Crônica: EPOPEIA EM TREZE PASSOS, pt.3

OITAVO PASSO

De volta ao acampamento praguejei minha má sorte. Estava sozinha e nesta situação, encontrar colegas bacanas por coincidência, era tudo o que eu queria. Se aquela merda de banco não estivesse quebrado, eu teria no bolso um barão pra gastar. Fiz as contas rapidamente: comida + bebida à vontade = trinta mangos por dia, vezes cinco dias = cento e cinquenta mangos. Ainda me sobrariam setecentos e cinquenta que davam pra pagar pela hospedagem num hotel e pelo transporte de volta à Paraty numa escuna se eu quisesse...
Que merda! Nunca viajo com dinheiro sobrando, aquela ia ser a primeira vez, mas dinheiro no banco não significa nada quando se está numa praia isolada pela selva. Ironicamente essa acabou sendo também a primeira vez em que eu me vi longe de casa e sem um centavo no bolso, na dependência dos favores das pessoas...
Para piorar, olhei para o céu e vi estrelas, o que dava suporte à profecia de “seu” Lourival, sobre o fim das chuvas. Certamente o dia seguinte seria de Sol, meus colegas partiriam bem cedo pela mata e aproveitariam parte da manhã e da tarde à beira da praia paradisíaca de Sá...

O acampamento estava silencioso. As barracas dos meus vizinhos-malas estavam fechadas e de dentro delas eu podia ouvir os roncos do “Urso” e seus coleguinhas idiotas. Sobre o balcão improvisado à beira da casa em construção, abrigado pela tenda erguida com muito custo, havia uma garrafa de wisky pela metade, uma garrafa de Campari, também pela metade e outra de vodka completamente cheia.
Olhei para um lado, depois para o outro e ri internamente.
Minha má sorte parecia ter dado uma leve guinada, porque eu decidi naquele momento que iria roubar a bebida alheia...
Não era uma atitude nada legal da minha parte, roubar a bebida que os meus vizinhos haviam esquecido ali em confiança, mas depois da tarde que eu passara, tendo que aguentar a boçalidade daquelas pessoas e ainda ser completamente ignorada por eles, como se não existisse, me fez decidir sobre o assunto.
É óbvio que eu não seria sacana ao ponto de roubar todas as garrafas, sequer uma delas inteira. Não. Minha idéia era encher minha caneca com alguma daquelas bebidas e ir dormir bem bêbada. Seria uma espécie de compensação pelo meu sofrimento naquele dia e também um leve castigo ao imbecil que incendiara o prumo do “seu” Lourival e servira peixe com chumbo para a pequena e triste Kalinde.
Escolhi o wisky, a bebida predileta do “Urso-do-cabelo-duro-da-Moóca-meu!”. Enchi a caneca e deixei só um dedinho de líquido dentro da garrafa. Fui para a barraca dando risadinhas “Muttley” e beberiquei até ficar enjoada.
Dormi sobre o chão duro e na manhã seguinte, assim que o Sol nasceu, “seu” Lourival veio me chamar. Era hora de partir.
Preciso dizer que estava com uma ressaca violenta? Daquelas que retumbam na cabeça, reviram o estômago e te fazem jurar que nunca mais irá beber na vida?
Arrependi amargamente minha decisão de roubar a bebida do “Urso”. Estava claro que aquela ressaca era uma punição dos deuses por essa decisão equivocada. Havia bebido cerveja, comido frutos do mar e misturado tudo isso com wisky puro de má qualidade... o que eu esperava?
“Seu” Lourival veio me pedir que me apressasse, pois seus filhos já estavam de partida. Rapidamente, trêmula, com a cabeça estourando eu juntei minhas tralhas. Você já deve ter acampado, então sabe que recolher os apetrechos não é uma tarefa rápida, ou fácil, ainda mais quando se está de ressaca.
O próprio Lourival me deu uma ajuda, para não me prejudicar, nem aos seus filhos que pacientemente me esperavam na praia... recolhi tudo e com uma rápida despedida parti.
No barco a ressaca cobrou seu preço mais alto. Fui atacada pelo “mal dos marinheiros” e vomitei a viagem toda, sem ter disposição para apreciar a paisagem e o dia ensolarado que surgia. Na verdade eu praguejava aquilo tudo, odiando o fato de estar deixando a Cajaíba justamente quando parara de chover. Odiando o fato de não poder ficar ali pela falta de sorte, de dinheiro e de conforto.


NONO PASSO

Em Paraty desci do barco sentindo alívio por estar em terra firme. Eu tremia de fome e de ressaca, mas não tinha dinheiro nem para um salgadinho de boteco. Minha comida estava dentro da mala e eu não ia parar em algum lugar perto do Pier para ascender a lata de atum com álcool e cozinhar macarrão instantâneo! Minha melhor opção era a barra de torrone e o pão com pasta de amendoim, mas achei por bem primeiro ir até o carro e lá fazer meu lanche, longe das vistas das pessoas. Se eu tivesse só um pouco de sorte, o banco já estaria consertado e eu poderia sacar o meu dinheiro e fazer uma refeição descente em algum restaurante. Por outro lado, meu estado era lastimável e desaconselhava isso. O torcicolo havia cedido um pouco, mas em compensação eu estava toda desalinhada, com os cabelos embaraçados pela maresia, com as roupas sujas de lama por conta das chuvas, fedendo fumaça por conta do “Urso” e sua aventura de ascender uma fogueira com gravetos encharcados... eu teria sido expulsa de qualquer restaurante descente se entrasse nele assim...
Avistei o Fusca parado no meio fio da rua que desembocava no pier. Alguma coisa não parecia estar certa. Ao lado dele avistei homens uniformizados, um caminhão tanque e um monte de terra. No fim da rua pude ver um guincho que vinha lentamente pelo pavimento irregular daquela parte velha da cidade.
Deduzi o que estava se passando e saí correndo, com a mochila nas costas, a fim de chegar ao Fusca antes do guincho.
Conforme fui me aproximando, percebi melhor o que estava acontecendo. Os homens uniformizados haviam cavado dois buracos, um de cada lado do meu carro e lutavam lá dentro para conter um vazamento de esgoto. Meu carro estava estacionado num local regular, mas obviamente estava atrapalhando o trabalho do pessoal da companhia de saneamento da prefeitura.
_O que aconteceu? - eu perguntei quando me aproximei.
_Você é a dona desse carro? - um funcionário perguntou de volta, de dentro do buraco. Balancei a cabeça afirmativamente, ele olhou na direção do guincho que vinha vindo e disse _Chegou em tempo, dona, porque nós íamos ter que guinchar o seu carro. Estourou um cano aqui e seu carro está bem em cima do lugar que precisamos escavar. Ficamos fazendo buracos em torno dele, achando que seria possível chegar ao cano, mas infelizmente seu carro está mesmo bem em cima. Se a senhora não tivesse chegado agora, ia levar um susto, porque o guincho ia levar seu carro embora. Se a senhora for rápida, ainda pode tirar o carro daí antes do guincho chegar, porque ele já vem pela rua e se encontrar a senhora aqui, irá cobrar pelo serviço mesmo assim...
Entrei desesperada no carro, sem me dar conta de mais nada. Imediatamente dei a partida e o carro não funcionou. Tentei de novo, enquanto o guincho manobrava para estacionar atrás do caminhão tanque. Em vão. O carro não dava sinal de partida e foi então que me lembrei de ter desligado a chave geral e desconectado o cachimbo das velas do carburador. Instalei-os rapidamente e aí sim, o carro funcionou. O guincho já estava estacionado e vi o motorista descer para cobrar explicações, praticamente na mesma hora em que consegui sair de ré. Rapidamente dobrei a primeira esquina e desapareci pelo centro da cidade... O coração batendo a um milhão por hora, mas finalmente um pouco de sorte. Se tivesse ficado na Cajaíba por mais algumas horas, aquele guincho teria levado a Debby embora e quando eu voltasse, teria uma enorme dor de cabeça para descobrir o paradeiro do meu carro, além de ter que arcar com os custos do guincho e do pátio.
Parei diante do maldito banco, que me causara mais da metade dos meus problemas. O caixa já estava funcionando e eu saquei todo o meu dinheiro. Pensei em voltar para a Cajaíba. Os filhos do Lourival estavam fazendo compras na cidade e partiriam de volta para a vila depois do almoço... mas depois de tanto sofrer, depois de todo aquele azar, achei melhor tomar o rumo de casa. Aquela viagem parecia estar toda equivocada e pensei que não deveria insistir na idéia, que o mais prudente seria me dar por vencida...
Quando saí do banco e cheguei no carro é que percebi exatamente o que tinha acontecido a ele.
Enquanto o carro estivera parado sobre o cano de esgoto furado, os trabalhadores da companhia de saneamento haviam se esforçado para contorná-lo e conforme cavucavam a terra ao seu redor, iam jogando detritos sobre ele. Quando cheguei da Cajaíba e vi aquela cena, corri para fugir do guincho que já estava vindo pela rua e mal percebi a sujeira que cobria o Fusca. Na verdade eu a tomei por lama e não fiz caso disso. Só agora, voltando do banco e percebendo a reação das pessoas é que pude ver que meu carro estava coberto de merda.
O fedor era insuportável e as pessoas que me olhavam, viam uma mulher suja de lama, desgrenhada, dirigindo um carro coberto de cocô!
Corri para longe dali, morrendo de vergonha e parei num posto de gasolina para abastecer e jogar uma água no carro. O frentista torceu o nariz e sacudiu a cabeça:
_Não lavamos carros. - ele disse.
_Por favor, me arrume uma mangueira d'água, eu mesmo lavo o carro, mas não posso ir embora com ele assim!
O frentista não pareceu contente com a proposta. Era óbvio que ele me queria fora dali, pois o carro sujo e fedorento como estava, podia afastar sua clientela. Por fim ele concordou, mas não por piedade e sim porque eu enchi o tanque de gasolina e paguei com dinheiro vivo. Deve ter me tomado como uma louca, pois não expliquei a ele o que tinha acontecido, para estar toda suja de lama marrom, com o carro também marrom, mas de pura bosta... A visão do conjunto todo devia ser repugnante...
Lavei o carro o melhor que pude, enquanto troços de merda caíam sobre o pavimento do posto de gasolina e rolavam até o bueiro na esquina. Os frentistas ficaram parados, chocados, me observando, boquabertos, sem oferecerem ajuda, ou desviarem o olhar por educação.
Achei que estar coberta de merda era o fim da linha. O que teria acontecido se eu tivesse ficado na Cajaíba até o fim da semana? Quando voltasse a Paraty, não veria meu carro estacionado no lugar onde eu deixara, provavelmente os trabalhadores já teriam consertado o cano e não haveria sequer um buraco no chão para que pudesse intuir o que havia sido feito de minha velha Debby. Pensaria ter sido roubada e entraria em pânico...
Toquei o carro para fora da cidade, rumo a Ubatuba, a fim de subir a serra por Taubaté e retomar o caminho de casa pelo sul de Minas. Ao menos a bela paisagem me serviria de consolo nesta jornada malfadada...

DÉCIMO PASSO

Na via Dutra, já a caminho de Lorena, parei num posto de gasolina que possuía um restaurante. Estava com fome e já passava do meio dia.
Fiz um enorme prato de comida da bancada self-service e me sentei de costas para a TV, feliz por poder finalmente fazer uma boa refeição. Naquele posto as pessoas não se preocuparam com minha aparência suja e desgrenhada, também não repararam no Fusca, que fora lavado apenas com água e ainda possuía um ou outro resquício de sujeira e fedor.
Enquanto comia pude ouvir a voz da jornalista que falava pela TV:
_Agora uma boa notícia aos turistas que vieram passar férias no litoral norte de São Paulo e no Rio de Janeiro! A frente fria que causou fortes chuvas nos últimos dois dias está finalmente abandonando o litoral e seguindo para o interior. Há riscos de alguma chuva no final desta tarde, mas a partir de amanhã vocês podem preparar o protetor solar, pois o tempo fica firme e as temperaturas sobem, com previsão mínima de 28 e máxima de 38 graus nas regiões de Ubatuba e Paraty. O tempo fica firme assim até o fim de semana e com mar sem ressaca, é diversão garantida aos banhistas...
Enquanto eu ouvia estas palavras, lá fora a rodovia Dutra começava a ser banhada pela chuva que havia atravessado a Serra do Mar e seguia comigo para o interior do país. Grande, enorme má sorte a minha, ter deixado o litoral justamente agora que as chuvas haviam passado...
Pior do que isso! Se a previsão estava correta, as chuvas me acompanhariam por todo o trajeto até minha terra natal, a menos que eu saísse dali rapidamente e conseguisse seguir à frente daquelas nuvens carregadas...
Paguei a conta rapidamente enquanto fazia alguns cálculos. Se eu tivesse sorte, conseguiria subir a Serra do Piquete antes do final da tarde e poderia prosseguir viagem até alguma cidade do Sul de Minas até o começo da noite, quando eu forçosamente haveria de parar para dormir, pois meu Fusca não possuía um bom par de faróis e eu não me arriscaria a viajar sozinha madrugada a dentro...

DÉCIMO PRIMEIRO PASSO

Lá fora a chuva começava a açoitar a rodovia com força. Rapidamente formou-se uma película d'água sobre a pista e os carros e caminhões, possuídos pelo espírito maligno da via Dutra, passavam por mim há cento e trinta quilômetros por hora, erguendo cortinas de água que me deixaram às cegas em vários momentos.
O limpador de parabrisa da Debby não tinha potência para me permitir enxergar e fui obrigada a parar no posto seguinte, rezando para que a chuva diminuísse sua intensidade. Esta segunda parada me custou um atraso de quase duas horas, diminuindo a “janela de luz” que eu tinha para chegar ao alto da Serra da Mantiqueira antes do anoitecer.
Finalmente a chuva pareceu dar uma trégua e pude seguir com a viagem.
Na subida da Serra do Piquete a chuva voltou a açoitar meu parabrisa. Fui obrigada a “colar” atrás de um caminhão e usá-lo como guia. O recurso me ajudou a chegar no alto da serra em segurança, em compensação a subida foi lenta, muito lenta e eu ainda não havia avistado a primeira cidade de Minas Gerais, quando a noite caiu.
Por sorte lembrei-me de um motel de beira de estrada que eu tinha visto quando passara por ali na ida. Aquele motel serviria para passar a noite e pelos meus cálculos, não devia estar longe.
De fato logo o avistei e fiquei ainda mais feliz quando soube que o preço do pernoite era de apenas vinte mangos. Expliquei à recepcionista que estava viajando sozinha, que precisava pernoitar por não ter coragem de encarar aquela estrada à noite. Ela compreendeu tudo, disse que meu caso não era isolado e que vez por outra as pessoas parava ali pelo mesmo motivo. Garantiu que eu poderia dormir à vontade, que não havia hora limite para minha estadia pelo menos até o meio do dia seguinte. Presenteou-me com uma barra de biscoito coberto com chocolate e avisou que se eu desejasse algo da cozinha, poderia pedir pelo interfone.
O quarto do motel era simples. Uma cama redonda em alvenaria estava coberta por um colchão forrado de plástico e lençol limpo. Havia uma TV, um rádio e no banheiro, além do vaso sanitário e da pia, havia um chuveiro elétrico.
Tomei um belo e demorado banho, me desfazendo da lama e do sal, coloquei as roupas limpas que eu guardara dentro do saco plástico na mochila, pedi um lanche com refrigerante e me deitei para assistir a um filme pornô, pois na TV só passava esse tipo de filme e eu não tinha mais nada para fazer entre aquela hora do começo da noite e o sono.
Dormi cedo, mas apesar disso dormi muito e acabei perdendo boa parte da manhã, no conforto daquele colchão de motel, que era muito melhor do que o chão duro onde eu havia passado as últimas três noites.
Quando acordei já passava das dez da manhã. Levantei correndo e sem tomar o café da manhã, saí. Na portaria eu paguei a conta e a recepcionista me advertiu:
_Tome cuidado na estrada, porque choveu a noite inteira e eu acho que você pode encontrar alguns pontos de alagamento...
Enquanto ela dizia essas palavras, me apontava o dedo para a rodovia e pude ver do outro lado, que o que antes havia sido um pasto, agora se transformara num lago.
_Eu se fosse você ficava por aqui mesmo até a chuva passar. - ela completou.
Ficar por ali mesmo, naquele motel? De jeito nenhum! Eu queria ir embora para casa, pa-ra-ca-saaaaaaa! E faria isso nem que fosse à pé.
Toquei o Fusca pela rodovia de mão simples, cheia de curvas, cuja velocidade de segurança, em tempo firme era de oitenta quilômetros por hora e sob a chuva, era de tediosos quarenta... Pelos meus cálculos, naquela toada, se nada mais me acontecesse, chegaria em casa por volta das cinco e meia, seis horas da tarde.
Dirigi por cerca de meia hora até a cidade de Itajubá, onde decidi parar para tomar café e comer alguma coisa que não fosse pão com pasta de amendoim, mas conforme ia passando pelo centro da cidade, observei que muitas lojas estavam fechando suas portas, inclusive as padarias. Parei numa delas e perguntei por que eles estavam fechando àquela hora da manhã. O comerciante indicou o céu com o dedo e disse:
_A enchente vem aí.
Olhei para o céu atrás de mim, estava tão escuro que parecia noite. À minha frente o tempo nublado, porém mais claro, me convidava a prosseguir viagem, o mais rápido possível.
Subi no Fusca e acelerei, mas não adiantava ter muita pressa naquela rodovia sinuosa e molhada, pois com toda aquela minha “sorte”, acabaria causando algum acidente. Por isso segui na velocidade segura até a cidade seguinte: Santa Rita do Sapucaí, onde havia aquele café pitoresco, cujo dono me chamara de “a moça que traz a enchente”.
Puta merda, de novo! Eu pensei enquanto estacionava o carro.
Ao me ver o homem revirou os olhos e foi para a máquina de café:
_O de sempre? - ele perguntou – Expresso duplo sem açúcar?
_Sim. - respondi.
_Você tá vindo de onde?
_Do litoral.
_E chegou agora?
_Sim...
_Como?
A pergunta me surpreendeu: _Pela estrada, oras!
_Vindo de Itajubá?
_Sim...
_Como? - o homem percebeu que eu não estava compreendendo direito a pergunta e explicou – Quero dizer... como foi que você atravessou Itajubá, se aquela cidade está debaixo d'água?
_Não está não. Acabei de passar por lá.
O homem fez uma cara de contrariedade e pegou o telefone, dali um minuto ouvi a voz dele perguntando para a pessoa do outro lado da linha:
_Oi filha! Tem uma moça aqui no café que disse que passou por Itajubá agorinha e que a cidade não está debaixo d'água... você que mora aí, me diz se o que ouvi é certo, porque no rádio disseram que a barragem de Delfino Cintra arrebentou e é possível que a enchente chegue até aqui.
Ele ouviu com atenção e de vez em quando seus olhos me encaravam. Por fim despediu-se e desligou, servindo-me o café.
_Minha filha mora em Itajubá e disse que toda a parte baixa da cidade está inundada. Se você veio de lá agora, deu uma tremenda sorte, porque foi só o tempo do comércio ser avisado e fechar as portas até que a enxurrada viesse.
Fiquei boquiaberta, pensando no que teria me acontecido se tivesse acordado alguns minutos mais tarde...
_E olha moça é melhor você se mandar de Santa Rita, porque parece que essa barragem estourada vai inundar até aqui a qualquer momento...
Imediatamente engoli o café. Não precisava me avisar duas vezes, eu já tinha percebido que estava apenas alguns quilômetros à frente da chuva forte e das inundações. Se ficasse em Santa Rita por mais alguns minutos, a enchente me pegaria e eu ficaria isolada ali até que o problema da barragem fosse resolvido, o que poderia durar alguns dias.
Pelo menos eu tinha sacado meu dinheiro, para qualquer eventualidade, eu pensei...
_Você realmente traz enchente. - o homem disse – Faz um favor pra nós, da próxima vez que resolver viajar, vá para outro lugar... - e fiquei sem entender se ele estava brincando, ou falando sério.
_Para onde você vai? - ouvi uma segunda voz me perguntar. Olhei para trás e só então me dei conta do senhor sentado ali. Contei a ele para onde eu ia e ele advertiu – Você não vai conseguir chegar lá por esse caminho, porque a ponte de Santa Rita de Caldas caiu. Vai ter que contornar por Ouro Fino e Jacutinga...
Ouro Fino e Jacutinga... mas a estrada de Jacutinga é de terra e por conta das chuvas, deve ter virado uma lama, eu objetei.
O senhor sacudiu a cabeça: _A estrada foi asfaltada.
_Não foi não. - eu disse.
_Foi sim. - ele disse e completou – de qualquer maneira é seu único caminho para casa. Você não pode ficar aqui senão vai ficar presa, também não pode voltar porque tá tudo inundado daqui até Delfino Cintra. Não pode ir por Santa Rita de Caldas porque a ponte quebrou... Quando chegar a Pouso Alegre, deve tomar o caminho para Ouro Fino e Jacutinga. De lá você sabe para onde ir...
_Tem certeza de que a estrada foi asfaltada?
_Tenho.
Então estava certo. Faria aquele desvio por Ouro Fino.
_Agora vá, antes que você fique presa aqui. - disse o senhor.
_Essa aí é a moça que te falei. - disse o dono do café enquanto eu saía – Aquela que traz a enchente...
Pelas minhas costas ouvi o senhor retrucar: _Agora eu acredito...


DÉCIMO SEGUNDO PASSO

De volta na estrada fiquei pensando se a enchente havia tido tempo para passar à minha frente. Eu estava decidida a não fazer mais nenhuma parada, ainda que minha bexiga estourasse. Mijaria nas calças se fosse preciso, mas chegaria na minha terra natal antes do anoitecer e antes que a enchente me alcançasse.
Percebi que nas baixadas do caminho já haviam trechos de asfalto cobertos por água. A enchente já me alcançara, mas a água ainda não subira até um ponto crítico. Rezei para que aquelas poças não molhassem o alternador do motor, fazendo com que ele falhasse e morresse, me deixando presa no meio de um alagamento, ali no nada, à espera da enxurrada para me arrastar até algum buraco...
Quando cheguei em Pouso Alegre, percebi que havia deixado o pior para trás. Minha salvação estava há apenas uma hora e meia de distância. Atrás de mim as nuvens negras da chuva feroz que caía já não eram mais visíveis, mas tudo indicava que elas continuavam seguindo para oeste, na mesma direção em que eu ia. Se ficasse esperando, o risco de ser pega novamente era grande, por isso ignorei as paradas convidativas, apesar da fome que me afligia e segui para Ouro Fino, como havia sido recomendado.
Descobri que a estrada de Ouro Fino não havia sido atingida ainda pelas chuvas daquele dia, estava seca, ensolarada e recentemente pavimentada. Passei por Borda da Mata, com seus resquícios de Mata Atlântica e aos pés da serra de Ipuiúna, o que me adiantou um bocado de tempo, pois a subida da tal serra era ainda mais sinuosa do que a de Piquete e teria me atrasado em meia hora se eu tivesse seguido por aquele caminho...
Parecia que o pior havia passado quando cheguei em Jacutinga e tomei a estrada para voltar para casa.
Então o asfalto acabou e eu me vi diante da estrada de terra da qual me recordava e que devido às chuvas do final do ano, estava ainda bastante enlameada.
O senhor que me tinha indicado aquele caminho jurara que a estrada havia sido asfaltada. Só mais tarde eu vim a saber que de fato um trecho de uma das rodovias que passavam por Jacutinga, havia sido asfaltado, mas não era aquele por onde eu devia seguir e agora era tarde demais para tomar outro desvio.
Segui em frente pela lama, confiando que meu Fusca faria seu trabalho...
No meio do caminho vi carros atolados, sendo rebocados por tratores dos produtores rurais das redondezas e da prefeitura. Porque jamais asfaltaram aquele trecho de quinze quilômetros, eu jamais soube. O fato é que minha perícia ao volante, mais a tração traseira do Fusca, me renderam uma travessia sem atolamentos, quase nenhum deslize, ou derrapamento.
Apesar do sucesso da travessia, não pude deixar de sentir cansaço e nervosismo ao extremo. Aquele último obstáculo havia exigido o máximo de minhas habilidades ao volante e meus ânimos tinham chegado ao limite. Como aquela viagem pudera dar tão errado? Onde estava a minha culpa?
Do meu ponto de vista tudo o que eu sofrera havia sido causado por infelizes coincidências. A do caixa eletrônico quebrado havia sido a pior, pois se não fosse por ele, eu teria ficado na Cajaíba e não teria enfrentado as enchentes, os riscos de dirigir sobre trechos alagados e agora mais essa, de ficar atolada na lama! Por outro lado, se eu tivesse ficado na Cajaíba, teria perdido meu carro e me desesperado até alguém, ou alguma iluminação divina, me propor a idéia de ligar para o guincho e checar... 

DÉCIMO TERCEIRO PASSO

Consegui sair do trecho sem asfalto e tornei a trafegar por uma rodovia asfaltada. Contudo a aventura por aquele desvio havia me cobrado ainda mais tempo do que se eu tivesse cruzado pela serra de Ipuiúna. Já era noite quando entrei no último trecho de trinta quilômetros que me distanciavam de casa.
Eu segui atenta com aqueles faróis fracos e a noite escura, cheia de nuvens carregadas. No caminho ia enumerando minhas desventuras, analisando os fatos e buscando formas que poderiam ter me ajudado a evitá-los.
Compreendam que para quem viaja sozinho, é importante analisar os erros de uma jornada, a fim de evitá-los no futuro. Por exemplo: eu havia tido amplas chances de sacar meu dinheiro em Ubatuba, quando emprestei dois barões para meu pai. No entanto, havia cometido o erro de deixar a tarefa para ser cumprida em Paraty, sem levar em conta o fato de que só havia um único caixa eletrônico do meu banco naquela cidade. A lição aqui era a de não deixar para depois o que pudesse ser feito agora...
Outro grande erro havia sido o estacionamento escolhido. Apesar do local ser regular e não haver nada, absolutamente nada que me proibisse de deixar o carro ali, para sempre se eu quisesse, eu havia negligenciado outras ofertas de estacionamentos privativos pela cidade, pensando na questão do caixa eletrônico quebrado, não querendo arriscar pendurar a conta até minha volta da Cajaíba para descobrir, se fosse o caso, que ele não havia sido consertado...
Outro erro tinha sido o de levar a velha bóia inflável, ao invés de comprar um colchão apropriado para acampamentos. Sobre esse erro eu amarguei uma ferida no meu orgulho de mochileira... Se eu estivesse mais bem equipada, não teria sofrido o desconforto, nem afetada pelo torcicolo que ajudou a derrubar o meu moral.
Outro erro tinha sido aguentar calada os absurdos dos meus vizinhos de acampamento. Por que eu ficara quieta? Porque não quisera me envolver com aquelas pessoas estranhas... mas isso havia me custado a paciência, o que me levara a decidir por gastar o pouco dinheiro que eu tinha precipitadamente, perdendo a chance de passear com meus colegas pela trilha, me lançando numa louca corrida contra o tempo e as chuvas, pelas serras do sul de Minas Gerais, à bordo de meu fiel, mas velho carro.
Mas o pior erro não tinha sido nenhum dos mencionados acima: o pior erro tinha sido o de ter ignorado a advertência da previsão meteorológica que eu ouvira no posto da via Dutra. Se eu tivesse conseguido ignorar as adversidades, sem permitir que me afetassem tanto, teria usado a cabeça e concluído que o melhor seria voltar para Ubatuba, onde eu poderia sacar tanto dinheiro quanto desejasse de um dos inúmeros caixas eletrônicos espalhados pela cidade, poderia ter comprado um bom colchão inflável, apropriado para acampamentos e ter me hospedado em algum outro camping, por ali mesmo, onde eu pudesse ficar de olho na Debby, curtir o sol, a semana de férias que me restava, sem os riscos daquela viagem desesperada com a enxurrada nos meus calcanhares...
Enquanto ia vencendo os últimos quilômetros e pensando nestas coisas, percebi que o volante do Fusca estava instável. Não precisei parar o veículo para compreender o significado daquela instabilidade. Depois da minha jornada pela estrada enlameada, o resultado não podia ser mais óbvio, nem mais adequado para a somatória de minhas desventuras daquela semana.
O pneu estava furado.
Maldição! Eu gritei, jurando a mim mesma que procuraria uma benzedeira, um terreiro, um padre, um espírita kardecista, um rabino e o que mais houvesse entre as ofertas de curas espirituais, para me livrar daquela terrível má sorte.
Considerei se parava para trocar o pneu ou arriscava os últimos quilômetros. Toda a racionalidade do mundo me aconselharia a parar e usar o estepe, mas em virtude de todas as minhas decisões “racionais” terem dado errado nos últimos dias, decidi pelo oposto. Seguiria em frente, custasse o que custasse, até que a roda encostasse no asfalto. Se até lá eu ainda não tivesse chegado em casa, pararia e usaria o estepe, mas pelos meus cálculos eu conseguiria chegar na borracharia mais próxima, antes que o pneu ficasse completamente vazio.
Chegando na cidade procurei um borracheiro e quando encontrei um que estivesse aberto, descobri que meu pneu relativamente novo, estava estraçalhado, sem condições de ser consertado. O que havia causado tamanho estrago? Um mísero pedaço de osso, provavelmente de algum cão que morrera atropelado numa das estradas por onde eu trafegara. Minha insistência por prosseguir viagem, mesmo depois de perceber que o pneu estava furado, acabou me custando cerca de duzentos mangos num pneu novo.
Finalmente em casa, me deixei cair sobre a cama, sentindo uma felicidade inusitada por estar sã e salva depois de tantos problemas. Jamais uma viagem minha havia sido tão difícil. Jamais voltar para casa havia sido tão bom.
Nos dias seguintes li as notícias nos jornais: Ubatuba estava isolada por deslizamentos de terras em todas as suas rodovias de acesso e permaneceu assim por quase dez dias. No sul de Minas todas as cidades pelas quais eu havia passado, tinham sido inundadas pelas chuvas torrenciais daquela semana e pelo rompimento da barragem de Delfino Cintra, custando a vida de muitas pessoas.
Posso garantir que não há nenhuma relação entre minhas passagens pelo sul de Minas e as enchentes, pelo menos nenhuma relação explicável pela ciência, ou pelas crenças religiosas mais comuns. O fato é que jamais voltei a estes lugares e coincidentemente, nunca mais ouvi falar de enchentes por lá...

por CAPELLA

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