OITAVO
PASSO
De
volta ao acampamento praguejei minha má sorte. Estava sozinha
e nesta situação, encontrar colegas bacanas por
coincidência, era tudo o que eu queria. Se aquela merda de
banco não estivesse quebrado, eu teria no bolso um barão
pra gastar. Fiz as contas rapidamente: comida + bebida à
vontade = trinta mangos por dia, vezes cinco dias = cento e cinquenta
mangos. Ainda me sobrariam setecentos e cinquenta que davam pra pagar
pela hospedagem num hotel e pelo transporte de volta à Paraty
numa escuna se eu quisesse...
Que
merda! Nunca viajo com dinheiro sobrando, aquela ia ser a primeira
vez, mas dinheiro no banco não significa nada quando se está
numa praia isolada pela selva. Ironicamente essa acabou sendo também
a primeira vez em que eu me vi longe de casa e sem um centavo no
bolso, na dependência dos favores das pessoas...
Para
piorar, olhei para o céu e vi estrelas, o que dava suporte à
profecia de “seu” Lourival, sobre o fim das chuvas. Certamente o
dia seguinte seria de Sol, meus colegas partiriam bem cedo pela mata
e aproveitariam parte da manhã e da tarde à beira da
praia paradisíaca de Sá...
O
acampamento estava silencioso. As barracas dos meus vizinhos-malas
estavam fechadas e de dentro delas eu podia ouvir os roncos do “Urso”
e seus coleguinhas idiotas. Sobre o balcão improvisado à
beira da casa em construção, abrigado pela tenda
erguida com muito custo, havia uma garrafa de wisky pela metade, uma
garrafa de Campari, também pela metade e outra de vodka
completamente cheia.
Olhei
para um lado, depois para o outro e ri internamente.
Minha
má sorte parecia ter dado uma leve guinada, porque eu decidi
naquele momento que iria roubar a bebida alheia...
Não
era uma atitude nada legal da minha parte, roubar a bebida que os
meus vizinhos haviam esquecido ali em confiança, mas depois da
tarde que eu passara, tendo que aguentar a boçalidade daquelas
pessoas e ainda ser completamente ignorada por eles, como se não
existisse, me fez decidir sobre o assunto.
É
óbvio que eu não seria sacana ao ponto de roubar todas
as garrafas, sequer uma delas inteira. Não. Minha idéia
era encher minha caneca com alguma daquelas bebidas e ir dormir bem
bêbada. Seria uma espécie de compensação
pelo meu sofrimento naquele dia e também um leve castigo ao
imbecil que incendiara o prumo do “seu” Lourival e servira peixe
com chumbo para a pequena e triste Kalinde.
Escolhi
o wisky, a bebida predileta do “Urso-do-cabelo-duro-da-Moóca-meu!”.
Enchi a caneca e deixei só um dedinho de líquido dentro
da garrafa. Fui para a barraca dando risadinhas “Muttley” e
beberiquei até ficar enjoada.
Dormi
sobre o chão duro e na manhã seguinte, assim que o Sol
nasceu, “seu” Lourival veio me chamar. Era hora de partir.
Preciso
dizer que estava com uma ressaca violenta? Daquelas que retumbam na
cabeça, reviram o estômago e te fazem jurar que nunca
mais irá beber na vida?
Arrependi
amargamente minha decisão de roubar a bebida do “Urso”.
Estava claro que aquela ressaca era uma punição dos
deuses por essa decisão equivocada. Havia bebido cerveja,
comido frutos do mar e misturado tudo isso com wisky puro de má
qualidade... o que eu esperava?
“Seu”
Lourival veio me pedir que me apressasse, pois seus filhos já
estavam de partida. Rapidamente, trêmula, com a cabeça
estourando eu juntei minhas tralhas. Você já deve ter
acampado, então sabe que recolher os apetrechos não é
uma tarefa rápida, ou fácil, ainda mais quando se está
de ressaca.
O
próprio Lourival me deu uma ajuda, para não me
prejudicar, nem aos seus filhos que pacientemente me esperavam na
praia... recolhi tudo e com uma rápida despedida parti.
No
barco a ressaca cobrou seu preço mais alto. Fui atacada pelo
“mal dos marinheiros” e vomitei a viagem toda, sem ter disposição
para apreciar a paisagem e o dia ensolarado que surgia. Na verdade eu
praguejava aquilo tudo, odiando o fato de estar deixando a Cajaíba
justamente quando parara de chover. Odiando o fato de não
poder ficar ali pela falta de sorte, de dinheiro e de conforto.
NONO
PASSO
Em
Paraty desci do barco sentindo alívio por estar em terra
firme. Eu tremia de fome e de ressaca, mas não tinha dinheiro
nem para um salgadinho de boteco. Minha comida estava dentro da mala
e eu não ia parar em algum lugar perto do Pier para ascender a
lata de atum com álcool e cozinhar macarrão
instantâneo! Minha melhor opção era a barra de
torrone e o pão com pasta de amendoim, mas achei por bem
primeiro ir até o carro e lá fazer meu lanche, longe
das vistas das pessoas. Se eu tivesse só um pouco de sorte, o
banco já estaria consertado e eu poderia sacar o meu dinheiro
e fazer uma refeição descente em algum restaurante. Por
outro lado, meu estado era lastimável e desaconselhava isso. O
torcicolo havia cedido um pouco, mas em compensação eu
estava toda desalinhada, com os cabelos embaraçados pela
maresia, com as roupas sujas de lama por conta das chuvas, fedendo
fumaça por conta do “Urso” e sua aventura de ascender uma
fogueira com gravetos encharcados... eu teria sido expulsa de
qualquer restaurante descente se entrasse nele assim...
Avistei
o Fusca parado no meio fio da rua que desembocava no pier. Alguma
coisa não parecia estar certa. Ao lado dele avistei homens
uniformizados, um caminhão tanque e um monte de terra. No fim
da rua pude ver um guincho que vinha lentamente pelo pavimento
irregular daquela parte velha da cidade.
Deduzi
o que estava se passando e saí correndo, com a mochila nas
costas, a fim de chegar ao Fusca antes do guincho.
Conforme
fui me aproximando, percebi melhor o que estava acontecendo. Os
homens uniformizados haviam cavado dois buracos, um de cada lado do
meu carro e lutavam lá dentro para conter um vazamento de
esgoto. Meu carro estava estacionado num local regular, mas
obviamente estava atrapalhando o trabalho do pessoal da companhia de
saneamento da prefeitura.
_O
que aconteceu? - eu perguntei quando me aproximei.
_Você
é a dona desse carro? - um funcionário perguntou de
volta, de dentro do buraco. Balancei a cabeça afirmativamente,
ele olhou na direção do guincho que vinha vindo e disse
_Chegou em tempo, dona, porque nós íamos ter que
guinchar o seu carro. Estourou um cano aqui e seu carro está
bem em cima do lugar que precisamos escavar. Ficamos fazendo buracos
em torno dele, achando que seria possível chegar ao cano, mas
infelizmente seu carro está mesmo bem em cima. Se a senhora
não tivesse chegado agora, ia levar um susto, porque o guincho
ia levar seu carro embora. Se a senhora for rápida, ainda pode
tirar o carro daí antes do guincho chegar, porque ele já
vem pela rua e se encontrar a senhora aqui, irá cobrar pelo
serviço mesmo assim...
Entrei
desesperada no carro, sem me dar conta de mais nada. Imediatamente
dei a partida e o carro não funcionou. Tentei de novo,
enquanto o guincho manobrava para estacionar atrás do caminhão
tanque. Em vão. O carro não dava sinal de partida e foi
então que me lembrei de ter desligado a chave geral e
desconectado o cachimbo das velas do carburador. Instalei-os
rapidamente e aí sim, o carro funcionou. O guincho já
estava estacionado e vi o motorista descer para cobrar explicações,
praticamente na mesma hora em que consegui sair de ré.
Rapidamente dobrei a primeira esquina e desapareci pelo centro da
cidade... O coração batendo a um milhão por
hora, mas finalmente um pouco de sorte. Se tivesse ficado na Cajaíba
por mais algumas horas, aquele guincho teria levado a Debby embora e
quando eu voltasse, teria uma enorme dor de cabeça para
descobrir o paradeiro do meu carro, além de ter que arcar com
os custos do guincho e do pátio.
Parei
diante do maldito banco, que me causara mais da metade dos meus
problemas. O caixa já estava funcionando e eu saquei todo o
meu dinheiro. Pensei em voltar para a Cajaíba. Os filhos do
Lourival estavam fazendo compras na cidade e partiriam de volta para
a vila depois do almoço... mas depois de tanto sofrer, depois
de todo aquele azar, achei melhor tomar o rumo de casa. Aquela viagem
parecia estar toda equivocada e pensei que não deveria
insistir na idéia, que o mais prudente seria me dar por
vencida...
Quando
saí do banco e cheguei no carro é que percebi
exatamente o que tinha acontecido a ele.
Enquanto
o carro estivera parado sobre o cano de esgoto furado, os
trabalhadores da companhia de saneamento haviam se esforçado
para contorná-lo e conforme cavucavam a terra ao seu redor,
iam jogando detritos sobre ele. Quando cheguei da Cajaíba e vi
aquela cena, corri para fugir do guincho que já estava vindo
pela rua e mal percebi a sujeira que cobria o Fusca. Na verdade eu a
tomei por lama e não fiz caso disso. Só agora, voltando
do banco e percebendo a reação das pessoas é que
pude ver que meu carro estava coberto de merda.
O
fedor era insuportável e as pessoas que me olhavam, viam uma
mulher suja de lama, desgrenhada, dirigindo um carro coberto de cocô!
Corri
para longe dali, morrendo de vergonha e parei num posto de gasolina
para abastecer e jogar uma água no carro. O frentista torceu o
nariz e sacudiu a cabeça:
_Não
lavamos carros. - ele disse.
_Por
favor, me arrume uma mangueira d'água, eu mesmo lavo o carro,
mas não posso ir embora com ele assim!
O
frentista não pareceu contente com a proposta. Era óbvio
que ele me queria fora dali, pois o carro sujo e fedorento como
estava, podia afastar sua clientela. Por fim ele concordou, mas não
por piedade e sim porque eu enchi o tanque de gasolina e paguei com
dinheiro vivo. Deve ter me tomado como uma louca, pois não
expliquei a ele o que tinha acontecido, para estar toda suja de lama
marrom, com o carro também marrom, mas de pura bosta... A
visão do conjunto todo devia ser repugnante...
Lavei
o carro o melhor que pude, enquanto troços de merda caíam
sobre o pavimento do posto de gasolina e rolavam até o bueiro
na esquina. Os frentistas ficaram parados, chocados, me observando,
boquabertos, sem oferecerem ajuda, ou desviarem o olhar por educação.
Achei
que estar coberta de merda era o fim da linha. O que teria acontecido
se eu tivesse ficado na Cajaíba até o fim da semana?
Quando voltasse a Paraty, não veria meu carro estacionado no
lugar onde eu deixara, provavelmente os trabalhadores já
teriam consertado o cano e não haveria sequer um buraco no
chão para que pudesse intuir o que havia sido feito de minha
velha Debby. Pensaria ter sido roubada e entraria em pânico...
Toquei
o carro para fora da cidade, rumo a Ubatuba, a fim de subir a serra
por Taubaté e retomar o caminho de casa pelo sul de Minas. Ao
menos a bela paisagem me serviria de consolo nesta jornada
malfadada...
DÉCIMO
PASSO
Na
via Dutra, já a caminho de Lorena, parei num posto de gasolina
que possuía um restaurante. Estava com fome e já
passava do meio dia.
Fiz
um enorme prato de comida da bancada self-service e
me sentei de costas para a TV, feliz por poder finalmente fazer uma
boa refeição. Naquele posto as pessoas não se
preocuparam com minha aparência suja e desgrenhada, também
não repararam no Fusca, que fora lavado apenas com água
e ainda possuía um ou outro resquício de sujeira e
fedor.
Enquanto
comia pude ouvir a voz da jornalista que falava pela TV:
_Agora
uma boa notícia aos turistas que vieram passar férias
no litoral norte de São Paulo e no Rio de Janeiro! A frente
fria que causou fortes chuvas nos últimos dois dias está
finalmente abandonando o litoral e seguindo para o interior. Há
riscos de alguma chuva no final desta tarde, mas a partir de amanhã
vocês podem preparar o protetor solar, pois o tempo fica firme
e as temperaturas sobem, com previsão mínima de 28 e
máxima de 38 graus nas regiões de Ubatuba e Paraty. O
tempo fica firme assim até o fim de semana e com mar sem
ressaca, é diversão garantida aos banhistas...
Enquanto
eu ouvia estas palavras, lá fora a rodovia Dutra começava
a ser banhada pela chuva que havia atravessado a Serra do Mar e
seguia comigo para o interior do país. Grande, enorme má
sorte a minha, ter deixado o litoral justamente agora que as chuvas
haviam passado...
Pior
do que isso! Se a previsão estava correta, as chuvas me
acompanhariam por todo o trajeto até minha terra natal, a
menos que eu saísse dali rapidamente e conseguisse seguir à
frente daquelas nuvens carregadas...
Paguei
a conta rapidamente enquanto fazia alguns cálculos. Se eu
tivesse sorte, conseguiria subir a Serra do Piquete antes do final da
tarde e poderia prosseguir viagem até alguma cidade do Sul de
Minas até o começo da noite, quando eu forçosamente
haveria de parar para dormir, pois meu Fusca não possuía
um bom par de faróis e eu não me arriscaria a viajar
sozinha madrugada a dentro...
DÉCIMO
PRIMEIRO PASSO
Lá
fora a chuva começava a açoitar a rodovia com força.
Rapidamente formou-se uma película d'água sobre a pista
e os carros e caminhões, possuídos pelo espírito
maligno da via Dutra, passavam por mim há cento e trinta
quilômetros por hora, erguendo cortinas de água que me
deixaram às cegas em vários momentos.
O
limpador de parabrisa da Debby não tinha potência para
me permitir enxergar e fui obrigada a parar no posto seguinte,
rezando para que a chuva diminuísse sua intensidade. Esta
segunda parada me custou um atraso de quase duas horas, diminuindo a
“janela de luz” que eu tinha para chegar ao alto da Serra da
Mantiqueira antes do anoitecer.
Finalmente
a chuva pareceu dar uma trégua e pude seguir com a viagem.
Na
subida da Serra do Piquete a chuva voltou a açoitar meu
parabrisa. Fui obrigada a “colar” atrás de um caminhão
e usá-lo como guia. O recurso me ajudou a chegar no alto da
serra em segurança, em compensação a subida foi
lenta, muito lenta e eu ainda não havia avistado a primeira
cidade de Minas Gerais, quando a noite caiu.
Por
sorte lembrei-me de um motel de beira de estrada que eu tinha visto
quando passara por ali na ida. Aquele motel serviria para passar a
noite e pelos meus cálculos, não devia estar longe.
De
fato logo o avistei e fiquei ainda mais feliz quando soube que o
preço do pernoite era de apenas vinte mangos. Expliquei à
recepcionista que estava viajando sozinha, que precisava pernoitar
por não ter coragem de encarar aquela estrada à noite.
Ela compreendeu tudo, disse que meu caso não era isolado e que
vez por outra as pessoas parava ali pelo mesmo motivo. Garantiu que
eu poderia dormir à vontade, que não havia hora limite
para minha estadia pelo menos até o meio do dia seguinte.
Presenteou-me com uma barra de biscoito coberto com chocolate e
avisou que se eu desejasse algo da cozinha, poderia pedir pelo
interfone.
O
quarto do motel era simples. Uma cama redonda em alvenaria estava
coberta por um colchão forrado de plástico e lençol
limpo. Havia uma TV, um rádio e no banheiro, além do
vaso sanitário e da pia, havia um chuveiro elétrico.
Tomei
um belo e demorado banho, me desfazendo da lama e do sal, coloquei as
roupas limpas que eu guardara dentro do saco plástico na
mochila, pedi um lanche com refrigerante e me deitei para assistir a
um filme pornô, pois na TV só passava esse tipo de filme
e eu não tinha mais nada para fazer entre aquela hora do
começo da noite e o sono.
Dormi
cedo, mas apesar disso dormi muito e acabei perdendo boa parte da
manhã, no conforto daquele colchão de motel, que era
muito melhor do que o chão duro onde eu havia passado as
últimas três noites.
Quando
acordei já passava das dez da manhã. Levantei correndo
e sem tomar o café da manhã, saí. Na portaria eu
paguei a conta e a recepcionista me advertiu:
_Tome
cuidado na estrada, porque choveu a noite inteira e eu acho que você
pode encontrar alguns pontos de alagamento...
Enquanto
ela dizia essas palavras, me apontava o dedo para a rodovia e pude
ver do outro lado, que o que antes havia sido um pasto, agora se
transformara num lago.
_Eu
se fosse você ficava por aqui mesmo até a chuva passar.
- ela completou.
Ficar
por ali mesmo, naquele motel? De jeito nenhum! Eu queria ir embora
para casa, pa-ra-ca-saaaaaaa! E faria isso nem que fosse à pé.
Toquei
o Fusca pela rodovia de mão simples, cheia de curvas, cuja
velocidade de segurança, em tempo firme era de oitenta
quilômetros por hora e sob a chuva, era de tediosos quarenta...
Pelos meus cálculos, naquela toada, se nada mais me
acontecesse, chegaria em casa por volta das cinco e meia, seis horas
da tarde.
Dirigi
por cerca de meia hora até a cidade de Itajubá, onde
decidi parar para tomar café e comer alguma coisa que não
fosse pão com pasta de amendoim, mas conforme ia passando pelo
centro da cidade, observei que muitas lojas estavam fechando suas
portas, inclusive as padarias. Parei numa delas e perguntei por que
eles estavam fechando àquela hora da manhã. O
comerciante indicou o céu com o dedo e disse:
_A
enchente vem aí.
Olhei
para o céu atrás de mim, estava tão escuro que
parecia noite. À minha frente o tempo nublado, porém
mais claro, me convidava a prosseguir viagem, o mais rápido
possível.
Subi
no Fusca e acelerei, mas não adiantava ter muita pressa
naquela rodovia sinuosa e molhada, pois com toda aquela minha
“sorte”, acabaria causando algum acidente. Por isso segui na
velocidade segura até a cidade seguinte: Santa Rita do
Sapucaí, onde havia aquele café pitoresco, cujo dono me
chamara de “a moça que traz a enchente”.
Puta
merda, de novo! Eu pensei enquanto estacionava o carro.
Ao
me ver o homem revirou os olhos e foi para a máquina de café:
_O
de sempre? - ele perguntou – Expresso duplo sem açúcar?
_Sim.
- respondi.
_Você
tá vindo de onde?
_Do
litoral.
_E
chegou agora?
_Sim...
_Como?
A
pergunta me surpreendeu: _Pela estrada, oras!
_Vindo
de Itajubá?
_Sim...
_Como?
- o homem percebeu que eu não estava compreendendo direito a
pergunta e explicou – Quero dizer... como foi que você
atravessou Itajubá, se aquela cidade está debaixo
d'água?
_Não
está não. Acabei de passar por lá.
O
homem fez uma cara de contrariedade e pegou o telefone, dali um
minuto ouvi a voz dele perguntando para a pessoa do outro lado da
linha:
_Oi
filha! Tem uma moça aqui no café que disse que passou
por Itajubá agorinha e que a cidade não está
debaixo d'água... você que mora aí, me diz se o
que ouvi é certo, porque no rádio disseram que a
barragem de Delfino Cintra arrebentou e é possível que
a enchente chegue até aqui.
Ele
ouviu com atenção e de vez em quando seus olhos me
encaravam. Por fim despediu-se e desligou, servindo-me o café.
_Minha
filha mora em Itajubá e disse que toda a parte baixa da cidade
está inundada. Se você veio de lá agora, deu uma
tremenda sorte, porque foi só o tempo do comércio ser
avisado e fechar as portas até que a enxurrada viesse.
Fiquei
boquiaberta, pensando no que teria me acontecido se tivesse acordado
alguns minutos mais tarde...
_E
olha moça é melhor você se mandar de Santa Rita,
porque parece que essa barragem estourada vai inundar até aqui
a qualquer momento...
Imediatamente
engoli o café. Não precisava me avisar duas vezes, eu
já tinha percebido que estava apenas alguns quilômetros
à frente da chuva forte e das inundações. Se
ficasse em Santa Rita por mais alguns minutos, a enchente me pegaria
e eu ficaria isolada ali até que o problema da barragem fosse
resolvido, o que poderia durar alguns dias.
Pelo
menos eu tinha sacado meu dinheiro, para qualquer eventualidade, eu
pensei...
_Você
realmente traz enchente. - o homem disse – Faz um favor pra nós,
da próxima vez que resolver viajar, vá para outro
lugar... - e fiquei sem entender se ele estava brincando, ou falando
sério.
_Para
onde você vai? - ouvi uma segunda voz me perguntar. Olhei para
trás e só então me dei conta do senhor sentado
ali. Contei a ele para onde eu ia e ele advertiu – Você não
vai conseguir chegar lá por esse caminho, porque a ponte de
Santa Rita de Caldas caiu. Vai ter que contornar por Ouro Fino e
Jacutinga...
Ouro
Fino e Jacutinga... mas a estrada de Jacutinga é de terra e
por conta das chuvas, deve ter virado uma lama, eu objetei.
O
senhor sacudiu a cabeça: _A estrada foi asfaltada.
_Não
foi não. - eu disse.
_Foi
sim. - ele disse e completou – de qualquer maneira é seu
único caminho para casa. Você não pode ficar aqui
senão vai ficar presa, também não pode voltar
porque tá tudo inundado daqui até Delfino Cintra. Não
pode ir por Santa Rita de Caldas porque a ponte quebrou... Quando
chegar a Pouso Alegre, deve tomar o caminho para Ouro Fino e
Jacutinga. De lá você sabe para onde ir...
_Tem
certeza de que a estrada foi asfaltada?
_Tenho.
Então
estava certo. Faria aquele desvio por Ouro Fino.
_Agora
vá, antes que você fique presa aqui. - disse o senhor.
_Essa
aí é a moça que te falei. - disse o dono do café
enquanto eu saía – Aquela que traz a enchente...
Pelas
minhas costas ouvi o senhor retrucar: _Agora eu acredito...
DÉCIMO
SEGUNDO PASSO
De
volta na estrada fiquei pensando se a enchente havia tido tempo para
passar à minha frente. Eu estava decidida a não fazer
mais nenhuma parada, ainda que minha bexiga estourasse. Mijaria nas
calças se fosse preciso, mas chegaria na minha terra natal
antes do anoitecer e antes que a enchente me alcançasse.
Percebi
que nas baixadas do caminho já haviam trechos de asfalto
cobertos por água. A enchente já me alcançara,
mas a água ainda não subira até um ponto
crítico. Rezei para que aquelas poças não
molhassem o alternador do motor, fazendo com que ele falhasse e
morresse, me deixando presa no meio de um alagamento, ali no nada, à
espera da enxurrada para me arrastar até algum buraco...
Quando
cheguei em Pouso Alegre, percebi que havia deixado o pior para trás.
Minha salvação estava há apenas uma hora e meia
de distância. Atrás de mim as nuvens negras da chuva
feroz que caía já não eram mais visíveis,
mas tudo indicava que elas continuavam seguindo para oeste, na mesma
direção em que eu ia. Se ficasse esperando, o risco de
ser pega novamente era grande, por isso ignorei as paradas
convidativas, apesar da fome que me afligia e segui para Ouro Fino,
como havia sido recomendado.
Descobri
que a estrada de Ouro Fino não havia sido atingida ainda pelas
chuvas daquele dia, estava seca, ensolarada e recentemente
pavimentada. Passei por Borda da Mata, com seus resquícios de
Mata Atlântica e aos pés da serra de Ipuiúna, o
que me adiantou um bocado de tempo, pois a subida da tal serra era
ainda mais sinuosa do que a de Piquete e teria me atrasado em meia
hora se eu tivesse seguido por aquele caminho...
Parecia
que o pior havia passado quando cheguei em Jacutinga e tomei a
estrada para voltar para casa.
Então
o asfalto acabou e eu me vi diante da estrada de terra da qual me
recordava e que devido às chuvas do final do ano, estava ainda
bastante enlameada.
O
senhor que me tinha indicado aquele caminho jurara que a estrada
havia sido asfaltada. Só mais tarde eu vim a saber que de fato
um trecho de uma das rodovias que passavam por Jacutinga, havia sido
asfaltado, mas não era aquele por onde eu devia seguir e agora
era tarde demais para tomar outro desvio.
Segui
em frente pela lama, confiando que meu Fusca faria seu trabalho...
No
meio do caminho vi carros atolados, sendo rebocados por tratores dos
produtores rurais das redondezas e da prefeitura. Porque jamais
asfaltaram aquele trecho de quinze quilômetros, eu jamais
soube. O fato é que minha perícia ao volante, mais a
tração traseira do Fusca, me renderam uma travessia sem
atolamentos, quase nenhum deslize, ou derrapamento.
Apesar
do sucesso da travessia, não pude deixar de sentir cansaço
e nervosismo ao extremo. Aquele último obstáculo havia
exigido o máximo de minhas habilidades ao volante e meus
ânimos tinham chegado ao limite. Como aquela viagem pudera dar
tão errado? Onde estava a minha culpa?
Do
meu ponto de vista tudo o que eu sofrera havia sido causado por
infelizes coincidências. A do caixa eletrônico quebrado
havia sido a pior, pois se não fosse por ele, eu teria ficado
na Cajaíba e não teria enfrentado as enchentes, os
riscos de dirigir sobre trechos alagados e agora mais essa, de ficar
atolada na lama! Por outro lado, se eu tivesse ficado na Cajaíba,
teria perdido meu carro e me desesperado até alguém, ou
alguma iluminação divina, me propor a idéia de
ligar para o guincho e checar...
DÉCIMO
TERCEIRO PASSO
Consegui
sair do trecho sem asfalto e tornei a trafegar por uma rodovia
asfaltada. Contudo a aventura por aquele desvio havia me cobrado
ainda mais tempo do que se eu tivesse cruzado pela serra de Ipuiúna.
Já era noite quando entrei no último trecho de trinta
quilômetros que me distanciavam de casa.
Eu
segui atenta com aqueles faróis fracos e a noite escura, cheia
de nuvens carregadas. No caminho ia enumerando minhas desventuras,
analisando os fatos e buscando formas que poderiam ter me ajudado a
evitá-los.
Compreendam
que para quem viaja sozinho, é importante analisar os erros de
uma jornada, a fim de evitá-los no futuro. Por exemplo: eu
havia tido amplas chances de sacar meu dinheiro em Ubatuba, quando
emprestei dois barões para meu pai. No entanto, havia cometido
o erro de deixar a tarefa para ser cumprida em Paraty, sem levar em
conta o fato de que só havia um único caixa eletrônico
do meu banco naquela cidade. A lição aqui era a de não
deixar para depois o que pudesse ser feito agora...
Outro
grande erro havia sido o estacionamento escolhido. Apesar do local
ser regular e não haver nada, absolutamente nada que me
proibisse de deixar o carro ali, para sempre se eu quisesse, eu havia
negligenciado outras ofertas de estacionamentos privativos pela
cidade, pensando na questão do caixa eletrônico
quebrado, não querendo arriscar pendurar a conta até
minha volta da Cajaíba para descobrir, se fosse o caso, que
ele não havia sido consertado...
Outro
erro tinha sido o de levar a velha bóia inflável, ao
invés de comprar um colchão apropriado para
acampamentos. Sobre esse erro eu amarguei uma ferida no meu orgulho
de mochileira... Se eu estivesse mais bem equipada, não teria
sofrido o desconforto, nem afetada pelo torcicolo que ajudou a
derrubar o meu moral.
Outro
erro tinha sido aguentar calada os absurdos dos meus vizinhos de
acampamento. Por que eu ficara quieta? Porque não quisera me
envolver com aquelas pessoas estranhas... mas isso havia me custado a
paciência, o que me levara a decidir por gastar o pouco
dinheiro que eu tinha precipitadamente, perdendo a chance de passear
com meus colegas pela trilha, me lançando numa louca corrida
contra o tempo e as chuvas, pelas serras do sul de Minas Gerais, à
bordo de meu fiel, mas velho carro.
Mas
o pior erro não tinha sido nenhum dos mencionados acima: o
pior erro tinha sido o de ter ignorado a advertência da
previsão meteorológica que eu ouvira no posto da via
Dutra. Se eu tivesse conseguido ignorar as adversidades, sem permitir
que me afetassem tanto, teria usado a cabeça e concluído
que o melhor seria voltar para Ubatuba, onde eu poderia sacar tanto
dinheiro quanto desejasse de um dos inúmeros caixas
eletrônicos espalhados pela cidade, poderia ter comprado um bom
colchão inflável, apropriado para acampamentos e ter me
hospedado em algum outro camping, por ali mesmo, onde eu pudesse
ficar de olho na Debby, curtir o sol, a semana de férias que
me restava, sem os riscos daquela viagem desesperada com a enxurrada
nos meus calcanhares...
Enquanto
ia vencendo os últimos quilômetros e pensando nestas
coisas, percebi que o volante do Fusca estava instável. Não
precisei parar o veículo para compreender o significado
daquela instabilidade. Depois da minha jornada pela estrada
enlameada, o resultado não podia ser mais óbvio, nem
mais adequado para a somatória de minhas desventuras daquela
semana.
O
pneu estava furado.
Maldição!
Eu gritei, jurando a mim mesma que procuraria uma benzedeira, um
terreiro, um padre, um espírita kardecista, um rabino e o que
mais houvesse entre as ofertas de curas espirituais, para me livrar
daquela terrível má sorte.
Considerei
se parava para trocar o pneu ou arriscava os últimos
quilômetros. Toda a racionalidade do mundo me aconselharia a
parar e usar o estepe, mas em virtude de todas as minhas decisões
“racionais” terem dado errado nos últimos dias, decidi
pelo oposto. Seguiria em frente, custasse o que custasse, até
que a roda encostasse no asfalto. Se até lá eu ainda
não tivesse chegado em casa, pararia e usaria o estepe, mas
pelos meus cálculos eu conseguiria chegar na borracharia mais
próxima, antes que o pneu ficasse completamente vazio.
Chegando
na cidade procurei um borracheiro e quando encontrei um que estivesse
aberto, descobri que meu pneu relativamente novo, estava
estraçalhado, sem condições de ser consertado. O
que havia causado tamanho estrago? Um mísero pedaço de
osso, provavelmente de algum cão que morrera atropelado numa
das estradas por onde eu trafegara. Minha insistência por
prosseguir viagem, mesmo depois de perceber que o pneu estava furado,
acabou me custando cerca de duzentos mangos num pneu novo.
Finalmente
em casa, me deixei cair sobre a cama, sentindo uma felicidade
inusitada por estar sã e salva depois de tantos problemas.
Jamais uma viagem minha havia sido tão difícil. Jamais
voltar para casa havia sido tão bom.
Nos dias seguintes li as notícias nos jornais: Ubatuba estava
isolada por deslizamentos de terras em todas as suas rodovias de
acesso e permaneceu assim por quase dez dias. No sul de Minas todas
as cidades pelas quais eu havia passado, tinham sido inundadas pelas
chuvas torrenciais daquela semana e pelo rompimento da barragem de
Delfino Cintra, custando a vida de muitas pessoas.
Posso
garantir que não há nenhuma relação entre
minhas passagens pelo sul de Minas e as enchentes, pelo menos nenhuma
relação explicável pela ciência, ou pelas
crenças religiosas mais comuns. O fato é que jamais
voltei a estes lugares e coincidentemente, nunca mais ouvi falar de
enchentes por lá...
por CAPELLA
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