Crônica: EPOPEIA EM TREZE PASSOS, pt 1

Virada do ano!
A criança com o pai em São Paulo, meu irmão em Ubatuba com os amigos, meus pais também em Ubatuba, com outros amigos e eu em casa, em algum lugar do interior do estado.
Já tinha tudo planejado. Vivia num confortável apartamento no centro da cidade, de onde poderia ver o movimento e assistir à queima de fogos do principal clube desportivo. Tudo da minha janela.
Geladeira cheia de quitutes e eu sozinha. Dia vinte e nove de dezembro de 2006.
Toca o telefone e meu pai do outro lado da linha:
_Filha!
_Oi pai, tudo bem?
Uma risada:
_Tudo bem, fora que a velha tomou um porre de vodka! - mais risadas.
Porre de vodka? Minha mãe? Ela nunca bebe...
_Pois é! - ele disse rindo muito – Tomou um porre de vodka, depois ficou pedindo para eu ir devagar na lombada.
Devagar na lombada?
_Sim. Ela ficou agarrando meu braço e pedindo por favor para eu ir devagar, porque tinha uma lombada no caminho... - muitas risadas antes dele completar – Só que nós estávamos à pé...
Demorei um segundo para entender e depois disparei a rir.
_Olha, eu estava conversando com o Zé e disse a ele que você ficou aí sozinha. Tadinha... Ele ficou com dó, eu estou com dó de você. Pega suas coisas em vem pra cá! Fica aqui com a gente!
Em Ubatuba, num apartamento com sauna, piscina e beira de praia? Imagine! Por que não, né?
Tô indo... saio pela madrugada – eu disse e nos despedimos.
Pensei um momento depois de ter desligado o telefone. Meus pais no apartamento do Zé até dia primeiro de janeiro e depois de volta para a terra natal. Eu não tinha nada para fazer até dia dez de janeiro. Poderia ir para Ubatuba, ficar no apê do Zé até essa data e depois subir o litoral até o Rio de Janeiro, acampar na Cajaíba até dia sete, oito, dez...
Saí correndo até o supermercado que ficava no piso térreo do prédio onde vivia. Comprei o básico de acampamento: Torrones, atum, salame, pão de forma, pasta de amendoim, suco em pó, leite em pó, chocolate em pó, galão de água, litro de álcool, velas, pilhas, arroz, sopas e macarrão, pré-cozidos e desidratados. Em casa arrumei a barraca, o colchão inflável, a mala com bermudas, biquini, cangas, lençol, uma jaqueta para a chuva, chinelos, tênis para caminhada, protetor solar, hidratante, outros itens de higiene, um caderno de anotações, meu livro de cabeceira, as velas, o álcool para a fogueira, lanterna, pilhas, canivete suíço, uma panelinha rechaud, um prato de plástico, talheres de camping, caneca, lona plástica, isqueiro, fósforos, uma corda de varal, pilhas e uma máquina fotográfica.
Mal dormi, refazendo mentalmente o trajeto pelo sul de Minas que haveria de seguir, passando pelas serras de Ipuiúna, Piquete e Taubaté até Ubatuba.
Ubatuba... cidade litorânea no norte do estado de São Paulo emoldurada pelo mar e pela Mata Atlântica, a selva mais antiga do Brasil, mais antiga do que a selva Amazônica, povoada por micos, onças, antas...
Quantas vezes estive lá? Incontáveis... sempre tive sorte para viajar, principalmente de graça. Amigos e parentes com casas em lugares pitorescos, o trabalho na ONG e agora essa oportunidade. Pensei: depois de Uba, vou para a Cajaíba ficar acampada, são só cem quilômetros de distância. Deixo o carro em Paraty e sigo de barco. Moleza!
Só não pensei num detalhe importante: é fim de ano, época de chuvas, quando os preços sobem e todos os turistas vão para o litoral...
Na verdade eu pensei sim neste detalhe, mas não dei bola para ele, afinal, não é todos os dias que temos a oportunidade de ficar hospedados num apê bacana por alguns dias e ainda seguir viagem para um lugar paradisíaco, por isso sacudi os ombros e acertei o despertador para as quatro da manhã.
Dormi lindamente.
Pela madrugada peguei meu poderoso Fusca 1978, motor 1.300 cilindradas plus motorista e parti feliz.
No toca fitas do Fusca iam tocando Mutantes, Raul, Led, Beatles, Racionais, Tim Maia, James Brown, Chico Buarque, a jovem Gal Costa, o jovem Roberto Carlos, numa miscelânea musical bem ao meu gosto.
O dia estava nublado, mas eu não estava preocupada com isso. Chover no fim do ano faz parte da rotina brasileira e tudo o que precisamos é de um pouco de sorte para passar o feriado, depois, geralmente na primeira, ou segunda semana do novo ano, o clima acalma e temos uma janela de Sol até perto do carnaval. Tudo o que precisamos é de um pouco de sorte.
Esse caminho pelo sul de Minas Gerais é abençoado por uma paisagem magnífica e algumas barracas de queijo e doces típicos. Ignorei a maioria delas para parar num Café pitoresco em Santa Rita do Sapucaí.
Passei a virada do ano 2000 nesta cidade e dela me recordo da festa, com os amigos da faculdade e das chuvas que nos expulsaram antes que tudo ficasse debaixo d'água.
No café perguntei ao dono se ele se lembrava de mim. Disse que já tinha passado por ali em 2000, 2002, 2004, 2005 e agora.
O homem de meia idade e cabelos grisalhos me estudou por um momento, antes de arregalar os olhos e a boca em reconhecimento:
_Ah! Sim! Você é a moça que traz a enchente!
Ãhn?
_Você é a moça que quando passa por aqui é presságio de enchente. Todas as vezes que você passou a cidade ficou debaixo d'água. Antes do ano 2000, fazia trinta anos que Santa Rita não enchia... é você que traz a enchente, não é?
Ri.
_Claro que não sou eu que trago a enchente! Mas a coincidência é mesmo interessante. Quer dizer que todas as vezes que passei por aqui, trouxe a enchente comigo. Bem... desta vez sinto muito desapontá-lo, mas não vai encher. Vi na previsão do tempo que as chuvas começam hoje e terminam dia primeiro do ano que vem, depois é só Sol, é só alegria... - eu disse bebericando meu café amargo. Adoro o café desse Café.
Ele fez um bico.
_Espero que não traga a enchente dessa vez. - ele disse – Porque olha moça, todas as vezes que a cidade enche eu perco tudo!
Me senti estupidamente culpada e dei uma risadinha de escárnio levando a coisa para a brincadeira, afinal, o sujeito não podia estar falando sério sobre eu ser a causa das enchentes...
Tomei meu café, comi o pão de queijo legitimamente mineiro “que minha mulher faz”, segundo o dono do Café e pus de novo meu pé na estrada.
O Fusca arregaçando as curvas em sua velocidade absurda de oitenta quilômetros por hora na subida, cento e dez nas retas e cento e trinta nas descidas. O barulho do motor se misturando ao rock'n roll dos auto falantes, torrone, queijo e refrigerante para acompanhar...
São 280 Km entre minha cidade e Taubaté por este caminho do sul de Minas. Três descidas de serras, incontáveis curvas e velocidade média de 60 quilômetros por hora. Leva cerca de seis horas até lá, mas a viagem lenta não é exaustiva por conta da paisagem maravilhosa do alto da Serra da Mantiqueira.
Verde de Mata Atlântica, entrecortado por outros tons de verde de culturas férteis, pelo pitoresco das vilas crescidas ao longo da rodovia, pelo andar tranquilo dos mineiros, pela comida gorda e saborosa. Um prazer que só não é maior porque estou sozinha, sem alguém comigo para compartilhar essa delícia de liberdade.
Eu vou sabotar! Você vai se azarar! O que eu não tenho eu laço! Ninguém vai me gozar, não, não vai!”
Rita Lee cantando, Mutantes tocando, barriga cheia, tanque cheio e nenhum pedágio à vista. Que mais um cidadão brasileiro que trabalha, paga impostos, dá aulas na rede pública e não comete crimes pode desejar?
Top, top, top, uh!”
A descida da serra de Piquete foi um pouco desconfortável. Cinco horas haviam se passado, sobre o banco do Fusca. Nove horas da manhã e um Sol maravilhoso se insinuava por detrás das nuvens de chuva. Sol vindo do litoral é sempre um bom presságio, ainda mais no fim do ano, quando as chuvas de verão atacam os estados de São Paulo e Rio como um coice de elefante. Mas eu já estava cansada daquele banco esportista do meu Fusca alinhado e afinado. Tava na hora de uma parada...
Parada é o cacete! Vou continuar a viagem até o fim, em Uba eu paro para desfrutar de tudo do bom e do melhor: descanso, cigarros, bebidas, comidas, o prazer de estar com meus pais e seus amigos inteligentes, num lugar bacana, acima de minhas posses, como convidada especial, paparicada he-he!

PRIMEIRO PASSO

But what is and what should never be!” - Led Zeppelin no toca fitas obsoleto com alto falantes de última geração, transformando em stéreo de excelente qualidade, a fita cassete gravada de outra fita cassete, sete anos atrás.
E desce a serra, atrás de um caminhão lento de dar dó, queimando lona de freio, com aquele cheiro característico.
Em Lorena as coisas ficam mais chatas. Caminho reto, sem paisagem e com muitas lombadas. Lembro da minha mãe que nunca bebe, no porre de vodka. Uma correção: em algum momento da conversa meu pai explicou que o porre tinha sido de “caipiroska”, uma versão da “Caipirinha” brasileira, feita de vodka ao invés de cachaça. Então tá explicado! A velha bebeu achando uma delícia o suco de limão docinho à beira da praia, só não contava com o efeito retardado do álcool sutil dos russos. Culpa dos russos! Ha-ha-ha.
Via Dutra. A via expressa mais porra louca que eu conheço. Todo mundo anda no mínimo a cento e vinte. Os que estão com pressa andam a cento e quarenta, e os engraçadinhos cometem absurdos à cento e sessenta, oitenta... eu e meu Fusca, apelidado de Debby pela minha querida amiga que fez comigo essa mesma viagem até a Cajaíba dois anos atrás...
Debby e eu temos uma longa história. Ela está comigo há cinco anos, é meu primeiro carro e tenho muito carinho por ele: troco o óleo a cada cinco mil quilômetros e já troquei bobina e platinado uma vez. De resto ele não queima óleo, nem vaza gasolina e isso é tudo o que um Fusca exige de nós. Com ele já viajei 30.000 quilômetros sem jamais ter tido problemas e agora sigo cautelosa pela direita, com medo dos caminhões que quase passam por cima de mim antes de me ultrapassarem.
Em Taubaté o trânsito fica gradualmente mais lento. Há muitos carros descendo a serra e está se formando um engarrafamento logo no começo da descida. Fico praticamente parada. Não dá para ignorar o último posto. Paro mais um pouco para um xixi básico e me ponho em movimento lento, tedioso. São onze horas da manhã.
Meio dia. Duas, três, quatro da tarde e não estou na metade da descida da serra do Mar!
Incrível um trânsito tão lento!
_Um acidente perto de Ubatuba. - explica um motorista que volta, para o motorista que vai à minha frente.
O calor está de matar dentro do carro sem ar condicionado. Desço os vidros à manivela, abro os quebra-ventos, bebo água, fumo, suo e sofro uma dor nas costas, pelas incontáveis horas sobre o mesmo banco, na mesma posição.
Finalmente o trânsito embala. São cinco e meia da tarde: onze horas depois de ter partido, numa viagem de duzentos e oitenta quilômetros! Velocidade média de vinte e cinco quilômetros por hora!
Ubatuba, chuva, ubachuva. Fina, com o cheiro salgado do mar, as ruas e seus esgotos de meio fio, muitas casas mal construídas até o centro e as praias dos bacanas.
O apartamento do amigo bacana e inteligente do meu pai fica há menos de duzentos metros da Praia Grande. Um apê com sauna, piscina, dois quartos, sala, cozinha e dois banheiros. Só dois casais presentes, Zé e Do Carmo, pai e mãe.
Encontro-os num restaurante, comendo camarões com cerveja e salada. Parei o carro do outro lado da avenida e no instante seguinte havia saído do tédio e do cansaço da viagem com final tumultuado, para o paraíso da boa comida, bebida e companhia.
Contei-lhes sobre a viagem, todos interessados no assunto. Riram quando ouviram sobre a “moça que traz a enchente” e ficaram espantados com o trânsito no final da serra.
Doze horas de viagem! Você está maluca! Devia ter vindo pela rodovia Ayrton Senna...
Ouvi de novo a história da lombada e minha mãe bêbada, rimos muito e já no apartamento não pensei duas vezes e corri para a sauna e para a piscina, embora já fosse tarde da noite.
Na manhã seguinte fomos à praia: mais camarões, mais capiroskas, mais cerveja, mais sol, mais areia, sal e taxas para a ducha de água doce. Fiquei indignada com a cobrança e torrei a pele até não poder mais, me recusando a pagar pela ducha, embora a taxa fosse relativamente barata.
Pela noite o show da virada na cobertura do edifício, com vistas para as queimas de fogos do centro da cidade, das principais praias e condomínios, regado à champagne e com direito a banho de piscina no fim da noite.
Pela madrugada, com o Sol nascendo, fui sozinha até à praia e ainda pude ver uns malucos- beleza pra lá e pra cá, derrubando cerveja na areia enquanto lutavam para rir e manter o equilíbrio ao mesmo tempo. Um casal mais afastado tinha esquecido que o Sol nasce pela manhã e ainda faziam amor sem qualquer tipo de proteção...
Eu mesma estava meio bêbada, com sono e feliz ao mesmo tempo, sentindo a pele meio ardida do Sol do dia anterior, satisfeita até os ossos.
Na hora do almoço meu pai levou um susto. Ao passar o cartão de débito ele descobriu que estava sem dinheiro! Ficou consternado. Como isso pode acontecer?
Meu pai sempre foi um cara que não deve nenhum centavo pra ninguém e paga a conta de todos os restaurantes. Ficar de “calças curtas” numa viagem não é do feitio dele. Jamais vi isso acontecer.
Ele deu um ou dois telefonemas e soube que tinha sido pago com um cheque sem fundo de um comprador para quem havia vendido sua safra de café. O comprador desculpou-se e prometeu pagar tudo em dinheiro tão logo o feriado passasse. Também tinha sido algo inusitado para ele, a quem meu pai conhece há um bom tempo...
Enfim... nenhum grande drama, porque meu tio prometeu fazer um depósito, só que os bancos estão fechados para depósitos até dia dois de janeiro... mas eu, euzinha tenho a solução!
Por incrível que pareça, pela primeira vez na vida, a filha tem grana para emprestar ao pai! Juntei meu rico dinheirinho durante o ano letivo e tenho na conta bancária algo em torno de três barões... o suficiente para bancar mais uns quatro dias de restaurantes caros, caipiroska, cerveja e camarão à vontade.
Meu pai quase chora. Fica orgulhoso e envergonhado ao mesmo tempo. Eu em silêncio penso em como será o fim da viagem, pois mesmo acampada, com toda a comida na mochila, precisarei de algumas reservas para pagar pelo camping, pelo barco até a Cajaíba e pela gasolina da volta...
Acho que um barão é suficiente e empresto a ele o restante. Ele jura que vai me pagar. Tolinho! Tem me bancado desde que nasci e está preocupado porque pela primeira vez precisa do meu dinheiro ganho com o suor do meu trabalho!
Dou um beijo naquelas bochechas rosadas e ele passa a mão pesada na minha cabeça.
Mesmo assim meu pai decide voltar embora no dia seguinte, dia dois de janeiro de 2007. Está preocupado com a falta de dinheiro. Acha que meu tio pode esquecer de depositar um empréstimo, que o cara do cheque pode perder o dia útil do depósito e que isso pode prolongar sua dureza por outros três dias. Então é melhor ir embora com as reservas que lhe emprestei, que correr o risco de ficar numa roubada pior.
Se é assim, também vou embora. Vou subir o litoral e tomar um barco para a Cajaíba, ficar acampada até o próximo fim de semana.
Se é assim o Zé e a Do Carmo também vão embora, pois não querem ficar sozinhos na praia...
Fazemos as malas e no dia dois, pelas sete da manhã nos despedimos.


SEGUNDO PASSO
A rodovia Santos-Rio segue quase inteira à beira mar. Cada curva é uma paisagem de selva e mar, há cachoeiras na beira da estrada, pássaros de cores exuberantes, paradas convidativas, vilas de caiçaras e sortudos abastados, áreas intocadas de reserva e trilhas indígenas preservadas. Já visitei todas as vilas, já fiz quase todas as principais trilhas, já acampei de praia em praia até depois da divisa com o Rio de Janeiro... Cada curva que faço é uma lembrança querida e cheirosa da liberdade.
O dia está simplesmente maravilhoso. A chuva que caiu na noite da minha chegada e se prolongou até depois da virada do ano passou e o céu está daquela cor royal, refletida no mar turquesa.
Cubro os cem quilômetros em uma hora e meia, o som do carro e a moral em alta.
Não adianta nada, você querer fugir e nem ficar grilada eu não sou de desisitir...”

Paraty está um caos de turista.
Paro no banco eletrônico para sacar o barão que me sobrou depois do empréstimo. Há uma fila enorme ali, alguns turistas são estrangeiros e calçam sandálias “papete” super confortáveis que não encontro no Brasil para comprar... O turista que está à cabeça da fila reclama:
_O caixa está fora do ar!
Leva mais de um minuto até todo mundo compreender que não dá para sacar dinheiro ali. Ao lado há outro banco, de outra corporação. Todos nos dirigimos para lá, mas o gerente afirma que não dá para fazer saques de outros bancos. Voltamos para o primeiro. Há um telefone de contato ali e ligamos.
O atendente explica que o caixa eletrônico em questão está literalmente quebrado e que só no dia seguinte poderá ser consertado pelos técnicos.
Estamos todos sem dinheiro. Eu sequer tenho o suficiente para passar a noite num hotel! Tenho somente duas escolhas: voltar para casa, ou tentar negociar no porto uma idéia que me ocorreu...
Os turistas se afastam coçando a cabeça em confusão, frustrados, decepcionados com a pobre estrutura daquela cidade que é Patrimônio Histórico da Humanidade.
Volto para a Debby também frustrada. Tenho um plano, mas não sei se vai dar certo.
Percorro o quilômetro e meio até a praia. Os pneus começam a gritar naquelas bordas afiadas das pedras do calçamento. Procuro pelo estacionamento onde já tinha deixado meu carro dois anos atrás. Está fechado. Há outro ao lado, mas tenho medo de deixar meu carro ali e não ter dinheiro na volta para pagar. Vai que eles não consertam o banco coisa nenhuma...
Paro então o Fusca num cantinho da rua, tomando o cuidado para verificar as placas de proibição, escolhendo um lugar legalizado, livre, longe de garagens, longe da esquina, escondido e sossegado para deixar meu super carro... tomo inclusive a precaução de desligar a chave geral do sistema elétrico e ainda por cima, tirar o cachimbo das velas e escondê-lo dentro do compartimento do motor. Se algum engraçadinho quiser roubar o Fusca, vai ter tanto trabalho, que provavelmente irá desistir.

TERCEIRO PASSO

No porto procuro pelos barcos dos pescadores. Não viajo em escunas de bacanas. Os pescadores caiçaras são os legítimos donos da praia, mas viajam em barcos modestos, mais vagarosos do que os dos oportunistas ricaços, que constroem suas casas ilegalmente e abrem seus negócios de verão...
Procuro por um barco que esteja indo para a Cajaíba. Encontro um e explico minha situação.
Tenho dinheiro, mas o banco está quebrado. Deixe-me viajar e pago a despesa na volta, ou faço uma compra de supermercado para eles no mesmo valor, pois o super aceita cartões...
Dou sorte de encontrar aqueles pescadores, que são filhos do “seu” Lourival, dono do camping em que eu costumo ficar. Na Cajaíba todo mundo é parente de todo mundo e nenhum barco sai de lá sem que todos saibam de que barco se trata e para onde está indo.
Os filhos do “seu” Lourival aceitam o trato, não porque confiam em mim, mas porque sabem que eu não poderei fugir sem cumprir com a minha promessa e me pedem para embarcar imediatamente, pois estão de saída.
Começamos a viagem pela baía de Paraty.
Aos poucos o barco se afasta do pier do porto. À direita podemos ver as agulhas dos veleiros do clube de iatismo, adiante uma ilha particular, apenas um “cucuruto” de pedras, coberto por vegetação e por uma mansão.
Essa mesma ilha fecha um gargalo de mar tendo a ponta da baía do outro lado. Ali há uma laje de pedra submersa, responsável por muitos naufrágios e pelos marcos de cruzes e flores na ponta do continente. Ali também é o limite entre o mar da baía e o oceano aberto. O capitão explica que o Amyr Klink, um famoso iatista, diz que aquele gargalo é um dos lugares mais difíceis para navegar que ele conhece...
Estou sentada no fundo do barco de pesca, movido por dois motores diesel de cem cavalos. O barco é todo de madeira, seu casco tem uns dois metros e meio de altura e está pintado de verde. Chama-se Princesa da Cajaíba e é navegado por dois marinheiros: o capitão, que deve ter uns trinta e sete anos e seu imediato, também seu irmão, mais jovem, com uns vinte anos de idade. Sou a única passageira e como sempre acontece, estou bem esperta, de olho no movimento dos dois homens. Como sempre acontece eles são tranquilos e mal me olham, seguindo com seus próprios negócios, acostumados aos turistas.
Eu não os conheço, mas conheço o pai e a mãe deles, um casal idoso de caiçaras que nasceram, cresceram e vão morrer naquele lugar abençoado.
O dia, como disse, está maravilhoso, mas assim que chegamos ao gargalo as ondas começam a fustigar o casco do barco com uma força inesperada.
Eu chacoalho daqui para lá. Estou usando minhas calças de viagem, modelo “cargo”, botinas de caminhada em trilhas e jaqueta de couro.
Essa jaqueta de couro já foi piada em outras viagens minhas ao litoral. Já riram da minha cara por conta dela. Isso porque é mesmo estranho alguém levar um casaco pesado para a praia no verão, mas eu tenho experiência de viagem e posso dizer que não existe abrigo melhor do que uma jaqueta de couro na praia, quando chove...
Porém, usar uma jaqueta num barco, sobre o mar agitado e aberto, pode não ser uma boa idéia. Nem é boa idéia continuar calçando essas botinas, porque se o barco virar e eu tiver que nadar, eu nado; mas não com todo esse peso extra nas costas, me puxando para o fundo.
Por outro lado estou sendo precipitada. O mar está mais agitado, mas não é nenhuma tempestade, pois o céu está limpo e o Sol está de fritar ovo em pedra... Para me certificar de que estou assustada sem motivo, fico de olho no capitão com a seguinte idéia: se ele entrar em pânico, eu também entro.
Ele está firme no leme enquanto o barco chacoalha de um lado para o outro, mas quando estamos passando por sobre a laje submersa, perto, bem perto dos marcos cristãos em memória aos mortos que perderam suas vidas em naufrágios naquela ponta do continente, percebo um arregalar de olhos no capitão, um movimento brusco e sinto o barco se erguer na crista de uma onda que devia ter uns dois metros de altura...
Água entra pelo convés.
O imediato escorrega e para não ser lançado ao mar, se agarra no mastro do guindaste da rede de pesca, como um gato.
O capitão dá uma risada nervosa e eu arranco as botinas, guardo os documentos, o cartão e o pouco dinheiro que tenho nos bolsos da calça e me desfaço da jaqueta de couro. Olho para o lado. Estamos diante do “Saco do Mamanguá”, um ínstimo com mais de quatro quilômetros de cumprimento, por um de largura. Do lado esquerdo só existe o oceano e a sombra difusa da Ilha Grande mais para o norte. Se o barco virar ali eu terei que nadar uns dois mil metros até a praia mais próxima e o mar está muito agitado.
Agarro o encosto do banco. O imediato ainda está agarrado ao mastro e o capitão tem as sobrancelhas cerradas em atenção, enquanto joga o leme da direita para a esquerda, procurando pegar as ondas de frente e guinar o barco sobre as cristas, usando o movimento para navegar para dentro, ao mesmo tempo que para fora do perigo.
O coração está acelerado e tenho gosto de ferrugem na boca. Acho que mordi a língua, mas o pior, a laje de um lado e a ponta do outro, já passaram. Ufa!
O resto da viagem é um sacudir para lá e para cá. O corpo já cansado do percurso de Uba a Paraty, agora virou um saco de pancadas para o banco de madeira do “Princesa da Cajaíba”. Minhas costas gritam de dor.
A viagem de barco demora duas horas. Chego com tempo suficiente apenas para encontrar um lugar e erguer a barraca. Vou direto ao camping do “seu” Lourival e no caminho vejo que apesar das dificuldades, da pouca infra-estrutura, a Cajaíba está cheia de turistas.
No camping ele me reconhece e explica que estava lotado. Por sorte um turista foi embora naquela manhã, no mesmo barco em que eu tinha vindo e havia um único e mísero espaço no quintal para a minha instalação. Observo o nicho com a grama japonesa esbranquiçada sobre o terreno, no local onde a barraca de um casal de turistas havia estado até a virada do ano. É suficiente para as minhas necessidades, que neste momento são urgentes!
É necessário erguer a barraca, encher o colchão inflável, encontrar gravetos para fazer uma fogueira e preparar o jantar. Estou com fome, sem dinheiro no bolso e muito, muito cansada.
Ele compreende e me oferece seu fogão. Não me oferece comida, porque senão ficaria chato para os outros hóspedes, mas se eu precisar fazer um macarrão instantâneo, posso usar uma boca... é mais do que preciso e agradeço imensamente pela sua generosidade. Da última vez que estive neste lugar, eles me deram uma concha enorme, linda, daquelas que dá para encostar no ouvido e ouvir o mar...

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