QUARTA
VISITA
Cerca de
uma semana e meia se passou até que a nova cela do Dr. Daniel
estivesse pronta. Ao todo gastamos dois mil e quinhentos reais no
empreendimento, mil e quinhentos a mais do que a previsão
inicial. Isso deixou Rodrigo enfurecido, mas eu consegui apaziguar
sua fúria, quando disse que o Dr. Daniel havia concordado em
me ajudar com o livro.
Fiquei
encarregada de agilizar o transporte dos componentes de vidro à
prova de choque entre a fábrica em São Paulo e o
Hospital em Franco da Rocha. Também fui atrás de
mão-de-obra para a adequação dessa instalação.
Fui obrigada a envolver-me pessoalmente nestas tarefas para que a
reforma saísse dentro do prazo, do contrário teria
perdido minhas férias esperando.
Quando
tornei a ver o Dr. Daniel ele já estava instalado na sua nova
cela, no último andar do edifício que abrigava o
hospital prisão.
Duas
celas haviam sido preparadas para ele. A parede que as dividiam tinha
sido derrubada, as grades substituídas por vidro à
prova de choque e por uma porta de ferro com uma fenda de segurança,
por onde ele seria algemado quando fosse necessário. Esta nova
acomodação possuía duas janelas, uma prateleira
que havia sido guarnecida com vários livros e revistas cedidos
pela minha editora, o rádio de pilhas, uma pequena TV, além
da cama com um novo colchão mais confortável e os
outros itens básicos para o seu dia a dia.
O Sol
entrava pelas barras das janelas, através dos vidros e
iluminava o ambiente.
Quando
cheguei o Dr. Daniel estava em posição de lótus,
sentado diante dos raios, banhando-se de luz. Ele percebeu minha
chegada e lentamente se ergueu do chão. No seu rosto havia um
sorriso indecifrável.
_Bom dia
Donna! - ele abriu os braços sinalizando para a cela – Gosta
das acomodações que arrumou para mim?
_Parece
melhor do que antes. Como se sente?
Ele fez
uma pausa, pareceu saborear alguma coisa na boca e estalou a língua:
_Eu me
sinto melhor do que antes. Não é um quarto de hotel
cinco estrelas, a vista é pobre e sem graça, mas não
quero parecer mal agradecido... isso aqui é um paraíso,
comparado à outra cela onde vivi os últimos dez anos de
minha vida.
_Fico
feliz em saber...
_Fica?
A
pergunta me pegou de surpresa.
_Sim.
Acho que mesmo um detento merece viver em condições de
dignidade...
_Dignidade...
- Daniel sacudiu a cabeça e foi servir o café e
enquanto o fazia ele disse – Você assume seu sadismo sem
qualquer constrangimento.
_Não
é sadismo! - eu protestei – Acredito mesmo nisso! Você
é um assassino, está cumprindo uma pena enorme, mas
isso não significa que deva passar o resto dos seus dias num
buraco escuro. Tem gente que acha o contrário: que assassinos
cruéis deveriam sofrer o resto da vida num buraco escuro, ou
sob tortura, ou ainda a pena de morte... estes são sádicos!
_Não.
Estes são macacos imbecis que acreditam na justiça do
“olho por olho, dente por dente”. Eles não compreendem que
o verdadeiro sofrimento é aquele que incide paulatinamente
sobre o desejo, o pensamento e a alma. A pena imposta ao corpo não
é nada. Punir o corpo do criminoso é um tipo de sadismo
tão chulo quanto é chulo o sentimentalismo adocicado
das novelas. Você é do tipo sádico mais refinado,
que vem até aqui cheia de curiosidade mórbida, faz
promessas, insinua com seu charme, joga a esperança como isca
e assim tenta capturar o meu desejo. Seu eu lhe permitisse, você
me tornaria seu escravo. Eu escreveria suas histórias e você
colheria os frutos sem dividi-los com ninguém. Você é
do tipo que gosta de humilhar. Provavelmente suas vítimas
seriam estranguladas - os olhos dele apertaram-se na minha direção,
enquanto ele colocava o copo de café na gaveta de comunicação
– Ah sim! Você enlaçaria seus pescoços e
ficaria à espera daquele momento em que o esfincter da vítima
se solta e ela se borra toda nos estertores da morte. Você
farejaria o fedor e soltaria a corda, e faria tudo de novo,
incontáveis vezes, não pelo desejo de torturar o corpo,
oh não! Você faria isso só pelo prazer de
observar como a esperança da vítima se esvai enquanto
você aperta a corda e retorna, quando você a solta...
chamaria a ausência de sangue nas mãos de dignidade, com
a mesma frieza com a qual vem até aqui e se satisfaz ao me ver
como um animalzinho de estimação numa jaula novinha em
folha.
_Por que
está me dizendo estas coisas? Não vejo como ter te
ajudado pode significar sadismo de um tipo mais refinado...
_Talvez
eu esteja enganado. – ele disse com desprezo - Talvez você
não seja uma mulher inteligente... – Daniel me estudou em
silêncio por um instante. Seu rosto estava fechado numa
carranca de asco e por um momento achei que ele fosse me mandar
embora – Nossa missão é escrever um livro de ficção
policial horripilante, não é? – ele disse mudando o
tom de desprezo para um tom de empolgação forçada
- Então vamos acabar logo com isso. Onde está sua
caneta e seu caderno? Sugiro que tome notas do que eu lhe disser,
porque você escuta, mas não ouve. Como irá
lembrar-se dos detalhes mais tarde, quando for conversar com os
doutores deste hospital?
Busquei
o caderno e a caneta dentro da bolsa e ele sorriu:
_Você
imagina que o meu isolamento me impede de tomar conhecimento das
coisas que acontecem em outras alas deste hospital. Por que acha que
um cego de nascença geralmente tem ouvidos mais sensíveis
do que os das outras pessoas?
_Porque
lhe falta o sentido da visão, logo seu cérebro aguça
mais outros sentidos...
_Exatamente.
Fiquei
olhando para Daniel com uma expressão meio idiota no rosto. Já
estava começando a me acostumar com a sensação
de vertigem que ele provocava. Todas as nossas conversas tinham
oscilado entre a mais pura racionalidade e os altos vôos da
imaginação tresloucada. Às vezes, quando ele
começava aquelas deduções, eu podia vislumbrar o
lunático por detrás da verborragia, mas então,
quando a coisa toda parecia descambar para os delírios, ele
retomava o fio da meada e no fim, as coisas acabavam fazendo sentido.
Como agora, quando já tínhamos mudado de assunto e
minha mente lerda, finalmente compreendia o que ele havia querido
dizer com “sádica refinada”.
Do ponto
de vista de Daniel, a mudança de cela havia representado um
fio de esperanças, contudo a minha recusa em arrumar-lhe um
advogado era como o chicote nas mãos do sádico das
histórias eróticas. Eu capturara-lhe o desejo e tinha
sobre ele um poder de barganha que o faria ficar sobre as quatro
patas se eu lhe ordenasse, por outro lado ele sabia que eu jamais
largaria o chicote, que eu jamais lhe arranjaria uma defesa...
_Pergunte
então... - ele sugeriu parecendo ligeiramente impaciente.
_Você
mata porque gosta de matar ou porque gosta de comer as vítimas?
– repeti a pergunta que não me saía da cabeça.
Daniel
fechou os olhos. Era eu quem agora lhe dava um chicotinho com o qual
ele podia me punir, ou me redimir daquelas visitas.
_O seu
assassino, o que ele prefere? - perguntou em troca.
_Não
foi isso que combinamos – protestei – Combinamos que você
me responderia uma pergunta e para cada pergunta respondida, faria
outra em troca. Não combinamos que para cada pergunta, você
responderia com outra pergunta...
_O que
você prefere? Escrever uma história sobre um assassino
serial, ou roubar a minha história e publicar em seu nome? Se
quiser ser uma escritora de verdade, tem que construir o perfil de
seu personagem por si mesma. Eu sou apenas um consultor...
Balancei
a cabeça: _Compreendo e de fato prefiro ser parte ativa na
construção dessa personagem, mas o que eu quero saber é
a sua preferência...
Daniel
disparou numa gargalhada e sacudiu a cabeça: _Talvez você
mesma possa responder a essa pergunta se construir um perfil
consistente. Diga-me, o que o seu assassino prefere?
Dei de
ombros: _Não sei. Talvez comer as vítimas seja uma
forma descomplicada de sumir com as provas do crime. Desovar um corpo
em algum lugar me parece um negócio muito arriscado, por outro
lado, comer a vítima me parece uma coisa nojenta, mas pode ser
uma solução para o incômodo trabalho de sumir com
a prova do crime...
_Neste
caso seu assassino seria apenas um canibal de ocasião, que se
força a engolir os pedaços da vítima, porque
assim é mais fácil sumir com as evidências do
crime. Seu canibal é um homem sem imaginação, ou
criatividade. Talvez por essa razão você seja apenas uma
escritora de bancas de jornais e não de grandes livrarias, que
nunca escreverá um grande livro que te coloque nas críticas
dos jornais e revistas literárias...
_Por que
ele é um homem sem criatividade? Eu estou tentando encontrar
uma explicação racional para o fato dele comer suas
vítimas... talvez não haja racionalidade nisso, talvez
seja apenas um prazer. - justifiquei.
Os olhos
do Doutor Daniel brilharam:
_Um
prazer, de comer, ou um prazer matar?
_É
a sua pergunta em troca da minha? - sugeri.
_Não.
É apenas um desdobramento lógico da sua própria
questão. Responda-me! - ele grunhiu – Não vou a lugar
algum, mas não quero ficar perdendo meu tempo...
_Um
prazer de matar... ele come porque acha isso sofisticado, gosta de
cozinhar para os amigos, de receber elogios e inflar seu ego,
enquanto serve pedaços humanos no jantar.
Daniel
riu: _Você acha que seu assassino come as vítimas porque
é um jeito fácil de se despojar dos corpos, ao mesmo
tempo é um meio através do qual ele pode desfrutar o
prazer de receber elogios quanto aos seus dotes culinários.
Diga-me, como é que ele se desfaz dos ossos?
Ossos?
Não tinha pensado naquilo...
_Há
muitos ossos que são característicos dos seres humanos
e que qualquer pessoa poderia reconhecer: crânio, dentes,
cabeça do fêmur, pés, mãos... como ele se
desfaz disso?
_Não
sei. Não tinha pensado nisso... dê-me uma pista.
Daniel
deu de ombros e cruzou as pernas, apoiando um cotovelo sobre o joelho
e a cabeça sobre a palma da mão.
_Ele
pode moer alguns ossos, se tiver uma boa máquina. Pode usar os
ossos moídos em compostos orgânicos para o jardim, pode
se desfazer deles em qualquer lugar, sem chamar atenção,
mas enquanto ele não termina de moer os ossos das vítimas,
tem em sua casa uma coleção de evidências de seu
crime. Agora imagine que uma máquina de moer ossos não
seja algo que se compra na loja da esquina... na verdade, uma máquina
assim é muito maior, mais cara e barulhenta do que pode supor.
Talvez ele dê um tratamento químico aos ossos, algo que
os corroa até transformá-los em uma sopa de cálcio
e ácido. O que acha?
_Acho
que ele não faz nem uma coisa nem outra. Acho que ele se
despoja dos ossos na calada da noite, em algum buraco afastado da
civilização...
_Então
seu assassino é um idiota! Ele é um homem que se obriga
a comer as vítimas porque é uma forma fácil de
se livrar dos corpos, também os serve em jantares aos amigos
para inflar seu ego, mas no fim das contas acaba tendo que trasladar
os ossos de qualquer maneira... Imagine se ele é pego numa
blitz rodoviária, ou se um pneu fura, ou se o carro quebra no
meio do caminho! Como ele vai explicar à polícia as
cabeças de fêmur, os crânios, mãos e pés
em seu porta malas e ainda pedir um remédio para a má
digestão?
Fiquei
muda. Disfarcei meu embaraço anotando algumas palavras soltas
no caderno, sem prestar atenção nelas, apenas para não
parecer tão tola aos olhos dele. Não sei porque tinha a
preocupação de parecer mais inteligente do que sou
diante daquele homem... de qualquer maneira ele conseguia me fazer
sentir imbecil.
_Todo
assassino é um idiota. - retruquei querendo parecer
inteligente e provocadora.
_Ah é?
Você então me julga um idiota? - Daniel deu uma grande
gargalhada – A definição psiquiátrica do
idiota poderia surpreendê-la. Os idiotas eram originalmente
assim classificados por sua incapacidade de relacionarem-se
socialmente dentro dos padrões morais e culturais. Eram
idiotas os gênios, os tímidos, os deficientes auditivos,
os traumatizados, os deficientes mentais, enfim... qualquer pessoa
que não fosse enquadrada nos padrões da época em
que os dicionários de patologias mentais estavam sendo
redigidos. Contudo, não quis dizer que seu assassino seja um
homem com problemas de relacionamento social, quando o chamei de
idiota. Dei ao termo a conotação moderna: idiota no
sentido de ignorância, imbecilidade, incapacidade mental...
você me diz que todos os assassinos são idiotas neste
sentido. Você me julga um idiota? Acredita que eu seja um
ignorante mentalmente incapaz de tomar uma decisão lógica?
Por que então preocupar-se com a construção de
um perfil complexo? Descreva seu assassino como alguém que
baba e urina nas próprias calças!
Novamente
aquela sensação de vertigem...
_Tá!
- eu concordei – Fiz um comentário imbecil. Nem todos os
assassinos são idiotas, mas todos eles tem em comum o fato de
não se importarem com a vida alheia...
Daniel
sacudiu a cabeça: _Neste caso, como você define os
assassinatos passionais, aqueles movidos pela ira, ou pela vingança?
Há assassinos que seriam incapazes de matar uma mosca, mas
quando devidamente pressionados, encontraram dentro de si uma força
capaz de subtrair uma vida humana. Por que estes assassinos amargam o
remorso? Se não se importassem com a vida alheia, não
se arrependeriam de seus crimes...
Eu
estava num beco sem saída e fechei a boca achando que era o
melhor que eu podia fazer.
_Seu
assassino é um idiota se mata por prazer e come apenas para se
livrar dos despojos, ou para inflar seu próprio ego quando
serve estas iguarias bem preparadas aos amigos. – ele concluiu por
fim.
_Então
ele mata pelo prazer de comer, não de matar.
Daniel
bateu palmas: _Finalmente! Você compreendeu!
Encarei-o,
tentando transmitir alguma cumplicidade no olhar: _É por isso
que você matou aquelas pessoas? Pelo prazer de comê-las?
Daniel
sacudiu a cabeça e o dedo indicador: _Não confunda o
seu assassino com o meu assassino. Estamos aqui construindo um perfil
fictício. Não estamos falando de mim.
_Então
fale-me de você. Da sua preferência...
_Assim
você me leva para o fundo do poço da decepção!
Fica repetindo as mesmas perguntas como um disco riscado. Já
lhe disse que não vou escrever a história para você!
O assassino é seu, está dentro de você o que por
definição já o faz ser diferente do meu.
_Ok, meu
assassino mata pelo prazer de comer. Não se importa em
absoluto com os despojos, nem com o risco de ser pego pela polícia.
Tudo o que ele quer é o prazer de sentar-se à mesa com
os amigos e degustar aquelas iguarias que ele adquire com tantos
riscos. Os amigos não sabem que comem restos humanos, isso
também é um prazer secreto que ele alimenta, o de ser
um sádico. Ele não tem arrependimentos, nem qualquer
remorso porque...
Calei
minha boca novamente sem saber como continuar, mas Daniel pareceu
finalmente interessado no que eu tinha para dizer e instigou-me a
continuar.
_Porque
ele escolhe as vítimas certas. Não comete erros. Mata
aqueles que de algum modo ele sente que devem morrer. – arrisquei.
_Por que
estas vítimas devem morrer?
_Porque
elas o irritam profundamente. Elas são rudes, mal educadas,
são do tipo que não farão falta à
sociedade. Ele as vê como porcos num criadouro, como uma
população excedente, que servirá melhor à
sociedade se desaparecer...
_Seu
assassino então mata por ódio?
_Sim...
acho que sim. Acho que ele odeia todo mundo, mas nutre rancores
especiais contra as pessoas muito barulhentas, muito rudes, aquelas
que são capazes de pisar no seu pé sem ao menos pedir
desculpas...
Daniel
riu novamente às gargalhadas: _Esse assassino é
realmente muito perigoso. É incrível que ele esteja
solto, que não tenha sido preso logo no início do seu
livro, pois se é capaz de matar quem lhe pisa no pé,
imagine o que faria com os vendedores de porta em porta, com os
jovens que ouvem músicas em alto volume, com as pessoas que
conversam no cinema, com os pregadores da fé que tentam
convertê-lo?
_Você
não acha que ele escolhe suas vítimas movido pelo ódio?
_Não
sei. Já disse que o assassino é seu. Diga-me você
por que motivos ele escolhe suas vítimas?
_Se
fosse por motivos culinários, daria preferência às
pessoas gordas...
Daniel
torceu o nariz enojado: _Uma boa culinária usa outros
critérios na escolha dos animais que serão abatidos...
a gordura só serve como critério se for para saciar a
fome. Agora se for para produzir refeições gourmet, há
diferentes aplicações para cada tipo de gordura, de
cada tipo de animal.
_Quais
os critérios culinários para a escolha das vítimas?
Saúde, cor da pele, idade, atividades físicas?
_Não
sei. Seu assassino é um chef, ou um cozinheiro amador? Qual é
a sua formação?
Agradeci
pela sugestão e anotei no meu caderno um lembrete para
pesquisar o assunto “gastronomia” e também o histórico
familiar do Doutor Daniel.
_Fico
feliz em ajudá-la a definir melhor o seu tipo de morbidez.
Sinto que fizemos progressos aqui. Na nossa última visita,
você nem tinha consciência do assassino que existe dentro
de você. Hoje já tem alguns critérios, inclusive
na escolha de suas vitimas...
_Estamos
falando de uma personagem de ficção, não estamos
desenhando o meu perfil, ou seu perfil, não é? Você
disse que esse assassino é diferente do seu. Ele tampouco sou
eu. Na verdade ele não existe.
Daniel
fechou o rosto e se levantou. Pareceu ofendido e eu pensei: lá
vem!
_Eu não
sofro de delírios, ou alucinações. Sei muito bem
distinguir a verdade da ficção. É você
quem tem problemas para perceber onde as coisas se misturam. É
você que não percebe o quanto esta curiosidade fala
sobre mais sobre si do que sobre sua profissão. Você não
está aqui apenas para desenhar o perfil do assassino, você
está aqui porque quer me compreender melhor, quer estabelecer
parâmetros de comparação entre o que sou e o que
você é. Quer sentir que existe uma diferença
essencial entre nós, algo que nos distingue verdadeiramente,
porque isso estabelecerá uma distância intransponível
entre os meus crimes e o seu desejo. Diga-me, Donna, porque agora é
minha vez de fazer uma pergunta, qual é sua lembrança
mais antiga?
Quase ri
da questão. Era óbvio que ele tentava fundamentar sua
análise sobre mim, recorrendo aos artifícios da
psicologia. Como leiga eu sabia que este jogo era perigoso. Se ao
menos tivesse feito terapia em algum momento da vida, ou lido sobre o
assunto, poderia compreender as ferramentas, mas só podia
intuir que partindo das minhas memórias, dos meus traumas de
infância, da minha relação com a família,
ele chegasse a alguma conclusão maluca.
_Lembro-me
de implorar ao médico para que me tirasse o gesso. Quebrei o
braço quando tinha dois anos...
_Como?
_Caí
da cama.
_Você
se lembra de ter caído da cama?
Sacudi a
cabeça: _Não. Disso eu não me lembro.
_Quem te
contou que você caiu da cama?
_Minha
mãe...
_Ela viu
você cair da cama?
_Sim.
_Quem
mais estava com você neste dia?
_Não
sei, não me lembro. Só lembro de implorar ao médico
para que ele me tirasse o gesso.
Daniel
fechou os olhos e ficou de pé, parado por quase um minuto.
_Eu
queria lhe fazer uma pergunta, mas agora é sua vez... - ele
disse finalmente.
Suspirei
aliviada. Não queria falar sobre minha vida pessoal àquele
homem.
_Como é
o gosto da carne humana? - perguntei.
Daniel
fez uma careta e sacudiu a cabeça novamente: _Você me
desaponta a cada pergunta. Por que perder seu tempo em vir aqui para
me perguntar algo tão subjetivo quanto isso? Tente descrever
um cheiro sem usar outros cheiros como comparação... da
mesma forma tente descrever o gosto de alguma coisa sem usar
outras... não é possível responder a essa
questão. É como tentar definir a diferença entre
o bom gosto, o vulgar e o chulo. Você sabe que eles existem e
que são diferentes, mas é impossível traçar
uma linha nítida entre eles. Não posso dizer a você
que o gosto da carne humana parece com o gosto da carne de porco, ou
de boi, ou de frango, ou de coelho. Você sabe que cada animal
tem um gosto diferente e não pode descrever seu paladar sobre
a carne de porco, usando como comparação a carne de
boi, porque a conclusão será a mesma embutida na
pergunta: é simplesmente diferente. Só isso. Se quer
mesmo saber, tem que experimentar...
_Não
vou matar alguém para comer.
_Mas
mataria por outro motivo?
_Essa é
sua pergunta para mim, ou um desdobramento do raciocínio?
_Você
já sabe a resposta... e então, mataria por algum outro
motivo?
_Talvez...
para me defender, ou por ódio, mas não para comer.
_Todos
somos assassinos primordiais. Todos temos esse instinto primordial de
sobrevivência, mas você admite que mataria também
por ódio e este não é um motivo instintivo, nem
justificável pelos padrões morais atuais.
_Só
levantei uma hipótese...
_E qual
circunstância te deixa prestes a cometer um crime por ódio?
_Não
sei. Nunca estive perto de matar ninguém por esse motivo, ou
qualquer outro... como eu disse, só levantei uma hipótese.
Estou tentando escrever uma história de ficção,
não preciso fazer outra coisa além de imaginar. Minha
história não é uma metáfora da minha
vida, ou de meus desejos secretos. É apenas uma fórmula
comprovada pelo mercado literário...
_Sabe a
diferença entre metáfora e alegoria?
Eu ri:
_Sou escritora. Não sou das melhores, mas trabalho com essas
diferenças no dia a dia. A metáfora é uma figura
de linguagem que estabelece uma comparação implícita
entre um fato imaginativo e uma realidade, pode ser facilmente
compreendida. Uma alegoria é como um arquétipo, tem uma
ligação com a vida que é indireta, mais
simbólica...mais difícil de ser estabelecida e que age
geralmente no subconsciente do leitor. Os sonhos são mais
alegóricos que metafóricos, por isso a relação
entre eles e a vida real não é direta, mas através
deles é possível encontrar o sentido oculto sob camadas
simbólicas... não sei explicar exatamente, mas posso
usar os sonhos como exemplos de alegorias.
Daniel
balançou a cabeça afirmativamente: _Como você
descreve sua mãe?
_Minha
mãe? - sacudi a cabeça – Você já me fez
a pergunta pessoal, quando quis saber se eu conhecia a diferença
entre metáfora e alegoria. Agora é minha vez.
_Minha
pergunta sobre metáfora e alegoria tem a ver com a sua
pergunta sobre comer carne humana. É um desdobramento lógico
da sua própria curiosidade e portanto, servirá como
parte da minha resposta. A pergunta pessoal é sobre sua mãe...
_Minha
mãe é uma mulher forte, destemida, batalhadora... -
sacudi os ombros – Não há muito o que dizer sobre
ela.
_Errado.
Você tem muito a dizer sobre ela. Sua mãe definiu sua
personalidade, seu caráter, seu comportamento social e
privado. Você se veste dessa maneira desleixada não
apenas porque se julga inteligente, mas porque foi afetada tão
profundamente pelo que ela é, que nem se dá conta do
quanto ela reprimiu sua individualidade. Sua mãe é
vaidosa ao extremo, arrogante e controladora. Provavelmente foi ela
quem quebrou o seu braço naquele dia e inventou essa desculpa
esfarrapada de que você caiu da cama, para justificar o
ferimento e não sofrer as consequências do abuso.
Provavelmente ela ameaçou você de todas as formas
possíveis e imagináveis, desde violência física
até abusos psicológicos clássicos do tipo: você
não é nada, é feia, desleixada, é idiota
e não conseguirá vencer na vida...
_Essa
não é minha mãe, esse é você,
Daniel. Você é que tem me acusado de desleixo desde o
primeiro dia que pus meus pés aqui. - eu acusei, sentindo
leves espasmos musculares. Aquele homem me tirava do sério.
Por que não podíamos simplesmente manter a conversa
dentro dos objetivos? Por que ele tinha que tentar de todas as formas
incutir na minha cabeça alguma suposta origem, para minha
suposta maldade reprimida? - Minha mãe me ama e fez tudo o que
podia para me dar amor, conforto e boa educação. Você
está enganado.
Daniel
empinou o nariz: _Não. Você é que está,
mas não precisa admitir isso para mim. Sei o quanto é
difícil encarar os próprios pais com as lentes da
maturidade. Eles são pessoas e erram como qualquer um. Quando
somos obrigados a perceber isso, é sempre um choque, mas
também é elucidativo, porque admitir essa verdade nos
obriga a encarar nossos traumas, nossos desvios e fraquezas. Alguns
conseguem superar esses obstáculos e evoluir, outros ficam
presos a eles, presos à idéia equivocada de que os pais
não erram, são heróis, assim como seu assassino
que escolhe as vítimas que odeia e livra a sociedade do peso
morto que representam. Seu assassino é no fundo um herói.
Você não reconhece o erro nele. Quer salvá-lo do
julgamento alheio e inventa o ódio como justificativa. Seu
assassino tem muito de sua mãe e de seu pai...
Como
explicar àquele homem que eu estava ali para executar uma
simples tarefa de preencher lacunas vazias numa fórmula
clássica de personagem fictício? Por que complicar
tanto as coisas, tentando trazer para a discussão minhas
relações familiares, os traumas de infância, os
erros cometidos pelos meus pais?
_Para
completar o quadro, devo dizer que seu pai era um homem ausente. Você
o adorava, ele era seu herói, sua força, mas quando
tornou-se adulta percebeu que era fácil demais amá-lo
por uma ou outra vez em que ele se colocou entre sua mãe e
você para protegê-la. Se ele tivesse protegido você
de verdade, teria sido mais difícil amá-lo, porque ele
teria se exposto mais e revelado todos os seus defeitos. No entanto,
em suas lembranças ele é mais perfeito do que ela,
porque não se envolveu o suficiente. Deixou-a carente de
proteção e afeto. Poupou-se do trabalho e em
compensação recebeu de você mais do que estava
disposto a dar. Sua mãe ressente-se disso, porque mesmo quando
ela te ofendia, dava mais atenção a você do que
ele, mesmo quando ela te insultava, isso lhe era mais trabalhoso do
que os vagos elogios dele e você nunca devolveu a ela uma
dedicação à mesma altura. Era ele quem você
queria o tempo todo e quanto mais você o desejava, mais ele se
afastava, mais ela se aproximava e mais você o desejava,
retroalimentando esse círculo vicioso de carência e
desfuncionalidade. Um caso típico freudiano... “complexo de
Electra”. Eu poderia sugerir que você a perdoasse e o
acusasse frontalmente. Seria uma forma de forçar a superação
de suas emoções reprimidas. Poderia sugerir que se
confessasse a ela, que dissesse o quanto a odiou ao longo dos anos,
mas não acredito que estas técnicas sejam de fato as
mais adequadas para o seu caso específico, porque em algum
momento de sua vida você descobriu como superar a maior parte
dessas carências. Debruçou-se sobre o papel e reproduziu
nele a repressão de seus sentimentos. Você não
expressa nada em seus livros que seja pessoal, mas sem saber,
trabalha alegoricamente sobre seus sentimentos. Condensa nas
personagens aquilo que poderia efetivamente levá-la à
superação, mas não dá o passo final
porque tem medo de perder o chão.
_E que
passo final seria esse?
Daniel
aproximou-se do vidro e me encarou com um sorriso de triunfo nos
lábios: _O de transformar sua vida em algo tão
interessante quanto um de seus livros. Pense nisso e voltaremos a
conversar amanhã. Sinto que seu tempo acabou e tenho alguns
novos livros para ler. Obrigado pela visita.
Emerson
esperou minha resposta. Ele havia perguntado se eu compreendia o que
o Dr. Daniel estava tentando fazer.
_Ele
está tentando me analisar...
Emerson
sacudiu a cabeça: _Ele não está fazendo isso.
Ele está usando elementos de psicoterapia, para penetrar na
sua cabeça, no seu íntimo e manipular você...
Emerson
explicou que aquele recurso de me perguntar coisas sobre a infância
era como pedir emprestada as chaves da casa de alguém. Uma vez
que eu lhe desse a chave, ele poderia entrar e bagunçar tudo
lá dentro. Disse-me que Daniel provavelmente já tinha o
meu perfil mais bem construído do que eu, sobre a personagem
do meu livro. Disse-me que ele tinha sido um dos melhores psiquiatras
do país, antes de ser preso e condenado.
_Você
precisa se armar. Precisa compreender que não deve dar
respostas verdadeiras às perguntas que ele te faz. Também
deve ter cautela com as mentiras que vai inventar, porque ele pode
farejá-las tão bem quanto fareja o café que
bebe.
_Então
como?
Emerson
deu um suspiro. Não era fácil lidar com um homem como
Daniel, cuja inteligência parecia desafiar nossa capacidade de
percepção entre o saudável e o insano.
_Se eu
mentir ele descobre e lê através das mentiras aquilo que
eu estou tentando ocultar. Se não ocultar só lhe
facilito o trabalho. Não sei como sair desse dilema! - concluí
vencida.
_Você
tem que compreender o que ele quer antes de poder se defender. É
como um jogo de xadrez. Você joga?
_Jogava...
quando era estudante universitária.
_Era
boa?
_Mediocre...
_Mas
entende os fundamentos? Compreende que no xadrez só existe uma
estratégia, aquela que diz que o ataque é a melhor
defesa? - balancei a cabeça e Emerson continuou – No xadrez
você sabe de antemão que o objetivo do adversário
é capturar o seu rei, por isso os maus jogadores acabam
preocupados demais com as próprias defesas e se esquecem que o
fundamental é atacar! O mesmo está para acontecer com
você. Você acha que o objetivo dele é convencê-la
de que é uma assassina fria e cruel, tanto quanto a personagem
que você quer inventar, por isso se arma contra esses ataques,
querendo passar a impressão de que jamais faria tal coisa, de
que não tem um precedente para isso. Enquanto você ergue
suas defesas, ele percebe onde estão suas fraquezas. É
como olhar para um muro alto. Só em olhar para ele você
tira duas conclusões importantes: a primeira e mais óbvia
é que não vai ser fácil escalá-lo. A
segunda e mais importante é que aquele muro está
protegendo alguma coisa e quanto mais alto e espesso ele é,
mais frágil é a coisa que ele protege... entendeu?
Meus
olhos estavam arregalados. Emerson às vezes parecia o próprio
Daniel, como um negativo de fotografia. Ri da comparação
e disse a ele o que estava pensando. Ele riu também e
concordou:
_Entre
Daniel e eu há mais semelhanças do que eu desejaria...
ambos somos médicos e psquiatras, ambos temos especializações
em mitos e arquétipos. Conhecemos a mesma linguagem técnica
por assim dizer, por isso propus que fizesse essas sessões.
Minha tarefa é traduzir as intenções dele a seu
respeito.
_E o que
você acha que eu devo fazer, para evitar que ele chegue ao
objetivo final? Aliás que objetivo é esse? Você
insinuou que ele quer me transformar numa assassina, ou pelo menos me
fazer ver que isso é uma possibilidade, dado minha infância
traumática, minhas carências afetivas, sentimentos
reprimidos, etc... você acha que eu corro o risco de sair daqui
matando e comendo pessoas se ficar dando elementos sobre minha vida
ao Dr. Macabro?
Emerson
sacudiu a cabeça: _Não. Não acho que você
seja tão manipulável. Acho que ele faria isso se
pudesse, se você fosse composta de outro tipo de fibra, mas sua
tarefa, a de escrever um livro de ficção policial
mantém seu foco fixo. Ele está tentando encontrar um
canal por onde possa atingir você através da alegoria do
assassino e do pai ausente, mas não creio que o objetivo seja
o de transformá-la numa assassina, ou fazê-la admitir
isso... acho que ele está testando o tamanho de seu muro, para
descobrir a natureza de suas fraquezas e aí sim mostrar qual é
o jogo.
E o que
poderia ser isso? O que poderia ser o objetivo final na cabeça
insana do Dr. Macabro? Reduzir-me a um ser submisso, ou fazer aflorar
em mim um poderoso dragão assassino? O que o Dr. Daniel
esperava com aquelas regressões e comparações
alegóricas? Que eu me desmanchasse perante sua infinita
sabedoria? Que eu o tomasse como mestre definitivo para o afloramento
de meus instintos sombrios e reprimidos?
_Ele
tenta me convencer de que matar é natural ao homem. Falou em
assassinato primordial, aquele que é cometido pelo instinto
primordial da sobrevivência...
_Ele
está se auto-justificando. Se convencer você de que
matar é algo natural, reafirma a si próprio como humano
e se redime dos próprios crimes...
_Você
está dizendo que ele está em conflito?
Emerson
balançou a cabeça. Estava sentado em sua cadeira, atrás
da grande mesa de madeira que era sua escrivaninha naquele
consultório antiquado. Estávamos a sós e já
passava da hora do almoço.
_Claro
que está em conflito! Como alguém que cometeu tais
crimes não confrontaria mais dia menos dia o conflito moral?
Ele não quer admitir esse conflito, por isso tenta convencer
você de que matar pode ser tão natural quanto respirar.
Se conseguir isso, ele reafirma a si próprio e o conflito
acaba.
_Então
há algo de humano aí?
Emerson
se remexeu incomodado com a sugestão.
_Não
sei... ele não costuma cometer estes deslizes psicológicos.
Ele conhece a rotina, sabe que a tentativa de convencê-la soará
aos meus ouvidos como conflito interior... o próximo passo
seria ele admitir que errou, mostrar algum remorso...
_Por
quê? Que jogo é esse?
_Você
pergunta a um maluco por que é que ele mastiga vidro? Que
resposta pode ser verdadeira: porque é gostoso, ou porque ele
é maluco? - o médico ajeitou os óculos sobre o
nariz – Só Deus sabe o que se passa na cabeça desse
lunático. Estamos tentando encontrar uma lógica nesta
história toda, porque acreditamos que ele age através
de uma, afinal tudo o que ele diz parece fazer perfeito sentido
dentro do que ele é: um psiquiatra condenado por assassinato.
Assim ele tentou convencer você de que não é um
monstro, de que é inocente e agora tenta convencê-la de
que no fundo vocês não são tão diferentes
como imagina. Ele está tentando ganhar sua simpatia, é
o que parece, talvez porque ainda tenha esperanças de que vá
procurar um advogado que reabra seu caso para uma revisão...
Acreditei
nesta última hipótese. Ela realmente fazia mais
sentido. Toda aquela história de tentar me analisar, trazendo
à tona minhas memórias de infância, eram apenas
subterfúgios para que ele pudesse testar melhor minhas defesas
e desviar minhas atenções do seu objetivo final, que
era acabar me conquistando a confiança e empatia.
_E o que
me aconselha a fazer? Como devo agir?
_Não
sei se deve encorajá-lo a pensar que há uma empatia
entre vocês. Ele é doente e isso irá apenas
reforçar seus delírios, por outro lado, ele não
sofre de uma patologia clássica, através da qual
possamos prever exatamente aonde ele quer chegar. Talvez ele tenha
plena consciência de tudo isso: de sua doença, de seus
motivos, de suas origens e só esteja usando você para
conseguir um advogado. Talvez ele esteja jogando algum outro jogo
muito mais insano do que podemos supor. Acho que você deve
deixar que ele evolua, mantenha a linha de ação atual
para que possamos ter novos elementos de análise.
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