Conto: ATÉ O ÚLTIMO PEDAÇO pt.6

QUARTA VISITA

Cerca de uma semana e meia se passou até que a nova cela do Dr. Daniel estivesse pronta. Ao todo gastamos dois mil e quinhentos reais no empreendimento, mil e quinhentos a mais do que a previsão inicial. Isso deixou Rodrigo enfurecido, mas eu consegui apaziguar sua fúria, quando disse que o Dr. Daniel havia concordado em me ajudar com o livro.
Fiquei encarregada de agilizar o transporte dos componentes de vidro à prova de choque entre a fábrica em São Paulo e o Hospital em Franco da Rocha. Também fui atrás de mão-de-obra para a adequação dessa instalação. Fui obrigada a envolver-me pessoalmente nestas tarefas para que a reforma saísse dentro do prazo, do contrário teria perdido minhas férias esperando.
Quando tornei a ver o Dr. Daniel ele já estava instalado na sua nova cela, no último andar do edifício que abrigava o hospital prisão.
Duas celas haviam sido preparadas para ele. A parede que as dividiam tinha sido derrubada, as grades substituídas por vidro à prova de choque e por uma porta de ferro com uma fenda de segurança, por onde ele seria algemado quando fosse necessário. Esta nova acomodação possuía duas janelas, uma prateleira que havia sido guarnecida com vários livros e revistas cedidos pela minha editora, o rádio de pilhas, uma pequena TV, além da cama com um novo colchão mais confortável e os outros itens básicos para o seu dia a dia.
O Sol entrava pelas barras das janelas, através dos vidros e iluminava o ambiente.
Quando cheguei o Dr. Daniel estava em posição de lótus, sentado diante dos raios, banhando-se de luz. Ele percebeu minha chegada e lentamente se ergueu do chão. No seu rosto havia um sorriso indecifrável.
_Bom dia Donna! - ele abriu os braços sinalizando para a cela – Gosta das acomodações que arrumou para mim?
_Parece melhor do que antes. Como se sente?
Ele fez uma pausa, pareceu saborear alguma coisa na boca e estalou a língua:
_Eu me sinto melhor do que antes. Não é um quarto de hotel cinco estrelas, a vista é pobre e sem graça, mas não quero parecer mal agradecido... isso aqui é um paraíso, comparado à outra cela onde vivi os últimos dez anos de minha vida.
_Fico feliz em saber...
_Fica?
A pergunta me pegou de surpresa.
_Sim. Acho que mesmo um detento merece viver em condições de dignidade...
_Dignidade... - Daniel sacudiu a cabeça e foi servir o café e enquanto o fazia ele disse – Você assume seu sadismo sem qualquer constrangimento.
_Não é sadismo! - eu protestei – Acredito mesmo nisso! Você é um assassino, está cumprindo uma pena enorme, mas isso não significa que deva passar o resto dos seus dias num buraco escuro. Tem gente que acha o contrário: que assassinos cruéis deveriam sofrer o resto da vida num buraco escuro, ou sob tortura, ou ainda a pena de morte... estes são sádicos!
_Não. Estes são macacos imbecis que acreditam na justiça do “olho por olho, dente por dente”. Eles não compreendem que o verdadeiro sofrimento é aquele que incide paulatinamente sobre o desejo, o pensamento e a alma. A pena imposta ao corpo não é nada. Punir o corpo do criminoso é um tipo de sadismo tão chulo quanto é chulo o sentimentalismo adocicado das novelas. Você é do tipo sádico mais refinado, que vem até aqui cheia de curiosidade mórbida, faz promessas, insinua com seu charme, joga a esperança como isca e assim tenta capturar o meu desejo. Seu eu lhe permitisse, você me tornaria seu escravo. Eu escreveria suas histórias e você colheria os frutos sem dividi-los com ninguém. Você é do tipo que gosta de humilhar. Provavelmente suas vítimas seriam estranguladas - os olhos dele apertaram-se na minha direção, enquanto ele colocava o copo de café na gaveta de comunicação – Ah sim! Você enlaçaria seus pescoços e ficaria à espera daquele momento em que o esfincter da vítima se solta e ela se borra toda nos estertores da morte. Você farejaria o fedor e soltaria a corda, e faria tudo de novo, incontáveis vezes, não pelo desejo de torturar o corpo, oh não! Você faria isso só pelo prazer de observar como a esperança da vítima se esvai enquanto você aperta a corda e retorna, quando você a solta... chamaria a ausência de sangue nas mãos de dignidade, com a mesma frieza com a qual vem até aqui e se satisfaz ao me ver como um animalzinho de estimação numa jaula novinha em folha.
_Por que está me dizendo estas coisas? Não vejo como ter te ajudado pode significar sadismo de um tipo mais refinado...
_Talvez eu esteja enganado. – ele disse com desprezo - Talvez você não seja uma mulher inteligente... – Daniel me estudou em silêncio por um instante. Seu rosto estava fechado numa carranca de asco e por um momento achei que ele fosse me mandar embora – Nossa missão é escrever um livro de ficção policial horripilante, não é? – ele disse mudando o tom de desprezo para um tom de empolgação forçada - Então vamos acabar logo com isso. Onde está sua caneta e seu caderno? Sugiro que tome notas do que eu lhe disser, porque você escuta, mas não ouve. Como irá lembrar-se dos detalhes mais tarde, quando for conversar com os doutores deste hospital?
Busquei o caderno e a caneta dentro da bolsa e ele sorriu:
_Você imagina que o meu isolamento me impede de tomar conhecimento das coisas que acontecem em outras alas deste hospital. Por que acha que um cego de nascença geralmente tem ouvidos mais sensíveis do que os das outras pessoas?
_Porque lhe falta o sentido da visão, logo seu cérebro aguça mais outros sentidos...
_Exatamente.
Fiquei olhando para Daniel com uma expressão meio idiota no rosto. Já estava começando a me acostumar com a sensação de vertigem que ele provocava. Todas as nossas conversas tinham oscilado entre a mais pura racionalidade e os altos vôos da imaginação tresloucada. Às vezes, quando ele começava aquelas deduções, eu podia vislumbrar o lunático por detrás da verborragia, mas então, quando a coisa toda parecia descambar para os delírios, ele retomava o fio da meada e no fim, as coisas acabavam fazendo sentido. Como agora, quando já tínhamos mudado de assunto e minha mente lerda, finalmente compreendia o que ele havia querido dizer com “sádica refinada”.
Do ponto de vista de Daniel, a mudança de cela havia representado um fio de esperanças, contudo a minha recusa em arrumar-lhe um advogado era como o chicote nas mãos do sádico das histórias eróticas. Eu capturara-lhe o desejo e tinha sobre ele um poder de barganha que o faria ficar sobre as quatro patas se eu lhe ordenasse, por outro lado ele sabia que eu jamais largaria o chicote, que eu jamais lhe arranjaria uma defesa...
_Pergunte então... - ele sugeriu parecendo ligeiramente impaciente.
_Você mata porque gosta de matar ou porque gosta de comer as vítimas? – repeti a pergunta que não me saía da cabeça.
Daniel fechou os olhos. Era eu quem agora lhe dava um chicotinho com o qual ele podia me punir, ou me redimir daquelas visitas.
_O seu assassino, o que ele prefere? - perguntou em troca.
_Não foi isso que combinamos – protestei – Combinamos que você me responderia uma pergunta e para cada pergunta respondida, faria outra em troca. Não combinamos que para cada pergunta, você responderia com outra pergunta...
_O que você prefere? Escrever uma história sobre um assassino serial, ou roubar a minha história e publicar em seu nome? Se quiser ser uma escritora de verdade, tem que construir o perfil de seu personagem por si mesma. Eu sou apenas um consultor...
Balancei a cabeça: _Compreendo e de fato prefiro ser parte ativa na construção dessa personagem, mas o que eu quero saber é a sua preferência...
Daniel disparou numa gargalhada e sacudiu a cabeça: _Talvez você mesma possa responder a essa pergunta se construir um perfil consistente. Diga-me, o que o seu assassino prefere?
Dei de ombros: _Não sei. Talvez comer as vítimas seja uma forma descomplicada de sumir com as provas do crime. Desovar um corpo em algum lugar me parece um negócio muito arriscado, por outro lado, comer a vítima me parece uma coisa nojenta, mas pode ser uma solução para o incômodo trabalho de sumir com a prova do crime...
_Neste caso seu assassino seria apenas um canibal de ocasião, que se força a engolir os pedaços da vítima, porque assim é mais fácil sumir com as evidências do crime. Seu canibal é um homem sem imaginação, ou criatividade. Talvez por essa razão você seja apenas uma escritora de bancas de jornais e não de grandes livrarias, que nunca escreverá um grande livro que te coloque nas críticas dos jornais e revistas literárias...
_Por que ele é um homem sem criatividade? Eu estou tentando encontrar uma explicação racional para o fato dele comer suas vítimas... talvez não haja racionalidade nisso, talvez seja apenas um prazer. - justifiquei.
Os olhos do Doutor Daniel brilharam:
_Um prazer, de comer, ou um prazer matar?
_É a sua pergunta em troca da minha? - sugeri.
_Não. É apenas um desdobramento lógico da sua própria questão. Responda-me! - ele grunhiu – Não vou a lugar algum, mas não quero ficar perdendo meu tempo...
_Um prazer de matar... ele come porque acha isso sofisticado, gosta de cozinhar para os amigos, de receber elogios e inflar seu ego, enquanto serve pedaços humanos no jantar.
Daniel riu: _Você acha que seu assassino come as vítimas porque é um jeito fácil de se despojar dos corpos, ao mesmo tempo é um meio através do qual ele pode desfrutar o prazer de receber elogios quanto aos seus dotes culinários. Diga-me, como é que ele se desfaz dos ossos?
Ossos? Não tinha pensado naquilo...
_Há muitos ossos que são característicos dos seres humanos e que qualquer pessoa poderia reconhecer: crânio, dentes, cabeça do fêmur, pés, mãos... como ele se desfaz disso?
_Não sei. Não tinha pensado nisso... dê-me uma pista.
Daniel deu de ombros e cruzou as pernas, apoiando um cotovelo sobre o joelho e a cabeça sobre a palma da mão.
_Ele pode moer alguns ossos, se tiver uma boa máquina. Pode usar os ossos moídos em compostos orgânicos para o jardim, pode se desfazer deles em qualquer lugar, sem chamar atenção, mas enquanto ele não termina de moer os ossos das vítimas, tem em sua casa uma coleção de evidências de seu crime. Agora imagine que uma máquina de moer ossos não seja algo que se compra na loja da esquina... na verdade, uma máquina assim é muito maior, mais cara e barulhenta do que pode supor. Talvez ele dê um tratamento químico aos ossos, algo que os corroa até transformá-los em uma sopa de cálcio e ácido. O que acha?
_Acho que ele não faz nem uma coisa nem outra. Acho que ele se despoja dos ossos na calada da noite, em algum buraco afastado da civilização...
_Então seu assassino é um idiota! Ele é um homem que se obriga a comer as vítimas porque é uma forma fácil de se livrar dos corpos, também os serve em jantares aos amigos para inflar seu ego, mas no fim das contas acaba tendo que trasladar os ossos de qualquer maneira... Imagine se ele é pego numa blitz rodoviária, ou se um pneu fura, ou se o carro quebra no meio do caminho! Como ele vai explicar à polícia as cabeças de fêmur, os crânios, mãos e pés em seu porta malas e ainda pedir um remédio para a má digestão?
Fiquei muda. Disfarcei meu embaraço anotando algumas palavras soltas no caderno, sem prestar atenção nelas, apenas para não parecer tão tola aos olhos dele. Não sei porque tinha a preocupação de parecer mais inteligente do que sou diante daquele homem... de qualquer maneira ele conseguia me fazer sentir imbecil.
_Todo assassino é um idiota. - retruquei querendo parecer inteligente e provocadora.
_Ah é? Você então me julga um idiota? - Daniel deu uma grande gargalhada – A definição psiquiátrica do idiota poderia surpreendê-la. Os idiotas eram originalmente assim classificados por sua incapacidade de relacionarem-se socialmente dentro dos padrões morais e culturais. Eram idiotas os gênios, os tímidos, os deficientes auditivos, os traumatizados, os deficientes mentais, enfim... qualquer pessoa que não fosse enquadrada nos padrões da época em que os dicionários de patologias mentais estavam sendo redigidos. Contudo, não quis dizer que seu assassino seja um homem com problemas de relacionamento social, quando o chamei de idiota. Dei ao termo a conotação moderna: idiota no sentido de ignorância, imbecilidade, incapacidade mental... você me diz que todos os assassinos são idiotas neste sentido. Você me julga um idiota? Acredita que eu seja um ignorante mentalmente incapaz de tomar uma decisão lógica? Por que então preocupar-se com a construção de um perfil complexo? Descreva seu assassino como alguém que baba e urina nas próprias calças!
Novamente aquela sensação de vertigem...
_Tá! - eu concordei – Fiz um comentário imbecil. Nem todos os assassinos são idiotas, mas todos eles tem em comum o fato de não se importarem com a vida alheia...
Daniel sacudiu a cabeça: _Neste caso, como você define os assassinatos passionais, aqueles movidos pela ira, ou pela vingança? Há assassinos que seriam incapazes de matar uma mosca, mas quando devidamente pressionados, encontraram dentro de si uma força capaz de subtrair uma vida humana. Por que estes assassinos amargam o remorso? Se não se importassem com a vida alheia, não se arrependeriam de seus crimes...
Eu estava num beco sem saída e fechei a boca achando que era o melhor que eu podia fazer.
_Seu assassino é um idiota se mata por prazer e come apenas para se livrar dos despojos, ou para inflar seu próprio ego quando serve estas iguarias bem preparadas aos amigos. – ele concluiu por fim.
_Então ele mata pelo prazer de comer, não de matar.
Daniel bateu palmas: _Finalmente! Você compreendeu!
Encarei-o, tentando transmitir alguma cumplicidade no olhar: _É por isso que você matou aquelas pessoas? Pelo prazer de comê-las?
Daniel sacudiu a cabeça e o dedo indicador: _Não confunda o seu assassino com o meu assassino. Estamos aqui construindo um perfil fictício. Não estamos falando de mim.
_Então fale-me de você. Da sua preferência...
_Assim você me leva para o fundo do poço da decepção! Fica repetindo as mesmas perguntas como um disco riscado. Já lhe disse que não vou escrever a história para você! O assassino é seu, está dentro de você o que por definição já o faz ser diferente do meu.
_Ok, meu assassino mata pelo prazer de comer. Não se importa em absoluto com os despojos, nem com o risco de ser pego pela polícia. Tudo o que ele quer é o prazer de sentar-se à mesa com os amigos e degustar aquelas iguarias que ele adquire com tantos riscos. Os amigos não sabem que comem restos humanos, isso também é um prazer secreto que ele alimenta, o de ser um sádico. Ele não tem arrependimentos, nem qualquer remorso porque...
Calei minha boca novamente sem saber como continuar, mas Daniel pareceu finalmente interessado no que eu tinha para dizer e instigou-me a continuar.
_Porque ele escolhe as vítimas certas. Não comete erros. Mata aqueles que de algum modo ele sente que devem morrer. – arrisquei.
_Por que estas vítimas devem morrer?
_Porque elas o irritam profundamente. Elas são rudes, mal educadas, são do tipo que não farão falta à sociedade. Ele as vê como porcos num criadouro, como uma população excedente, que servirá melhor à sociedade se desaparecer...
_Seu assassino então mata por ódio?
_Sim... acho que sim. Acho que ele odeia todo mundo, mas nutre rancores especiais contra as pessoas muito barulhentas, muito rudes, aquelas que são capazes de pisar no seu pé sem ao menos pedir desculpas...
Daniel riu novamente às gargalhadas: _Esse assassino é realmente muito perigoso. É incrível que ele esteja solto, que não tenha sido preso logo no início do seu livro, pois se é capaz de matar quem lhe pisa no pé, imagine o que faria com os vendedores de porta em porta, com os jovens que ouvem músicas em alto volume, com as pessoas que conversam no cinema, com os pregadores da fé que tentam convertê-lo?
_Você não acha que ele escolhe suas vítimas movido pelo ódio?
_Não sei. Já disse que o assassino é seu. Diga-me você por que motivos ele escolhe suas vítimas?
_Se fosse por motivos culinários, daria preferência às pessoas gordas...
Daniel torceu o nariz enojado: _Uma boa culinária usa outros critérios na escolha dos animais que serão abatidos... a gordura só serve como critério se for para saciar a fome. Agora se for para produzir refeições gourmet, há diferentes aplicações para cada tipo de gordura, de cada tipo de animal.
_Quais os critérios culinários para a escolha das vítimas? Saúde, cor da pele, idade, atividades físicas?
_Não sei. Seu assassino é um chef, ou um cozinheiro amador? Qual é a sua formação?
Agradeci pela sugestão e anotei no meu caderno um lembrete para pesquisar o assunto “gastronomia” e também o histórico familiar do Doutor Daniel.
_Fico feliz em ajudá-la a definir melhor o seu tipo de morbidez. Sinto que fizemos progressos aqui. Na nossa última visita, você nem tinha consciência do assassino que existe dentro de você. Hoje já tem alguns critérios, inclusive na escolha de suas vitimas...
_Estamos falando de uma personagem de ficção, não estamos desenhando o meu perfil, ou seu perfil, não é? Você disse que esse assassino é diferente do seu. Ele tampouco sou eu. Na verdade ele não existe.
Daniel fechou o rosto e se levantou. Pareceu ofendido e eu pensei: lá vem!
_Eu não sofro de delírios, ou alucinações. Sei muito bem distinguir a verdade da ficção. É você quem tem problemas para perceber onde as coisas se misturam. É você que não percebe o quanto esta curiosidade fala sobre mais sobre si do que sobre sua profissão. Você não está aqui apenas para desenhar o perfil do assassino, você está aqui porque quer me compreender melhor, quer estabelecer parâmetros de comparação entre o que sou e o que você é. Quer sentir que existe uma diferença essencial entre nós, algo que nos distingue verdadeiramente, porque isso estabelecerá uma distância intransponível entre os meus crimes e o seu desejo. Diga-me, Donna, porque agora é minha vez de fazer uma pergunta, qual é sua lembrança mais antiga?
Quase ri da questão. Era óbvio que ele tentava fundamentar sua análise sobre mim, recorrendo aos artifícios da psicologia. Como leiga eu sabia que este jogo era perigoso. Se ao menos tivesse feito terapia em algum momento da vida, ou lido sobre o assunto, poderia compreender as ferramentas, mas só podia intuir que partindo das minhas memórias, dos meus traumas de infância, da minha relação com a família, ele chegasse a alguma conclusão maluca.
_Lembro-me de implorar ao médico para que me tirasse o gesso. Quebrei o braço quando tinha dois anos...
_Como?
_Caí da cama.
_Você se lembra de ter caído da cama?
Sacudi a cabeça: _Não. Disso eu não me lembro.
_Quem te contou que você caiu da cama?
_Minha mãe...
_Ela viu você cair da cama?
_Sim.
_Quem mais estava com você neste dia?
_Não sei, não me lembro. Só lembro de implorar ao médico para que ele me tirasse o gesso.
Daniel fechou os olhos e ficou de pé, parado por quase um minuto.
_Eu queria lhe fazer uma pergunta, mas agora é sua vez... - ele disse finalmente.
Suspirei aliviada. Não queria falar sobre minha vida pessoal àquele homem.
_Como é o gosto da carne humana? - perguntei.
Daniel fez uma careta e sacudiu a cabeça novamente: _Você me desaponta a cada pergunta. Por que perder seu tempo em vir aqui para me perguntar algo tão subjetivo quanto isso? Tente descrever um cheiro sem usar outros cheiros como comparação... da mesma forma tente descrever o gosto de alguma coisa sem usar outras... não é possível responder a essa questão. É como tentar definir a diferença entre o bom gosto, o vulgar e o chulo. Você sabe que eles existem e que são diferentes, mas é impossível traçar uma linha nítida entre eles. Não posso dizer a você que o gosto da carne humana parece com o gosto da carne de porco, ou de boi, ou de frango, ou de coelho. Você sabe que cada animal tem um gosto diferente e não pode descrever seu paladar sobre a carne de porco, usando como comparação a carne de boi, porque a conclusão será a mesma embutida na pergunta: é simplesmente diferente. Só isso. Se quer mesmo saber, tem que experimentar...
_Não vou matar alguém para comer.
_Mas mataria por outro motivo?
_Essa é sua pergunta para mim, ou um desdobramento do raciocínio?
_Você já sabe a resposta... e então, mataria por algum outro motivo?
_Talvez... para me defender, ou por ódio, mas não para comer.
_Todos somos assassinos primordiais. Todos temos esse instinto primordial de sobrevivência, mas você admite que mataria também por ódio e este não é um motivo instintivo, nem justificável pelos padrões morais atuais.
_Só levantei uma hipótese...
_E qual circunstância te deixa prestes a cometer um crime por ódio?
_Não sei. Nunca estive perto de matar ninguém por esse motivo, ou qualquer outro... como eu disse, só levantei uma hipótese. Estou tentando escrever uma história de ficção, não preciso fazer outra coisa além de imaginar. Minha história não é uma metáfora da minha vida, ou de meus desejos secretos. É apenas uma fórmula comprovada pelo mercado literário...
_Sabe a diferença entre metáfora e alegoria?
Eu ri: _Sou escritora. Não sou das melhores, mas trabalho com essas diferenças no dia a dia. A metáfora é uma figura de linguagem que estabelece uma comparação implícita entre um fato imaginativo e uma realidade, pode ser facilmente compreendida. Uma alegoria é como um arquétipo, tem uma ligação com a vida que é indireta, mais simbólica...mais difícil de ser estabelecida e que age geralmente no subconsciente do leitor. Os sonhos são mais alegóricos que metafóricos, por isso a relação entre eles e a vida real não é direta, mas através deles é possível encontrar o sentido oculto sob camadas simbólicas... não sei explicar exatamente, mas posso usar os sonhos como exemplos de alegorias.
Daniel balançou a cabeça afirmativamente: _Como você descreve sua mãe?
_Minha mãe? - sacudi a cabeça – Você já me fez a pergunta pessoal, quando quis saber se eu conhecia a diferença entre metáfora e alegoria. Agora é minha vez.
_Minha pergunta sobre metáfora e alegoria tem a ver com a sua pergunta sobre comer carne humana. É um desdobramento lógico da sua própria curiosidade e portanto, servirá como parte da minha resposta. A pergunta pessoal é sobre sua mãe...
_Minha mãe é uma mulher forte, destemida, batalhadora... - sacudi os ombros – Não há muito o que dizer sobre ela.
_Errado. Você tem muito a dizer sobre ela. Sua mãe definiu sua personalidade, seu caráter, seu comportamento social e privado. Você se veste dessa maneira desleixada não apenas porque se julga inteligente, mas porque foi afetada tão profundamente pelo que ela é, que nem se dá conta do quanto ela reprimiu sua individualidade. Sua mãe é vaidosa ao extremo, arrogante e controladora. Provavelmente foi ela quem quebrou o seu braço naquele dia e inventou essa desculpa esfarrapada de que você caiu da cama, para justificar o ferimento e não sofrer as consequências do abuso. Provavelmente ela ameaçou você de todas as formas possíveis e imagináveis, desde violência física até abusos psicológicos clássicos do tipo: você não é nada, é feia, desleixada, é idiota e não conseguirá vencer na vida...
_Essa não é minha mãe, esse é você, Daniel. Você é que tem me acusado de desleixo desde o primeiro dia que pus meus pés aqui. - eu acusei, sentindo leves espasmos musculares. Aquele homem me tirava do sério. Por que não podíamos simplesmente manter a conversa dentro dos objetivos? Por que ele tinha que tentar de todas as formas incutir na minha cabeça alguma suposta origem, para minha suposta maldade reprimida? - Minha mãe me ama e fez tudo o que podia para me dar amor, conforto e boa educação. Você está enganado.
Daniel empinou o nariz: _Não. Você é que está, mas não precisa admitir isso para mim. Sei o quanto é difícil encarar os próprios pais com as lentes da maturidade. Eles são pessoas e erram como qualquer um. Quando somos obrigados a perceber isso, é sempre um choque, mas também é elucidativo, porque admitir essa verdade nos obriga a encarar nossos traumas, nossos desvios e fraquezas. Alguns conseguem superar esses obstáculos e evoluir, outros ficam presos a eles, presos à idéia equivocada de que os pais não erram, são heróis, assim como seu assassino que escolhe as vítimas que odeia e livra a sociedade do peso morto que representam. Seu assassino é no fundo um herói. Você não reconhece o erro nele. Quer salvá-lo do julgamento alheio e inventa o ódio como justificativa. Seu assassino tem muito de sua mãe e de seu pai...
Como explicar àquele homem que eu estava ali para executar uma simples tarefa de preencher lacunas vazias numa fórmula clássica de personagem fictício? Por que complicar tanto as coisas, tentando trazer para a discussão minhas relações familiares, os traumas de infância, os erros cometidos pelos meus pais?
_Para completar o quadro, devo dizer que seu pai era um homem ausente. Você o adorava, ele era seu herói, sua força, mas quando tornou-se adulta percebeu que era fácil demais amá-lo por uma ou outra vez em que ele se colocou entre sua mãe e você para protegê-la. Se ele tivesse protegido você de verdade, teria sido mais difícil amá-lo, porque ele teria se exposto mais e revelado todos os seus defeitos. No entanto, em suas lembranças ele é mais perfeito do que ela, porque não se envolveu o suficiente. Deixou-a carente de proteção e afeto. Poupou-se do trabalho e em compensação recebeu de você mais do que estava disposto a dar. Sua mãe ressente-se disso, porque mesmo quando ela te ofendia, dava mais atenção a você do que ele, mesmo quando ela te insultava, isso lhe era mais trabalhoso do que os vagos elogios dele e você nunca devolveu a ela uma dedicação à mesma altura. Era ele quem você queria o tempo todo e quanto mais você o desejava, mais ele se afastava, mais ela se aproximava e mais você o desejava, retroalimentando esse círculo vicioso de carência e desfuncionalidade. Um caso típico freudiano... “complexo de Electra”. Eu poderia sugerir que você a perdoasse e o acusasse frontalmente. Seria uma forma de forçar a superação de suas emoções reprimidas. Poderia sugerir que se confessasse a ela, que dissesse o quanto a odiou ao longo dos anos, mas não acredito que estas técnicas sejam de fato as mais adequadas para o seu caso específico, porque em algum momento de sua vida você descobriu como superar a maior parte dessas carências. Debruçou-se sobre o papel e reproduziu nele a repressão de seus sentimentos. Você não expressa nada em seus livros que seja pessoal, mas sem saber, trabalha alegoricamente sobre seus sentimentos. Condensa nas personagens aquilo que poderia efetivamente levá-la à superação, mas não dá o passo final porque tem medo de perder o chão.
_E que passo final seria esse?
Daniel aproximou-se do vidro e me encarou com um sorriso de triunfo nos lábios: _O de transformar sua vida em algo tão interessante quanto um de seus livros. Pense nisso e voltaremos a conversar amanhã. Sinto que seu tempo acabou e tenho alguns novos livros para ler. Obrigado pela visita.
Emerson esperou minha resposta. Ele havia perguntado se eu compreendia o que o Dr. Daniel estava tentando fazer.
_Ele está tentando me analisar...
Emerson sacudiu a cabeça: _Ele não está fazendo isso. Ele está usando elementos de psicoterapia, para penetrar na sua cabeça, no seu íntimo e manipular você...
Emerson explicou que aquele recurso de me perguntar coisas sobre a infância era como pedir emprestada as chaves da casa de alguém. Uma vez que eu lhe desse a chave, ele poderia entrar e bagunçar tudo lá dentro. Disse-me que Daniel provavelmente já tinha o meu perfil mais bem construído do que eu, sobre a personagem do meu livro. Disse-me que ele tinha sido um dos melhores psiquiatras do país, antes de ser preso e condenado.
_Você precisa se armar. Precisa compreender que não deve dar respostas verdadeiras às perguntas que ele te faz. Também deve ter cautela com as mentiras que vai inventar, porque ele pode farejá-las tão bem quanto fareja o café que bebe.
_Então como?
Emerson deu um suspiro. Não era fácil lidar com um homem como Daniel, cuja inteligência parecia desafiar nossa capacidade de percepção entre o saudável e o insano.
_Se eu mentir ele descobre e lê através das mentiras aquilo que eu estou tentando ocultar. Se não ocultar só lhe facilito o trabalho. Não sei como sair desse dilema! - concluí vencida.
_Você tem que compreender o que ele quer antes de poder se defender. É como um jogo de xadrez. Você joga?
_Jogava... quando era estudante universitária.
_Era boa?
_Mediocre...
_Mas entende os fundamentos? Compreende que no xadrez só existe uma estratégia, aquela que diz que o ataque é a melhor defesa? - balancei a cabeça e Emerson continuou – No xadrez você sabe de antemão que o objetivo do adversário é capturar o seu rei, por isso os maus jogadores acabam preocupados demais com as próprias defesas e se esquecem que o fundamental é atacar! O mesmo está para acontecer com você. Você acha que o objetivo dele é convencê-la de que é uma assassina fria e cruel, tanto quanto a personagem que você quer inventar, por isso se arma contra esses ataques, querendo passar a impressão de que jamais faria tal coisa, de que não tem um precedente para isso. Enquanto você ergue suas defesas, ele percebe onde estão suas fraquezas. É como olhar para um muro alto. Só em olhar para ele você tira duas conclusões importantes: a primeira e mais óbvia é que não vai ser fácil escalá-lo. A segunda e mais importante é que aquele muro está protegendo alguma coisa e quanto mais alto e espesso ele é, mais frágil é a coisa que ele protege... entendeu?
Meus olhos estavam arregalados. Emerson às vezes parecia o próprio Daniel, como um negativo de fotografia. Ri da comparação e disse a ele o que estava pensando. Ele riu também e concordou:
_Entre Daniel e eu há mais semelhanças do que eu desejaria... ambos somos médicos e psquiatras, ambos temos especializações em mitos e arquétipos. Conhecemos a mesma linguagem técnica por assim dizer, por isso propus que fizesse essas sessões. Minha tarefa é traduzir as intenções dele a seu respeito.
_E o que você acha que eu devo fazer, para evitar que ele chegue ao objetivo final? Aliás que objetivo é esse? Você insinuou que ele quer me transformar numa assassina, ou pelo menos me fazer ver que isso é uma possibilidade, dado minha infância traumática, minhas carências afetivas, sentimentos reprimidos, etc... você acha que eu corro o risco de sair daqui matando e comendo pessoas se ficar dando elementos sobre minha vida ao Dr. Macabro?
Emerson sacudiu a cabeça: _Não. Não acho que você seja tão manipulável. Acho que ele faria isso se pudesse, se você fosse composta de outro tipo de fibra, mas sua tarefa, a de escrever um livro de ficção policial mantém seu foco fixo. Ele está tentando encontrar um canal por onde possa atingir você através da alegoria do assassino e do pai ausente, mas não creio que o objetivo seja o de transformá-la numa assassina, ou fazê-la admitir isso... acho que ele está testando o tamanho de seu muro, para descobrir a natureza de suas fraquezas e aí sim mostrar qual é o jogo.
E o que poderia ser isso? O que poderia ser o objetivo final na cabeça insana do Dr. Macabro? Reduzir-me a um ser submisso, ou fazer aflorar em mim um poderoso dragão assassino? O que o Dr. Daniel esperava com aquelas regressões e comparações alegóricas? Que eu me desmanchasse perante sua infinita sabedoria? Que eu o tomasse como mestre definitivo para o afloramento de meus instintos sombrios e reprimidos?
_Ele tenta me convencer de que matar é natural ao homem. Falou em assassinato primordial, aquele que é cometido pelo instinto primordial da sobrevivência...
_Ele está se auto-justificando. Se convencer você de que matar é algo natural, reafirma a si próprio como humano e se redime dos próprios crimes...
_Você está dizendo que ele está em conflito?
Emerson balançou a cabeça. Estava sentado em sua cadeira, atrás da grande mesa de madeira que era sua escrivaninha naquele consultório antiquado. Estávamos a sós e já passava da hora do almoço.
_Claro que está em conflito! Como alguém que cometeu tais crimes não confrontaria mais dia menos dia o conflito moral? Ele não quer admitir esse conflito, por isso tenta convencer você de que matar pode ser tão natural quanto respirar. Se conseguir isso, ele reafirma a si próprio e o conflito acaba.
_Então há algo de humano aí?
Emerson se remexeu incomodado com a sugestão.
_Não sei... ele não costuma cometer estes deslizes psicológicos. Ele conhece a rotina, sabe que a tentativa de convencê-la soará aos meus ouvidos como conflito interior... o próximo passo seria ele admitir que errou, mostrar algum remorso...
_Por quê? Que jogo é esse?
_Você pergunta a um maluco por que é que ele mastiga vidro? Que resposta pode ser verdadeira: porque é gostoso, ou porque ele é maluco? - o médico ajeitou os óculos sobre o nariz – Só Deus sabe o que se passa na cabeça desse lunático. Estamos tentando encontrar uma lógica nesta história toda, porque acreditamos que ele age através de uma, afinal tudo o que ele diz parece fazer perfeito sentido dentro do que ele é: um psiquiatra condenado por assassinato. Assim ele tentou convencer você de que não é um monstro, de que é inocente e agora tenta convencê-la de que no fundo vocês não são tão diferentes como imagina. Ele está tentando ganhar sua simpatia, é o que parece, talvez porque ainda tenha esperanças de que vá procurar um advogado que reabra seu caso para uma revisão...
Acreditei nesta última hipótese. Ela realmente fazia mais sentido. Toda aquela história de tentar me analisar, trazendo à tona minhas memórias de infância, eram apenas subterfúgios para que ele pudesse testar melhor minhas defesas e desviar minhas atenções do seu objetivo final, que era acabar me conquistando a confiança e empatia.
_E o que me aconselha a fazer? Como devo agir?
_Não sei se deve encorajá-lo a pensar que há uma empatia entre vocês. Ele é doente e isso irá apenas reforçar seus delírios, por outro lado, ele não sofre de uma patologia clássica, através da qual possamos prever exatamente aonde ele quer chegar. Talvez ele tenha plena consciência de tudo isso: de sua doença, de seus motivos, de suas origens e só esteja usando você para conseguir um advogado. Talvez ele esteja jogando algum outro jogo muito mais insano do que podemos supor. Acho que você deve deixar que ele evolua, mantenha a linha de ação atual para que possamos ter novos elementos de análise.

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