com minhas passagens, hospedagem, táxis e alimentação. Disse que tinha apostado em mim, que eu o decepcionara, porque não tinha ao menos conseguido um bom material para o próximo livro. A esta acusação tentei rebater dizendo ter material suficiente para deixar que minha criatividade fizesse o resto. Rodrigo riu com escárnio e confessou ter me mandado naquela missão justamente por não acreditar na minha capacidade criativa.
_Eu quis ajudar você e só tive prejuízos. - ele suspirou - Talvez tenha sido um erro mandá-la até aquele assassino. A verdade Dora, é que estou encerrando a publicação dos livros de bolso. Eu esperava que você conseguisse uma boa história, suficientemente boa para entrar no novo catálogo que estamos lançando. - ele sacudiu a cabeça e tirou de dentro da gaveta de sua mesa um formulário - Gosto de você. Somos amigos há muitos anos, mas não posso por esse motivo sustentar a publicação dos livros de bolso. Eles não me dão um bom retorno e quero começar a investir no mercado de literatura de verdade, com livros de boa qualidade. Infelizmente você não se enquadra neste novo padrão... Esperava que conseguisse isso com essa história do Dr. Macabro, mas eu me enganei. O que você conseguiu foi delinear o perfil de um assassino, que comete crimes sem objetivo algum além de comer os pedaços das vítimas. Não há enredo aqui, não há mistério, não há horror, não há nada além de um maluco canibal, coisa que o cinema e a literatura já exploraram à exaustão. Esperava que viesse com um roteiro completo e que pudéssemos trabalhar sobre ele até termos um livro de alto padrão, para inaugurar o novo catálogo da editora. Você assinaria a autoria desse trabalho com seu nome verdadeiro, como era sua vontade e faríamos um grande lançamento na Livraria da Urca... estas poucas linhas não nos darão isso Dora, sinto muito, mas você esta demitida.
Demorei um minuto para perceber o que ele estava dizendo. Não preciso esmiuçar detalhes sobre meu desapontamento, basta dizer que aquela foi a pior noticia da minha vida. Tentei barganhar, disse que escreveria a história, que faria uma grande novela policial com o material que eu tinha. Ele só sacudia a cabeça e repetia as mesmas perguntas de antes: “Qual o enredo? Qual a trama?”. Ignorei as perguntas sem resposta e continuei meus apelos, prometi até voltar ao hospital e continuar a entrevista, mas ele continuou inflexível:
_Não vou mais gastar nenhum centavo com essa história. Ademais o Macabro não quer mais falar com você.
_Isso foi anteontem! Hoje ele pode estar pensando diferente...
Rodrigo sacudiu a cabeça. _Sinto muito. Peça para minha secretária orientar você no preenchimento deste formulário de rescisão contratual. Ela vai explicar seus direitos ao fundo de garantia, aos acertos de contas...
_Eu vou escrever a história! - protestei sentindo lágrimas minando- Você verá!
_Só posso lhe desejar boa sorte. Quando terminar, mande uma cópia, quem sabe o conselho desta editora não a aprova. Até lá, espero que compreenda que não é nada pessoal. São apenas negócios.
"Nada pessoal só negócios!" Já tinha lido essa expressão antes, no livro "O Chefão" de Mário Puzo. Era a frase que o Dom Corleone dizia quando decidia matar alguém...

Em casa amarguei a demissão tomando um porre enquanto me despedia daquele ambiente, pois sem os rendimentos da editora, eu não seria capaz de continuar pagando aquele aluguel na vila de Santa Tereza e seria obrigada a sair da baixada fluminense para ir viver em algum bairro pobre da periferia do Rio.
Era tarde da noite quando meu telefone tocou e eu já estava completamente bêbada. Do outro lado da linha era Rodrigo. Por um instante pensei que ele talvez estivesse arrependido e me quisesse de volta na editora, mas a voz dele soou meio desesperada e precisei de um momento para concatenar as idéias.
_Você tem um lugar onde possa ir se esconder por uns tempos?- ele perguntou e achei graça na questão.
_Por enquanto ainda tenho minha casa, mas graças à você, logo não a terei mais... - eu tinha consciência de quanto minha voz estava pastosa.
_Não estou falando da sua casa... você está bêbada?
_ O que você acha? - perguntei enraivecida.
_ Preste atenção! Você precisa sair daí, precisa ir se esconder em algum lugar, porque me ligaram do hospital, o Macabro fugiu no fim desta tarde. Se ele estiver vindo para o Rio atrás de você, já deve estar chegando. Você entendeu?
_Eu quero que você e esse Macabro vão à merda!- grunhi.
_Dora, isso não é uma brincadeira, sei que está com raiva de mim... eu não imaginava que a coisa com o Dr. Macabro fosse assim tão grave...
_Ele disse que você iria me demitir, ele deduziu isso e tinha razão! Vou escrever para a Comissão e ajudá-lo...
_Dora você não pode ajudá-lo, ele fugiu! Olha... eu prometo que vou rever sua situação na editora, a gente pode dar um jeito nisso, mas agora você deve prestar atenção no que estou dizendo. Está ouvindo?
_Aham...
_O Dr. Daniel Malbenito fugiu do presídio esta tarde e o Dr. Emerson acredita que ele virá atrás de você. Você deve ir se esconder na casa de algum amigo até que a polícia possa capturá-lo, ou ajudá-la. Você entendeu?

Não me lembro exatamente de como a conversa terminou, eu estava muito embriagada, mas acho que concordei em passar o resto das minhas férias na casa de um casal de amigos em Juiz de Fora, porque foi a primeira ideia que me ocorreu quando acordei pela manhã.
Como Daniel havia fugido? Rodrigo dissera qualquer coisa sobre ele ter se fingido de morto, matado os guardas e roubado um carro, mas os detalhes da conversa me escapavam. A cabeça estourava de dor, a ressaca de vodka sempre me abateu. Vomitei, mas não sei dizer se pelo efeito da bebedeira, ou se pelo medo de vir a ser a próxima vítima daquele canibal.
Pensei com mais calma a respeito: Daniel não sabia meu verdadeiro nome, nem onde eu morava, se estivesse querendo me encontrar era mais provável que fosse buscar informações na editora. Liguei para Rodrigo e lhe disse isso. Ele por sua vez insistiu para que eu fugisse de casa por uns tempos.
_Por aqui temos seguranças, eu me viro, mas prometa que vai fazer isso, que vai fugir por uns tempos.
_Já estou fazendo as malas.- menti.
Depois de desligar o telefone, decidi antes de mais nada ir até a farmácia comprar algum remédio para dor de cabeça e fígado. Havia uma não muito longe de casa e achei melhor ir até ela a pé, para evitar o trânsito maluco daquela hora do dia. Eram onze e meia da manhã.
Quando saí não notei a Van escura parada do outro lado da rua.
Desci a ladeira até a farmácia há uns dois quarteirões de distância, pensando em como iria fugir por uns tempos e deixar a casa fechada, pagando aluguel, com o pouco dinheiro que me sobrara? Lembrei que Rodrigo tinha dito qualquer coisa a respeito de rever minha situação na editora, mas não acreditei que ele estivesse falando sério, do contrário teria me chamado para conversar agora que eu estava sóbria... Comprei os remédios e voltei, a cabeça estourando de dor enquanto eu subia a ladeira sob o Sol do meio dia; os pensamentos presos num círculo vicioso... Assim que girei a chave da porta, fui agarrada por mãos fortes e sobre meu rosto foi pressionado um lenço embebido em clorofórmio. A ultima coisa que me lembro de ter visto, antes de perder os sentidos, foi a Van do outro lado da rua.
 DÉCIMA PARTE

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