Virada do ano!
A criança com o
pai em São Paulo, meu irmão em Ubatuba com os amigos,
meus pais também em Ubatuba, com outros amigos e eu em casa,
em algum lugar do interior do estado.
Já tinha tudo
planejado. Vivia num confortável apartamento no centro da
cidade, de onde poderia ver o movimento e assistir à queima de
fogos do principal clube desportivo. Tudo da minha janela.
Geladeira cheia de
quitutes e eu sozinha. Dia vinte e nove de dezembro de 2006.
Toca o telefone e meu
pai do outro lado da linha:
_Filha!
_Oi pai, tudo bem?
Uma risada:
_Tudo bem, fora que a
velha tomou um porre de vodka! - mais risadas.
Porre de vodka? Minha
mãe? Ela nunca bebe...
_Pois é! - ele
disse rindo muito – Tomou um porre de vodka, depois ficou pedindo
para eu ir devagar na lombada.
Devagar na lombada?
_Sim. Ela ficou
agarrando meu braço e pedindo por favor para eu ir devagar,
porque tinha uma lombada no caminho... - muitas risadas antes dele
completar – Só que nós estávamos à
pé...
Demorei um segundo
para entender e depois disparei a rir.
_Olha, eu estava
conversando com o Zé e disse a ele que você ficou aí
sozinha. Tadinha... Ele ficou com dó, eu estou com dó
de você. Pega suas coisas em vem pra cá! Fica aqui com a
gente!
Em Ubatuba, num
apartamento com sauna, piscina e beira de praia? Imagine! Por que
não, né?
Tô indo... saio
pela madrugada – eu disse e nos despedimos.
Pensei um momento
depois de ter desligado o telefone. Meus pais no apartamento do Zé
até dia primeiro de janeiro e depois de volta para a terra
natal. Eu não tinha nada para fazer até dia dez de
janeiro. Poderia ir para Ubatuba, ficar no apê do Zé até
essa data e depois subir o litoral até o Rio de Janeiro,
acampar na Cajaíba até dia sete, oito, dez...
Saí correndo
até o supermercado que ficava no piso térreo do prédio
onde vivia. Comprei o básico de acampamento: Torrones, atum,
salame, pão de forma, pasta de amendoim, suco em pó,
leite em pó, chocolate em pó, galão de água,
litro de álcool, velas, pilhas, arroz, sopas e macarrão,
pré-cozidos e desidratados. Em casa arrumei a barraca, o
colchão inflável, a mala com bermudas, biquini, cangas,
lençol, uma jaqueta para a chuva, chinelos, tênis para
caminhada, protetor solar, hidratante, outros itens de higiene, um
caderno de anotações, meu livro de cabeceira, as velas,
o álcool para a fogueira, lanterna, pilhas, canivete suíço,
uma panelinha rechaud, um prato de plástico, talheres
de camping, caneca, lona plástica, isqueiro, fósforos,
uma corda de varal, pilhas e uma máquina fotográfica.
Mal dormi, refazendo
mentalmente o trajeto pelo sul de Minas que haveria de seguir,
passando pelas serras de Ipuiúna, Piquete e Taubaté até
Ubatuba.
Ubatuba... cidade
litorânea no norte do estado de São Paulo emoldurada
pelo mar e pela Mata Atlântica, a selva mais antiga do Brasil,
mais antiga do que a selva Amazônica, povoada por micos, onças,
antas...
Quantas vezes estive
lá? Incontáveis... sempre tive sorte para viajar,
principalmente de graça. Amigos e parentes com casas em
lugares pitorescos, o trabalho na ONG e agora essa oportunidade.
Pensei: depois de Uba, vou para a Cajaíba ficar acampada, são
só cem quilômetros de distância. Deixo o carro em
Paraty e sigo de barco. Moleza!
Só não
pensei num detalhe importante: é fim de ano, época de
chuvas, quando os preços sobem e todos os turistas vão
para o litoral...
Na verdade eu pensei
sim neste detalhe, mas não dei bola para ele, afinal, não
é todos os dias que temos a oportunidade de ficar hospedados
num apê bacana por alguns dias e ainda seguir viagem para um
lugar paradisíaco, por isso sacudi os ombros e acertei o
despertador para as quatro da manhã.
Dormi lindamente.
Pela madrugada peguei
meu poderoso Fusca 1978, motor 1.300 cilindradas plus motorista
e parti feliz.
No
toca fitas do Fusca iam tocando Mutantes, Raul, Led, Beatles,
Racionais, Tim Maia, James Brown, Chico Buarque, a jovem Gal Costa, o
jovem Roberto Carlos, numa miscelânea musical bem ao meu gosto.
O
dia estava nublado, mas eu não estava preocupada com isso.
Chover no fim do ano faz parte da rotina brasileira e tudo o que
precisamos é de um pouco de sorte para passar o feriado,
depois, geralmente na primeira, ou segunda semana do novo ano, o
clima acalma e temos uma janela de Sol até perto do carnaval.
Tudo o que precisamos é de um pouco de sorte.
Esse
caminho pelo sul de Minas Gerais é abençoado por uma
paisagem magnífica e algumas barracas de queijo e doces
típicos. Ignorei a maioria delas para parar num Café
pitoresco em Santa Rita do Sapucaí.
Passei
a virada do ano 2000 nesta cidade e dela me recordo da festa, com os
amigos da faculdade e das chuvas que nos expulsaram antes que tudo
ficasse debaixo d'água.
No
café perguntei ao dono se ele se lembrava de mim. Disse que já
tinha passado por ali em 2000, 2002, 2004, 2005 e agora.
O
homem de meia idade e cabelos grisalhos me estudou por um momento,
antes de arregalar os olhos e a boca em reconhecimento:
_Ah!
Sim! Você é a moça que traz a enchente!
Ãhn?
_Você
é a moça que quando passa por aqui é presságio
de enchente. Todas as vezes que você passou a cidade ficou
debaixo d'água. Antes do ano 2000, fazia trinta anos que Santa
Rita não enchia... é você que traz a enchente,
não é?
Ri.
_Claro
que não sou eu que trago a enchente! Mas a coincidência
é mesmo interessante. Quer dizer que todas as vezes que passei
por aqui, trouxe a enchente comigo. Bem... desta vez sinto muito
desapontá-lo, mas não vai encher. Vi na previsão
do tempo que as chuvas começam hoje e terminam dia primeiro do
ano que vem, depois é só Sol, é só
alegria... - eu disse bebericando meu café amargo. Adoro o
café desse Café.
Ele
fez um bico.
_Espero
que não traga a enchente dessa vez. - ele disse – Porque
olha moça, todas as vezes que a cidade enche eu perco tudo!
Me
senti estupidamente culpada e dei uma risadinha de escárnio
levando a coisa para a brincadeira, afinal, o sujeito não
podia estar falando sério sobre eu ser a causa das
enchentes...
Tomei
meu café, comi o pão de queijo legitimamente mineiro
“que minha mulher faz”, segundo o dono do Café e pus de
novo meu pé na estrada.
O
Fusca arregaçando as curvas em sua velocidade absurda de
oitenta quilômetros por hora na subida, cento e dez nas retas e
cento e trinta nas descidas. O barulho do motor se misturando ao
rock'n roll dos auto falantes, torrone, queijo e refrigerante para
acompanhar...
São
280 Km entre minha cidade e Taubaté por este caminho do sul de
Minas. Três descidas de serras, incontáveis curvas e
velocidade média de 60 quilômetros por hora. Leva cerca
de seis horas até lá, mas a viagem lenta não é
exaustiva por conta da paisagem maravilhosa do alto da Serra da
Mantiqueira.
Verde
de Mata Atlântica, entrecortado por outros tons de verde de
culturas férteis, pelo pitoresco das vilas crescidas ao longo
da rodovia, pelo andar tranquilo dos mineiros, pela comida gorda e
saborosa. Um prazer que só não é maior porque
estou sozinha, sem alguém comigo para compartilhar essa
delícia de liberdade.
“Eu
vou sabotar! Você vai se azarar! O que eu não tenho eu
laço! Ninguém vai me gozar, não, não
vai!”
Rita
Lee cantando, Mutantes tocando, barriga cheia, tanque cheio e nenhum
pedágio à vista. Que mais um cidadão brasileiro
que trabalha, paga impostos, dá aulas na rede pública e
não comete crimes pode desejar?
“Top,
top, top, uh!”
A
descida da serra de Piquete foi um pouco desconfortável. Cinco
horas haviam se passado, sobre o banco do Fusca. Nove horas da manhã
e um Sol maravilhoso se insinuava por detrás das nuvens de
chuva. Sol vindo do litoral é sempre um bom presságio,
ainda mais no fim do ano, quando as chuvas de verão atacam os
estados de São Paulo e Rio como um coice de elefante. Mas eu
já estava cansada daquele banco esportista do meu Fusca
alinhado e afinado. Tava na hora de uma parada...
Parada
é o cacete! Vou continuar a viagem até o fim, em Uba eu
paro para desfrutar de tudo do bom e do melhor: descanso, cigarros,
bebidas, comidas, o prazer de estar com meus pais e seus amigos
inteligentes, num lugar bacana, acima de minhas posses, como
convidada especial, paparicada he-he!
PRIMEIRO
PASSO
“But what is and what should never be!” - Led
Zeppelin no toca fitas obsoleto com alto falantes de última
geração, transformando em stéreo de excelente
qualidade, a fita cassete gravada de outra fita cassete, sete anos
atrás.
E
desce a serra, atrás de um caminhão lento de dar dó,
queimando lona de freio, com aquele cheiro característico.
Em
Lorena as coisas ficam mais chatas. Caminho reto, sem paisagem e com
muitas lombadas. Lembro da minha mãe que nunca bebe, no porre
de vodka. Uma correção: em algum momento da conversa
meu pai explicou que o porre tinha sido de “caipiroska”, uma
versão da “Caipirinha” brasileira, feita de vodka ao invés
de cachaça. Então tá explicado! A velha bebeu
achando uma delícia o suco de limão docinho à
beira da praia, só não contava com o efeito retardado
do álcool sutil dos russos. Culpa dos russos! Ha-ha-ha.
Via
Dutra. A via expressa mais porra louca que eu conheço. Todo
mundo anda no mínimo a cento e vinte. Os que estão com
pressa andam a cento e quarenta, e os engraçadinhos cometem
absurdos à cento e sessenta, oitenta... eu e meu Fusca,
apelidado de Debby pela minha querida amiga que fez comigo essa mesma
viagem até a Cajaíba dois anos atrás...
Debby
e eu temos uma longa história. Ela está comigo há
cinco anos, é meu primeiro carro e tenho muito carinho por
ele: troco o óleo a cada cinco mil quilômetros e já
troquei bobina e platinado uma vez. De resto ele não queima
óleo, nem vaza gasolina e isso é tudo o que um Fusca
exige de nós. Com ele já viajei 30.000 quilômetros
sem jamais ter tido problemas e agora sigo cautelosa pela direita,
com medo dos caminhões que quase passam por cima de mim antes
de me ultrapassarem.
Em
Taubaté o trânsito fica gradualmente mais lento. Há
muitos carros descendo a serra e está se formando um
engarrafamento logo no começo da descida. Fico praticamente
parada. Não dá para ignorar o último posto. Paro
mais um pouco para um xixi básico e me ponho em movimento
lento, tedioso. São onze horas da manhã.
Meio
dia. Duas, três, quatro da tarde e não estou na metade
da descida da serra do Mar!
Incrível
um trânsito tão lento!
_Um
acidente perto de Ubatuba. - explica um motorista que volta, para o
motorista que vai à minha frente.
O
calor está de matar dentro do carro sem ar condicionado. Desço
os vidros à manivela, abro os quebra-ventos, bebo água,
fumo, suo e sofro uma dor nas costas, pelas incontáveis horas
sobre o mesmo banco, na mesma posição.
Finalmente
o trânsito embala. São cinco e meia da tarde: onze horas
depois de ter partido, numa viagem de duzentos e oitenta quilômetros!
Velocidade média de vinte e cinco quilômetros por hora!
Ubatuba,
chuva, ubachuva. Fina, com o cheiro salgado do mar, as ruas e seus
esgotos de meio fio, muitas casas mal construídas até o
centro e as praias dos bacanas.
O
apartamento do amigo bacana e inteligente do meu pai fica há
menos de duzentos metros da Praia Grande. Um apê com sauna,
piscina, dois quartos, sala, cozinha e dois banheiros. Só dois
casais presentes, Zé e Do Carmo, pai e mãe.
Encontro-os
num restaurante, comendo camarões com cerveja e salada. Parei
o carro do outro lado da avenida e no instante seguinte havia saído
do tédio e do cansaço da viagem com final tumultuado,
para o paraíso da boa comida, bebida e companhia.
Contei-lhes
sobre a viagem, todos interessados no assunto. Riram quando ouviram
sobre a “moça que traz a enchente” e ficaram espantados
com o trânsito no final da serra.
Doze
horas de viagem! Você está maluca! Devia ter vindo pela
rodovia Ayrton Senna...
Ouvi
de novo a história da lombada e minha mãe bêbada,
rimos muito e já no apartamento não pensei duas vezes e
corri para a sauna e para a piscina, embora já fosse tarde da
noite.
Na
manhã seguinte fomos à praia: mais camarões,
mais capiroskas, mais cerveja, mais sol, mais areia, sal e taxas para
a ducha de água doce. Fiquei indignada com a cobrança e
torrei a pele até não poder mais, me recusando a pagar
pela ducha, embora a taxa fosse relativamente barata.
Pela
noite o show da virada na cobertura do edifício, com vistas
para as queimas de fogos do centro da cidade, das principais praias e
condomínios, regado à champagne e com direito a banho
de piscina no fim da noite.
Pela
madrugada, com o Sol nascendo, fui sozinha até à praia
e ainda pude ver uns malucos- beleza pra lá e pra cá,
derrubando cerveja na areia enquanto lutavam para rir e manter o
equilíbrio ao mesmo tempo. Um casal mais afastado tinha
esquecido que o Sol nasce pela manhã e ainda faziam amor sem
qualquer tipo de proteção...
Eu
mesma estava meio bêbada, com sono e feliz ao mesmo tempo,
sentindo a pele meio ardida do Sol do dia anterior, satisfeita até
os ossos.
Na
hora do almoço meu pai levou um susto. Ao passar o cartão
de débito ele descobriu que estava sem dinheiro! Ficou
consternado. Como isso pode acontecer?
Meu
pai sempre foi um cara que não deve nenhum centavo pra ninguém
e paga a conta de todos os restaurantes. Ficar de “calças
curtas” numa viagem não é do feitio dele. Jamais vi
isso acontecer.
Ele
deu um ou dois telefonemas e soube que tinha sido pago com um cheque
sem fundo de um comprador para quem havia vendido sua safra de café.
O comprador desculpou-se e prometeu pagar tudo em dinheiro tão
logo o feriado passasse. Também tinha sido algo inusitado para
ele, a quem meu pai conhece há um bom tempo...
Enfim... nenhum grande drama, porque meu tio prometeu fazer um
depósito, só que os bancos estão fechados para
depósitos até dia dois de janeiro... mas eu, euzinha
tenho a solução!
Por
incrível que pareça, pela primeira vez na vida, a filha
tem grana para emprestar ao pai! Juntei meu rico dinheirinho durante
o ano letivo e tenho na conta bancária algo em torno de três
barões... o suficiente para bancar mais uns quatro dias de
restaurantes caros, caipiroska, cerveja e camarão à
vontade.
Meu
pai quase chora. Fica orgulhoso e envergonhado ao mesmo tempo. Eu em
silêncio penso em como será o fim da viagem, pois mesmo
acampada, com toda a comida na mochila, precisarei de algumas
reservas para pagar pelo camping, pelo barco até a Cajaíba
e pela gasolina da volta...
Acho
que um barão é suficiente e empresto a ele o restante.
Ele jura que vai me pagar. Tolinho! Tem me bancado desde que nasci e
está preocupado porque pela primeira vez precisa do meu
dinheiro ganho com o suor do meu trabalho!
Dou
um beijo naquelas bochechas rosadas e ele passa a mão pesada
na minha cabeça.
Mesmo
assim meu pai decide voltar embora no dia seguinte, dia dois de
janeiro de 2007. Está preocupado com a falta de dinheiro. Acha
que meu tio pode esquecer de depositar um empréstimo, que o
cara do cheque pode perder o dia útil do depósito e que
isso pode prolongar sua dureza por outros três dias. Então
é melhor ir embora com as reservas que lhe emprestei, que
correr o risco de ficar numa roubada pior.
Se
é assim, também vou embora. Vou subir o litoral e tomar
um barco para a Cajaíba, ficar acampada até o próximo
fim de semana.
Se
é assim o Zé e a Do Carmo também vão
embora, pois não querem ficar sozinhos na praia...
Fazemos
as malas e no dia dois, pelas sete da manhã nos despedimos.
SEGUNDO
PASSO
A
rodovia Santos-Rio segue quase inteira à beira mar. Cada curva
é uma paisagem de selva e mar, há cachoeiras na beira
da estrada, pássaros de cores exuberantes, paradas
convidativas, vilas de caiçaras e sortudos abastados, áreas
intocadas de reserva e trilhas indígenas preservadas. Já
visitei todas as vilas, já fiz quase todas as principais
trilhas, já acampei de praia em praia até depois da
divisa com o Rio de Janeiro... Cada curva que faço é
uma lembrança querida e cheirosa da liberdade.
O
dia está simplesmente maravilhoso. A chuva que caiu na noite
da minha chegada e se prolongou até depois da virada do ano
passou e o céu está daquela cor royal, refletida no mar
turquesa.
Cubro
os cem quilômetros em uma hora e meia, o som do carro e a moral
em alta.
“Não
adianta nada, você querer fugir e nem ficar grilada eu não
sou de desisitir...”
Paraty
está um caos de turista.
Paro
no banco eletrônico para sacar o barão que me sobrou
depois do empréstimo. Há uma fila enorme ali, alguns
turistas são estrangeiros e calçam sandálias
“papete” super confortáveis que não encontro no
Brasil para comprar... O turista que está à cabeça
da fila reclama:
_O
caixa está fora do ar!
Leva
mais de um minuto até todo mundo compreender que não dá
para sacar dinheiro ali. Ao lado há outro banco, de outra
corporação. Todos nos dirigimos para lá, mas o
gerente afirma que não dá para fazer saques de outros
bancos. Voltamos para o primeiro. Há um telefone de contato
ali e ligamos.
O
atendente explica que o caixa eletrônico em questão está
literalmente quebrado e que só no dia seguinte poderá
ser consertado pelos técnicos.
Estamos
todos sem dinheiro. Eu sequer tenho o suficiente para passar a noite
num hotel! Tenho somente duas escolhas: voltar para casa, ou tentar
negociar no porto uma idéia que me ocorreu...
Os
turistas se afastam coçando a cabeça em confusão,
frustrados, decepcionados com a pobre estrutura daquela cidade que é
Patrimônio Histórico da Humanidade.
Volto
para a Debby também frustrada. Tenho um plano, mas não
sei se vai dar certo.
Percorro
o quilômetro e meio até a praia. Os pneus começam
a gritar naquelas bordas afiadas das pedras do calçamento.
Procuro pelo estacionamento onde já tinha deixado meu carro
dois anos atrás. Está fechado. Há outro ao lado,
mas tenho medo de deixar meu carro ali e não ter dinheiro na
volta para pagar. Vai que eles não consertam o banco coisa
nenhuma...
Paro
então o Fusca num cantinho da rua, tomando o cuidado para
verificar as placas de proibição, escolhendo um lugar
legalizado, livre, longe de garagens, longe da esquina, escondido e
sossegado para deixar meu super carro... tomo inclusive a precaução
de desligar a chave geral do sistema elétrico e ainda por
cima, tirar o cachimbo das velas e escondê-lo dentro do
compartimento do motor. Se algum engraçadinho quiser roubar o
Fusca, vai ter tanto trabalho, que provavelmente irá desistir.
TERCEIRO
PASSO
No
porto procuro pelos barcos dos pescadores. Não viajo em
escunas de bacanas. Os pescadores caiçaras são os
legítimos donos da praia, mas viajam em barcos modestos, mais
vagarosos do que os dos oportunistas ricaços, que constroem
suas casas ilegalmente e abrem seus negócios de verão...
Procuro
por um barco que esteja indo para a Cajaíba. Encontro um e
explico minha situação.
Tenho
dinheiro, mas o banco está quebrado. Deixe-me viajar e pago a
despesa na volta, ou faço uma compra de supermercado para eles
no mesmo valor, pois o super aceita cartões...
Dou
sorte de encontrar aqueles pescadores, que são filhos do “seu”
Lourival, dono do camping em que eu costumo ficar. Na Cajaíba
todo mundo é parente de todo mundo e nenhum barco sai de lá
sem que todos saibam de que barco se trata e para onde está
indo.
Os
filhos do “seu” Lourival aceitam o trato, não porque
confiam em mim, mas porque sabem que eu não poderei fugir sem
cumprir com a minha promessa e me pedem para embarcar imediatamente,
pois estão de saída.
Começamos
a viagem pela baía de Paraty.
Aos
poucos o barco se afasta do pier do porto. À direita podemos
ver as agulhas dos veleiros do clube de iatismo, adiante uma ilha
particular, apenas um “cucuruto” de pedras, coberto por vegetação
e por uma mansão.
Essa
mesma ilha fecha um gargalo de mar tendo a ponta da baía do
outro lado. Ali há uma laje de pedra submersa, responsável
por muitos naufrágios e pelos marcos de cruzes e flores na
ponta do continente. Ali também é o limite entre o mar
da baía e o oceano aberto. O capitão explica que o Amyr
Klink, um famoso iatista, diz que aquele gargalo é um dos
lugares mais difíceis para navegar que ele conhece...
Estou
sentada no fundo do barco de pesca, movido por dois motores diesel de
cem cavalos. O barco é todo de madeira, seu casco tem uns dois
metros e meio de altura e está pintado de verde. Chama-se
Princesa da Cajaíba e é navegado por dois marinheiros:
o capitão, que deve ter uns trinta e sete anos e seu imediato,
também seu irmão, mais jovem, com uns vinte anos de
idade. Sou a única passageira e como sempre acontece, estou
bem esperta, de olho no movimento dos dois homens. Como sempre
acontece eles são tranquilos e mal me olham, seguindo com seus
próprios negócios, acostumados aos turistas.
Eu
não os conheço, mas conheço o pai e a mãe
deles, um casal idoso de caiçaras que nasceram, cresceram e
vão morrer naquele lugar abençoado.
O
dia, como disse, está maravilhoso, mas assim que chegamos ao
gargalo as ondas começam a fustigar o casco do barco com uma
força inesperada.
Eu
chacoalho daqui para lá. Estou usando minhas calças de
viagem, modelo “cargo”, botinas de caminhada em trilhas e jaqueta
de couro.
Essa
jaqueta de couro já foi piada em outras viagens minhas ao
litoral. Já riram da minha cara por conta dela. Isso porque é
mesmo estranho alguém levar um casaco pesado para a praia no
verão, mas eu tenho experiência de viagem e posso dizer
que não existe abrigo melhor do que uma jaqueta de couro na
praia, quando chove...
Porém,
usar uma jaqueta num barco, sobre o mar agitado e aberto, pode não
ser uma boa idéia. Nem é boa idéia continuar
calçando essas botinas, porque se o barco virar e eu tiver que
nadar, eu nado; mas não com todo esse peso extra nas costas,
me puxando para o fundo.
Por
outro lado estou sendo precipitada. O mar está mais agitado,
mas não é nenhuma tempestade, pois o céu está
limpo e o Sol está de fritar ovo em pedra... Para me
certificar de que estou assustada sem motivo, fico de olho no capitão
com a seguinte idéia: se ele entrar em pânico, eu também
entro.
Ele
está firme no leme enquanto o barco chacoalha de um lado para
o outro, mas quando estamos passando por sobre a laje submersa,
perto, bem perto dos marcos cristãos em memória aos
mortos que perderam suas vidas em naufrágios naquela ponta do
continente, percebo um arregalar de olhos no capitão, um
movimento brusco e sinto o barco se erguer na crista de uma onda que
devia ter uns dois metros de altura...
Água
entra pelo convés.
O
imediato escorrega e para não ser lançado ao mar, se
agarra no mastro do guindaste da rede de pesca, como um gato.
O
capitão dá uma risada nervosa e eu arranco as botinas,
guardo os documentos, o cartão e o pouco dinheiro que tenho
nos bolsos da calça e me desfaço da jaqueta de couro.
Olho para o lado. Estamos diante do “Saco do Mamanguá”, um
ínstimo com mais de quatro quilômetros de cumprimento,
por um de largura. Do lado esquerdo só existe o oceano e a
sombra difusa da Ilha Grande mais para o norte. Se o barco virar ali
eu terei que nadar uns dois mil metros até a praia mais
próxima e o mar está muito agitado.
Agarro
o encosto do banco. O imediato ainda está agarrado ao mastro e
o capitão tem as sobrancelhas cerradas em atenção,
enquanto joga o leme da direita para a esquerda, procurando pegar as
ondas de frente e guinar o barco sobre as cristas, usando o movimento
para navegar para dentro, ao mesmo tempo que para fora do perigo.
O
coração está acelerado e tenho gosto de ferrugem
na boca. Acho que mordi a língua, mas o pior, a laje de um
lado e a ponta do outro, já passaram. Ufa!
O
resto da viagem é um sacudir para lá e para cá.
O corpo já cansado do percurso de Uba a Paraty, agora virou um
saco de pancadas para o banco de madeira do “Princesa da Cajaíba”.
Minhas costas gritam de dor.
A
viagem de barco demora duas horas. Chego com tempo suficiente apenas
para encontrar um lugar e erguer a barraca. Vou direto ao camping do
“seu” Lourival e no caminho vejo que apesar das dificuldades, da
pouca infra-estrutura, a Cajaíba está cheia de
turistas.
No
camping ele me reconhece e explica que estava lotado. Por sorte um
turista foi embora naquela manhã, no mesmo barco em que eu
tinha vindo e havia um único e mísero espaço no
quintal para a minha instalação. Observo o nicho com a
grama japonesa esbranquiçada sobre o terreno, no local onde a
barraca de um casal de turistas havia estado até a virada do
ano. É suficiente para as minhas necessidades, que neste
momento são urgentes!
É
necessário erguer a barraca, encher o colchão inflável,
encontrar gravetos para fazer uma fogueira e preparar o jantar. Estou
com fome, sem dinheiro no bolso e muito, muito cansada.
Ele
compreende e me oferece seu fogão. Não me oferece
comida, porque senão ficaria chato para os outros hóspedes,
mas se eu precisar fazer um macarrão instantâneo, posso
usar uma boca... é mais do que preciso e agradeço
imensamente pela sua generosidade. Da última vez que estive
neste lugar, eles me deram uma concha enorme, linda, daquelas que dá
para encostar no ouvido e ouvir o mar...
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