A
HISTÓRIA
O ciclo
de bizarrices parecia não ter fim. Para completar a cena fui
acometida por náuseas e espasmos dolorosos. Se ao menos
tivesse comido alguma coisa, mas não tinha nada no estômago
para por para fora e os espasmos continuaram por minutos que
pareceram uma eternidade. Enquanto eu era sacudida por cãibras
estomacais, Daniel aproximou-se de JM caído sobre uma enorme
poça de sangue, nos últimos estertores de sua vida.
Escutei-o dizer as seguintes palavras:
_E você
pensou que tinha me superado? – ele deu uma risada de escárnio
- Bem, seja obediente e vá para o inferno e quando chegar lá,
avise o capeta que ele ainda tem tempo de fugir, porque eu viverei
mais uns anos.
Ouvi um
rosnado gorgolejante e sem precisar olhar para constatar, soube que a
agonia de JM havia se acabado.
_Você
é um monstro. – solucei entre um espasmo e outro.
Estas
palavras atraíram a atenção de Daniel que me
observou por um longo momento, considerando talvez o que haveria de
fazer comigo.
_Beba alguma coisa, vai acomodar seu estômago. – ele disse.
Eu não
queria beber, mas os espasmos dolorosos me gritaram que aquilo
poderia ser a solução. Tomei um pouco do vinho que
estava na garrafa plástica, a bebida desceu e menos de um
minuto mais tarde voltou, mas depois disso não tive mais
espasmos, só a náusea que continuou em ferroadas
esporádicas. Neste meio tempo Daniel havia saído das
minhas vistas e sem que eu percebesse, ele havia aberto a janela
sobre meu cativeiro e lançou lá de cima um conjunto de
moletom, meias e cobertores limpos e secos.
_Vista-se
com isso, antes que sofra uma hipotermia.
Trêmula
eu obedeci e quase o agradeci, enquanto tirava minhas roupas molhadas
e geladas, de costas para o corpo de João Miguel, sentindo-me
mais constrangida com ele estendido morto de olhos arregalados, do
que com Daniel que me observava do alto da janela.
_Você
deve comer também. – ele disse lançando o cesto de
comida quando eu já estava vestida com as roupas secas. –
Não pense que emagrecendo se tornará menos apetitosa,
ao contrário, se ficar mais magra corre o risco de despertar
em mim outro tipo de apetite. – ouvi uma gargalhada enquanto ele se
distanciava da janela.
No cesto
de comida estavam as sobras da ceia que ele e JM haviam feito. O
sorvete, a carne, o talharin, tudo frio mas de odor tão
penetrante, que não precisei provar para imaginar o sabor. Meu
estômago gritou de fome, conflitando com a náusea. Não
teria podido comer, por mais que desejasse. Sentei-me no banco,
puxando sobre os ombros aqueles cobertores secos e macios, cheirando
à sabão em pó e amaciante de roupas, procurando
me concentrar no calor e esquecer o corpo ensanguentado, lacerado,
estendido ao chão perto da porta de vidro.
Daniel
não tardou a descer e começar um preparativo que me
deixou novamente em alerta. Ele trazia diversas toalhas nos braços
e com elas enxugou o sangue que escorrera de João Miguel, em
seguida embrulhou o pescoço de sua vítima para que ela
não vertesse as últimas gotas e arrastou seu corpo até
a cozinha. De lá ouvi ruídos de máquinas
elétricas que não levantavam dúvidas quanto ao
destino que o Dr. Macabro daria ao seu antigo aprendiz.
Havia
entrado num estado de estupor, causado pela intensidade do trauma,
pelo cansaço, pela fome e pelo mínimo conforto que
aquelas roupas secas e quentes me proporcionaram. O resultado disso
foi um lapso temporal, onde não sei dizer se dormi, ou se
simplesmente me perdi numa espécie de viagem astral, na qual
me dissociei do próprio corpo e da consciência, para
vagar a esmo pelo limbo.
Quando
dei por mim já era dia e o Sol estava alto. Daniel estava
sentado na mesma cadeira de onde saltara sobre o pescoço de
JM. Ele mastigava alguma coisa e lia um jornal.
_Você
voltou. – disse com algum entusiasmo – E aí? Como se
sente?
Não
respondi. Estar de volta naquela situação, suponho, era
quase o mesmo que estar consciente de ter morrido e ido para o
inferno...
_Como se
sente tendo trocado de papel comigo? Estando você aí e
eu aqui? O que foi? Engoliu a própria língua? Para uma
escritora, você não tem muitas palavras, não é?
Ele
estava se divertindo às minhas custas. Senti um ódio
imenso por aquele monstro e desejei poder voar sobre seu pescoço
e afogá-lo em seu próprio sangue, como ele tinha feito
a João Miguel.
_Por que
não pega aquele revólver e acaba logo com isso. – eu
murmurei.
Daniel
arregalou os olhos e parou de sorrir: _E perder a oportunidade de ler
a sua história? Ah! Eu não faria isso! Não
depois de todo o trabalho que tivemos para construir o perfil de seu
assassino. – Daniel limpou a boca no guarda-napo, deu uma palmada
sobre a mesa, levantou-se e veio na direção do vidro
que nos separava – De certo modo eu cumpri minha promessa:
entreguei a você o perfil completo dele, na verdade entreguei
você a ele sem querer. Agora você pode escrever sua
história e tenho certeza de que ela será no mínimo
estranha aos olhos dos seus leitores, acho que eles ficarão um
pouco abalados... o que acha? Acha que tem material para um bom
trabalho, ou precisará de mais inspiração?
Tive
nova ansia de vômito e virei o rosto para não ter de
encará-lo. As lembranças do que acontecera na madrugada
ainda estavam vívidas e apesar dele ter se limpado do sangue e
trocado de roupa, mantinha a frieza assassina em seus olhos.
_Pelo
seu silêncio, suponho que precise de um pouco mais de
inspiração... não sei como posso continuar te
ajudando... talvez você queira ouvir mais histórias
sobre os crimes que ele cometeu... aquela barbaridade que fez com a
mãe e o bebê... era disso que eu falava quando disse que
não éramos nada parecidos. Odeio brutalidade! Não
porque eu seja fraco, ou covarde como ele sugeriu, mas porque quando
torturamos uma vítima, ela fica stressada e seu cérebro
injeta quantidades massivas de hormônios de fuga ou luta, que
se espalham por todo o corpo e deixam um gosto de fundo horrível
na carne. – Daniel sorriu daquele jeito que me fazia arrepiar todos
os pêlos do corpo – Você percebe o que isso significa?
_Você
é completamente maluco. Por que não acaba logo comigo?
Já que não gosta de torturar suas vítimas me
tira daqui, ou me mata de uma vez.
_Você
não entendeu o que eu falei sobre não gostar de
torturar minhas vítimas. Quando vou comê-las não
gosto de torturá-las, porque tenho um paladar sofisticado.
Isso significa, minha cara, que não pretendo comer você...
Engoli
seco enquanto compreendia o que ele queria dizer com aquilo.
Enlouqueci e corri de encontro ao vidro, chocando-me contra ele uma,
duas, três vezes, gritando histericamente até que a
fome, a fraqueza e o cansaço me derrubaram. Fiquei caída
no chão perguntando: por quê?. Que monstro é esse
que não se comove com a dor e o desespero de outra pessoa? Que
prazer bizarro, insano e inexplicável ele sente em torturar,
matar e comer outros seres humanos? Como compreender uma coisa
dessas?
_Por
quê? O que foi que eu te fiz? – lamentei me revirando pelo
chão.
_Você
não me arrumou um advogado. – ele disse friamente.
_Eu não
podia arrumar um advogado que permitisse a sua soltura! Você é
um monstro! – eu gritei – Mas eu tentei te ajudar, mudei você
de cela, te arrumei um colchão confortável, livros,
revistas, um rádio, uma TV...
_Você
jogou uma gota de água para alguém sedento no deserto e
acha que isso é ajuda? Diga-me, você acha que eu a
ajudei quando lhe dei roupas secas e comida? O que você sente
estando agora em meu lugar? Não é revolta e ódio?
O que faria a mim se tivesse a chance de sair?
Acho que
meus olhos faiscaram e eu gritei novamente: _Você é um
monstro! Eu acabaria com você! Vamos, me solte, me dê
essa chance! Prove que não é um covarde e que não
tem medo de mim!
Daniel
deu uma gargalhada: _Você é até capaz de liberar
uma fúria incontrolável. Jamais duvidei disso, pude ver
em seus olhos desde a primeira vez, por isso pensei que talvez
pudesse guiá-la para esse mundo obscuro que tem dentro de
você. Todos nós desejamos o mal a outrem um dia, ou
outro na vida. Todos nós temos essa força assassina
contida. A sociedade chama a repressão a esses sentimentos de
civilidade, educação, moralidade e ética. Nomes
muito belos, que representam mais do que somos capazes de sustentar
no dia a dia. No cotidiano o que vemos são pessoas comendo
outras pessoas o tempo todo: nas relações de trabalho,
de dominação, o que são as horas vendidas
diariamente em troca de migalhas, senão uma espécie
muito mais cruel de canibalismo? São vidas que estão
sendo sugadas por aqueles que chegaram primeiro na fila, não
através de uma luta justa, de uma finalização
rápida e indolor, mas gota à gota de suor e lágrimas,
dia após dia e para sempre! A máquina do capital é
voraz e faminta, ela não para diante de nenhum obstáculo:
não existe justiça que a controle, esforço que
atrase sua velocidade, ou encurte seus tentáculos. Somos gado
passivo à sua disposição. Falam em revolução...
não haverá revolução, jamais! O que pode
haver de transformador no mundo, não está escrito nos
livros, não é ensinado em escola nenhuma... a barbárie
é a única saída. Se libertássemos nossa
fúria sanguinária, não haveria sistema no mundo
capaz de conter aqueles que nasceram mais fortes, mais ousados, ou
mais inteligentes. Não haveria esse caos disfarçado de
ordem para nos iludir, mas apenas o caos e então a
transformação, a assunção do instinto
primordial de sobrevivência, o verdadeiro humano, sem ilusões,
o fim das fraquezas e hipocrisias...
_Ora me
poupe! – eu gritei dando uma louca e histérica gargalhada.
Minha interrupção pegou-o de surpresa e ele fechou a
boca – Me poupe desse discurso pseudo politizado, dessa sua
tentativa débil de lavagem cerebral! Só os imbecis
cairiam numa conversa mole dessas. Você tenta se justificar
dessa maneira? – eu ri novamente – Seria mais digno da sua parte
simplesmente assumir que é uma aberração
anormal. Não existe lógica por detrás do que
você faz. Esse mundo é uma merda, mas se existe uma
coisa que funciona, essa coisa é o amor e você nada sabe
sobre isso, então não me venha com lições
de teoria do caos! Você é o maior dos hipócritas,
o campeão de todas as hipocrisias! Mancha de sangue tudo o que
toca para tentar esconder a sua incapacidade de amar e aceitar a
realidade como ela é. Esconde-se atrás desse repugnante
e asqueiroso hábito canibal para não ter de encarar o
fato de que você não é nada nem ninguém.
Ninguém que valha a pena dedicar um segundo de pensamento.
Ninguém que deixará sua marca na História. As
pessoas poderão se chocar, ou até falar de você,
mas você será esquecido pelas gerações
futuras, não será exemplo de nada, além de uma
definição no dicionário das doenças
mentais mais graves. Essa sua soberba é só um delírio,
que vai evaporar sem deixar vestígios quando estiver morto. Eu
não escreverei sobre você, ou sobre João Miguel.
Você não será lembrado!
Daniel
não disse nada, ficou me encarando pelo vidro por um minuto
com uma expressão quase divertida e depois deixou a sala. O
dia passou, a noite veio e se foi. No dia seguinte pela manhã
ele desceu um cesto de comida pela janela.
No
prato, apoiada em batatas cozidas, havia uma das mãos de João
Miguel, de pé, como se abanasse uma despedida, assada e regada
por um caldo com forte odor de alecrim. Ele havia extraído as
unhas dos dedos e no lugar delas espetara bandas de azeitonas pretas
com palitos de dente. Ao ver aquela “refeição”
macabra novamente fui tomada por espasmos violentos de vômito a
seco, mas mesmo consciente da repugnância, o cheiro da carne
assada ainda quente e do caldo de alecrim inundaram minhas narinas de
forma assustadoramente convidativa.
Eu já
não comia nada há mais de quarenta e oito horas, minha
última refeição tinha sido alguns talos de
brócolis e um punhado de cenouras cozidas. De vez em quando eu
bebericava um pouco de água da torneira, mas passava a maior
parte do tempo dobrada sobre mim mesma, em posição
fetal, tentando me distrair da fome, enquanto num canto do jardim de
inverno, a comida ia se acumulando e apodrecendo: filet mignon ao
molho de amendoas e pistache, risoto de aspargos, risoto de percebis,
talharim ao molho de trufas brancas, purê de mandioca com
queijo coalho da Canastra gratinado, mousse de tomate com pesto de
manjericão, sorbet de flor de laranjeira com discos de massa
de filó, mão humana assada no caldo de alecrim...
Do outro
lado do vidro Daniel passava a maior parte do tempo me observando e
comendo... jamais vi alguém comer tanto! Quando ele não
estava comendo, estava na cozinha preparando a próxima
refeição. Parecia que ele realmente queria tirar a
barriga da miséria na qual vivera os últimos doze anos,
sustentado pela tradicional marmita azeda, como dissera João
Miguel, a mesma que o cunhado de Rodrigo produzia e entregava no
presídio, e com a qual enriquecera...
No sexto dia de minha greve de fome, eu já não tinha
mais forças sequer para gritar por socorro, ou chorar pela
minha má sorte. Daniel consciente disso, fez descer pelo cesto
uma das orelhas de JM, à “pururuca”, junto com um caderno
e uma caneta.
_Vamos
fazer um trato. – ele propôs enquanto eu revirava os olhos em
agonia – Escreva a história que você estava planejando
e eu deixo você ir embora.
Estava
deitada sobre o banco, de costas para o vidro e não me movi,
ignorando deliberadamente aquela proposta que não parecia ser
outra coisa senão fruto de alguma alucinação.
_Você
não vai morrer de fome se é isso que pretende fazer. –
ele disse tranquilamente e a voz dele soou metálica nos meus
ouvidos delirantes – Uma hora você irá se sentir tão
mal, tão adoecida, que mesmo contra sua vontade, irá
rastejar até aqueles restos de comida e devorar tudo o que
estiver ali, inclusive a mão assada. Quando este momento
chegar você comerá carne humana até crua se eu
lhe servir, mas eu tenho uma proposta melhor. Ao invés de
morrer de fome, você pode sobreviver, pode até mesmo
ganhar sua liberdade quando o momento chegar. Escreva a história
e você vive. Recuse-se a escrevê-la e você morre de
inanição, o que acha?
Continuei
imóvel, sem demonstrar qualquer atenção ao que
ele dizia.
_ Posso
mantê-la aqui dentro por um tempo indeterminado, pois JM não
tem parentes vivos, os seus funcionários sabem que ele possui
várias casas e já estão acostumados com seu
hábito de passar longos períodos ausente. Ninguém
sabe que está aqui. Ninguém virá em seu socorro.
Mas... – ele continuou – se for boazinha e escrever a história,
lhe prepararei ovos mexidos com alho e cebolinha, os ovos de João
Miguel! – e deu uma risada – Há belos bifes das nádegas
dele, que são uma espécie de picanha humana, posso
fazer um paté do fígado, assar suas costelas no bafo,
servir um ensopado com o coração, filés de
cérebro com cogumelos, picles com seus globos oculares, posso
fazer um carpaccio com o pênis dele, ao molho de grãos
de mostarda com alcaparras e parmesão... enfim, já o
abri e posso ver que ele estava em excelente estado de saúde.
Vou prepará-lo com carinho e deixar que você o devore
inteiro, até o último pedaço. Esta será
sua vingança pelo que ele te fez. O que me diz?
Doentio,
doentio, doentio!
_Vá
para o inferno! – eu murmurei enquanto sentia na pele a realidade
da dor que ele previa, pois meu corpo já estava começando
a entrar naquele estágio de inanição em que os
músculos se movem involuntariamente, em que a mente não
consegue concatenar qualquer outra idéia que não seja a
de comer e comer.
Os dias
foram passando e todos os dias ele vinha com um pedaço recém
preparado de JM, de odor exuberante, apresentação
requintada, aparência irresistível... Todos os dias ele
repetia a proposta.
_Não
seja assim tão mesquinha! Só lhe peço que
escreva a história, afinal, tudo isso aconteceu por causa
dela, não foi? É o mínimo que pode fazer para
dar um sentido, um significado a tudo isso. Prometo que se escrever
uma boa história, eu a libertarei. É uma oferta mais
generosa do que merece. A escolha é sua: escrever a história,
recebendo uma agradável dieta gourmet de carne, ou recusar-se,
sofrendo essa morte lenta e dolorosa... pense bem! Não é
tão fácil resistir quando os pedaços chegam
quentinhos e cheirosos do forno, direto para as suas mãos
trêmulas de fome...você descobrirá que não
há nenhuma essência especial que diferencia a carne
humana de qualquer outro alimento. É apenas carne, cercada de
tabu, mas é carne como qualquer outra, um pouco mais saborosa
que outros tipos, coma um pedaço e você se sentirá
melhor. Escreva sua história, ou eu não deixo você
ir. Fico aqui me divertindo, vendo-a morrer de fome e quando tudo
acabar, farei um bom lanche com o que sobrar de você...
Eu sabia
porque ele queria tanto que eu escrevesse a história. Não
era para ficar imortalizado através de minhas palavras, porque
poucas pessoas teriam estômago para lê-las até o
fim, mas para me torturar, como ele julgava que eu o havia torturado
na cadeia e vingar-se de meu “sadismo”. Nesta inversão de
papéis ele me oferecia uma rendição. Prometia
minha soltura em troca da história, coisa que eu não
fizera por ele ao me recusar em procurar-lhe um advogado. Deste modo
ele julgava-se mais misericordioso do que eu e brincava com a idéia
de ter ficado um pouco frouxo durante seus anos de cadeia.
_Ora vamos! Seja razoável! – o Macabro me tentava como o
verdadeiro demônio que era - Você nem precisou matar
alguém para ter esta oportunidade rara! Queria saber como foi
minha primeira experiência? Eu lhe conto! Foi parecida com a
sua, a diferença é que o mestre que me introduziu na
arte culinária mais avançada que existe, foi ninguém
menos do que meu pai, que era chef de cozinha do Hotel Glória
de São Paulo. Foi ele quem me ensinou tudo o que sei a
respeito da vida. Ele provavelmente foi o primeiro homem do mundo a
ter um livro de receitas canibais. Ele me transformou num homem,
quando me instigou a abater um rapaz que havia me insultado na saída
da escola. Disse que a lei do mais forte é a única lei
verdadeira que existe, mas para compreendê-la é preciso
ir além de nossas limitações e preconceitos. Ele
me introduziu no conceito de “refeição profunda”,
aquela que traz forças não apenas ao corpo, mas também
à mente. O tipo de refeição que abre as portas
da percepção melhor do que qualquer droga já
inventada. Eu aprendi muito bem a lição e em poucos
anos superei todos os obstáculos impostos pela sociedade.
Tornei-me um médico reverenciado pelos grandes, fiquei rico,
famoso e um dia, quando cheguei em casa, meu pai disse que restava
ainda um último teste de superação: o de
devorá-lo. Devo dizer que foi a refeição
psicologicamente mais profunda que já tive, quando aprendi a
última e mais importante lição dele: a de que
realmente somos o que comemos. Quem sabe um dia você também
não me supera e compreende o significado disso? O lugar de
aprendiz está vago. O último aprendiz que tive falhou
terrivelmente quando distorceu esse significado. Você pode
tomar o lugar de JM e aprender a deixar fluir o seu instinto
primordial. O que me diz?
Mal tinha forças para abrir os olhos, sequer para rezar e
pedir a Deus que me afastasse daquela tentação. Cada
minuto tornou-se uma tortura, cada hora tornou-se uma Era de agonia.
A carne chegava todos os dias, bem preparada, cheirosa e com
promessas de redenção, para depois apodrecer e feder
num canto do jardim desperdiçada, assim como a minha vida. O
que eu poderia dizer?
Você está lendo esta história, então você
sabe...
FIM
C.A.PELLA
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