QUINTA
VISITA
Antes de
partir para o hospital prisão, dei uma olhada em minhas
anotações da visita anterior. Na primeira linha estavam
as palavras que eu havia escrito quase sem perceber, quando tentei
disfarçar meu embaraço. Elas diziam: “Socorro! Me
tirem daqui.”
Fiquei
pensando no que o Dr. Daniel diria se soubesse que eu havia redigido
aquelas palavras inconscientemente. Acho que ele teria um orgasmo de
satisfação sádica...
Diante
dele, contudo, assumi uma postura curiosa e procurei afastar do meu
olhar e da minha expressão qualquer reação de
horror e repugnância. A cada dia eu sentia mais e mais a fera
enjaulada naquela cela. A cada dia ele se tornava mais e mais gentil
e solícito.
_Pensou
na minha sugestão? Sobre como transformar a sua vida em algo
tão interessante quanto o que coloca no papel?
_Acredito
que minha vida já é interessante. Não há
nada que eu queira mudar nela.
_Nada?
Tem certeza disso? Tem certeza de que prefere deitar sua cabeça
sobre um travesseiro gelado à noite, ao invés de um
ombro quente e acolhedor? Tem certeza de que prefere continuar vendo
seus pais com os olhos da ilusão infantil, ao invés de
enxergar o que eles realmente são e como interferiram no curso
da sua vida de forma negativa? Tem certeza de que está
contente com seus dois empregos, seu salário medíocre,
seu apartamento espremido, seus bens baratos e descartáveis?
Que está satisfeita com sua vida insossa e seus amigos ainda
mais medíocres? Não preferiria estar vivendo a aventura
de ser um policial atrás de um assassino serial, ou ainda de
ser um assassino letal e mais esperto do que a polícia?
Não
pude deixar de rir. Aquela análise parecia infantil demais até
para um homem perturbado como o Dr. Macabro.
_Há
coisas que eu mudaria na minha vida, mas acredito que as mudanças
são processos longos, não surgem da noite para o dia.
Um dia eu terei um ombro quente e acolhedor, assim como terei
conversas difíceis com meus pais, assim como terei novos
amigos, novas oportunidades de emprego, talvez mais ou menos
dinheiro, isso pouco me importa. Não preciso sair matando
ninguém, nem dar uma guinada na minha carreira profissional
para viver aventuras. Estar aqui já é uma aventura
quase cinematográfica. Parece-se muito com o que aconteceu
naquele filme sobre você e isso já é bastante
empolgante.Gosto mais das surpresas que a vida me traz, do que ficar
planejando aventuras...
_Que
grande mentirosa você está hoje! Você que vive de
planejar aventuras, não tem coragem de vivê-las. É
essa a verdade. Você é covarde.
_Sou
covarde porque prefiro encarar meus adversários, ao invés
de simplesmente matá-los? Acha que é um exemplo de
coragem porque matou todos aqueles que quis? Que coragem pode haver
em matar uma moça de dezesseis anos e servir seu corpo como
comida aos próprios pais e avós?
_É
preciso muita coragem para matar alguém. Você por
exemplo não a tem. Quer saber como é, mas não
tem forças para experimentar. Prefere vir aqui e se deliciar
com meu sofrimento, do que descer o punho fatal sobre suas vítimas
e descobrir por si só como é. Você é
sádica e não tem um pingo de misericórdia, mas
acha que é valorosa porque usa seu sadismo em pequenas doses,
ao invés de libertar sua vítima do sofrimento num único
golpe.
Lembrei
da conversa com o Dr. Emerson e decidi que era hora de mudar a
estratégia. Ele estava testando minhas defesas, então
eu lhe dei o que queria:
_Talvez
o senhor tenha razão. Talvez eu seja uma covarde, mas onde
está a coragem em matar alguém indefeso?
_Você
mataria para se defender de algum inimigo, não?
_Sim...
se eu fosse atacada por alguém e minha única chance de
sobrevivência fosse um assassinato, talvez eu fizesse isso.
_Não
é preciso coragem para se salvar matando alguém, só
precisa do instinto, que é comum a todos os humanos...
Precisaria de mais coragem para matar a moça indefesa de
dezesseis anos...
_Já
admiti que não tenho coragem para matar, não vejo onde
vamos chegar com essa conversa...
_Vamos
chegar ao perfil do seu assassino, não é isso o que
quer? Até agora você aventou a hipótese de que
seu assassino fosse um idiota, que mata por prazer de matar e come
suas vítimas porque é preguiçoso e não
tem criatividade para elaborar meios de se livrar dos corpos. Depois
mudou de idéia, pensou que talvez fosse melhor se seu
assassino matasse pelo prazer de comer, já que de qualquer
maneira sempre vai sobrar pedaços dos corpos para ele se
desfazer. Você já sabe do que ele gosta, mas como ele
escolhe suas vítimas? Por ódio? Então ele é
um covarde, porque matar alguém a quem odeia é fácil.
Difícil é matar alguém que você ama. Por
isso as mães controladoras são muito cruéis. Os
filhos não acreditam, não podem acreditar, que suas
mães controladoras são na verdade monstros capazes de
devorar-lhes a vida com a mesma facilidade com a qual os pariu no
mundo. As crianças são ensinadas a acreditar no amor,
não pensam que entre os humanos existem aqueles que não
conseguem conviver com o amor. As mães controladoras destroem
a sanidade mental de seus filhos por não conseguirem conviver
com o peso do amor que deveria haver na maternidade, por não
controlarem o impulso instintivo de sobrevivência, por não
esconderem de suas crias que elas lhes destruíram a vida e os
sonhos e por isso são merecedoras de vingança. As mães
não são controladoras porque são monstros. Elas
são humanos que estão lutando pela sobrevivência
e quando percebem que só há um meio de sobreviver, que
é destruindo a própria cria, reprimem esse sentimento e
por isso tornam-se controladoras, tanto mais quanto maior for a sede
de vingança reprimida, tanto mais cruel quanto maiores as
frustrações sofridas... não vamos continuar
nestes detalhes, acho que você já teve elementos
suficientes para perceber o que sua mãe é e o que ela
fez. Voltemos ao seu assassino. - Daniel levantou-se e serviu o café
ritual. Eu tinha trazido na bolsa um pedaço de bolo comprado
às pressas na padaria e não tivera tempo de tomar o
café da manhã apropriadamente. Tirei o embrulho da
bolsa e ofereci um pedaço ao Dr. O protocolo do presídio
permitia que eu oferecesse comida ao detento, desde que ela tivesse
sido analisada antes pelo guarda na portaria, mesmo assim não
tardou para que um guarda aparecesse no corredor e ficasse ali
observando a troca.
_É
um milagre que você não tenha que passar pelas revistas
íntimas. – Daniel disse enquanto observava o pedaço
de bolo que aparecia na gaveta do seu lado.
_Quem
disse que eu não passo por elas?
Daniel
lançou-me um olhar frio: _Lembra-se do que eu falei a respeito
do ouvido dos cegos? Então por favor, não brinque com
minha capacidade perceptiva. Sei perfeitamente que você tem
tido um tratamento diferenciado aqui dentro e sei também
porque eles estão tão interessados em você. Você,
minha cara, é um peão nas mãos de jogadores
experientes. Não tente parecer o que não é. Essa
roupa não lhe cabe e você fica ridícula nela...
Por um
instante fiquei sem saber se ele tratava da minha roupa, ou se a
roupa era uma metáfora para minhas débeis tentativas de
enganá-lo.
Ele
experimentou o bolo e por um instante pareceu que comia a melhor
refeição de sua vida.
_Há
muito, muito tempo não degusto uma coisa doce além
desse café e das gelatinas aguadas que me mandam às
sextas feiras. Obrigado por me proporcionar este prazer.
_Posso
trazer mais coisas. Posso trazer o que quiser comer, desde que seja
acessível e que eu não tenha de matar...
Os olhos
dele amenizaram aquele brilho de astúcia e entraram num modo
quase normal, quase cotidiano e natural, com o qual pessoas
interativas se olham.
_Isso
seria uma verdadeira gentileza da sua parte. - a frase soou quase
como uma pergunta e fiquei pensando se ele estava sugerindo usar a
comida como forma de barganha...
Anotei
aquele comentário para especular sobre o assunto mais tarde,
por hora queria continuar ouvindo seu resumo sobre meu assassino.
_Então...
como ele escolhe suas vítimas?
_Por
amor, ao invés do ódio?
_Você
continua me perguntando, ao invés de usar sua própria
cabeça. Me pergunto como é que vai continuar sua
carreira de escritora se este livro fizer sucesso? Para sempre serei
seu consultor, ou em algum momento você pretende começar
a pensar por si mesma, a buscar inspiração nas suas
ações ao invés de falsificá-las?
Responda-me você! Seu assassino seleciona as vítimas por
amor ou ódio?
_Acho
que para ele tanto faz. Tanto faz optar por uma vítima que lhe
pareça apetitosa, quanto optar por outra que lhe cause ódio,
ou outra que lhe cause amor. Pouco importa ao assassino a vítima
que ele escolherá.
_E por
quê?
_Acho
que é por causa da natureza dele. Ele não tem prazer em
matar, que é só uma consequência incontornável
do prazer que ele tem em comer carne humana. Assim pouco lhe importa
escolher vítimas que irão gritar, implorar, ou aguentar
em silêncio... não é o comportamento delas que
interessa a ele, mas o que elas poderão lhe oferecer depois de
mortas. Assim, se ele puder optar por um critério, optará
por uma vítima que lhe pareceça apetitosa. Um tipo
específico de corpo que possa ser usado na culinária,
mas isso não o impedirá de às vezes matar por
ódio, às vezes por amor, às vezes ainda por mera
curiosidade de experimentar um novo método...
Daniel
ouvia minhas palavras com um sorriso no rosto que me deixou
assustada. Quando terminei de falar ele bateu palmas.
_Finalmente
você compreendeu! Agora temos um perfil psicológico
quase completo: seu assassino gosta de comer as vítimas, muito
mais do que matá-las. Ele as escolhe na maioria das vezes
segundo atributos físicos adequados aos seu objetivos
culinários, contudo, às vezes usa seu poder letal para
matar alguém que de algum modo o incomoda. Quando ele age
dessa forma, foge ao padrão, simplesmente porque não
tem mais qualquer sentimento de remorso diante da idéia de
cometer um crime e sente-se à vontade para remover os
obstáculos, por assim dizer. Agora precisamos montar um perfil
sócio econômico que se encaixe nesta psiqué. Como
ele é culturalmente? É rico, é pobre, bem
sucedido, frustrado?
_Acho
que ele é rico... - Daniel fez um gesto para que eu
continuasse – Porque ele conhece a culinária gourmet, isso
envolve alguma boa educação, coisa que não está
à disposição das pessoas pobres ou medianas.
_Se ele
fosse rico não iria se interessar pelo passatempo braçal
de cozinhar. Contrataria um chef...
_O
senhor está me dizendo que era pobre, Dr. Daniel? - eu
perguntei arrependendo-me logo em seguida, porque todas as vezes que
eu tentava desvendar a intimidade do médico Macabro, ele me
rechaçava sem qualquer cerimônia.
_Há
exceções para todas as regras, Donna. Só estou
dizendo que no geral, uma pessoa abastada não se interessa por
trabalhos manuais.
_Mas nem
todo dinheiro do mundo seria suficiente para obrigar um chef a
cozinhar uma pessoa. Se ele quer experimentar a carne humana, precisa
fazer isso sozinho.
_Você
ficaria surpresa se soubesse quantos chefs salivam enquanto sonham em
cozinhar uma ou outra parte humana. – Daniel riu – É claro
que sonhar não faz mal a ninguém, você deve saber
disso, afinal esta é sua especialidade. Quanto ao seu
assassino, ele pode vir a encontrar um parceiro, não precisa
necessariamente ser um chef de cozinha, aliás seria o tipo de
coincidências que ninguém gosta de ver em uma história:
um assassino canibal encontra um parceiro que é ao mesmo tempo
um chef gourmet profissional... não, isso não ficaria
nada convincente. Já o contrário me parece mais
verossímil: o assassino que encontra um parceiro para
desenvolver técnicas de culinária canibal aos níveis
mais rigorosos... fica melhor assim não?
Considerei
aquele último comentário por um momento. Se eu
construísse dois assassinos ao invés de um, teria uma
atmosfera muito mais aterrorizante para explorar... mas um único
assassino canibal já estava me dando uma boa dor de cabeça.
Dois deles pareciam um exagero.
_Um
único assassino. - eu disse – Tendo que se virar na vida,
porque não é de família rica, mas teve a
oportunidade de se educar... talvez tenha nascido pobre, tenha
passado fome na infância, tenha sido obrigado a comer alguém...
Talvez essa seja a gênesis desse assassino.
_O que?
Um episódio de pobreza extrema, de fome total? Você está
sugerindo que ele tenha um trauma de infância relacionado à
fome e que o levou a definir-se como canibal?
Sacudi
os ombros e Daniel deu uma gargalhada:
_Passei
fome na infância, - ele disse distorcendo a própria voz
- fui obrigado a comer o gato de estimação, depois
minha irmãzinha... – Daniel mostrou a língua numa
careta de nojo - Não faz sentido. Se ele fosse pobre, tivesse
passado fome, ainda que tivesse comido a própria irmã,
teria mais chances de transformar isso numa fobia do que numa mania.
A pobreza e a fome não estabelecem uma relação
direta com o prazer pelo canibalismo. Ao contrário! O
canibalismo estaria associado a algo que lhe fez sofrer,
provavelmente uma pessoa assim, tendo oportunidades, se tornaria um
vegetariano. Pense nos sobreviventes daquele acidente aério
dos Andes, como eles estão hoje? Por acaso ouviu falar de um
canibal aterrorizando o Chile?
_Talvez
ele tenha sido pobre e maltratado pelas pessoas, isso levou-o a
desejar matá-las e comê-las.
Daniel
franziu o cenho: _Isso faria dele uma pessoa frustrada. Os frustrados
geralmente desenvolvem compulsões. Ele seria então um
assassino compulsivo.
_E não
é isso o que todos os assassinos seriais são? A
compulsão por matar não é a definição
de assassino serial?
Daniel
maneou a cabeça: _Pode ser, mas um assassino compulsivo
geralmente tem carreira curta e por isso não aterroriza tanto.
Quanto mais ele mata, mais ele quer matar, até que um dia
perde o controle e comete um deslize. Um assassino serial como este
que você está construindo é mais sofisticado. Ele
não fica sedento por matar, ou por comer pessoas com
frequência. Isso lhe acontece em episódios, que ainda
precisaremos explorar. O que faz dele um assassino terrível é
que ninguém suspeita disso, não é essa a sua
idéia? Isso força sua personagem a ter absolto controle
sobre sua compulsão canibalesca. O poder de submeter-se a ela
ou não, quando bem lhe aprouver. Não é um
transtorno obsessivo, pode ser uma mania, mas não é
compulsiva na forma clássica. Esse controle lhe proporciona
tempo para escolher, planejar como abordar, como matar, como se
desfazer dos despojos, o que diminuem os riscos dele ser pego e
aumentam o seu portifólio. A menos é claro que você
não queria mais este perfil, daí podemos recomeçar
tudo de novo...
_Não!
Este perfil está bom assim. Quero trabalhar sobre ele e
suponho então que meu assassino é mesmo rico, mas não
o tipo de rico que prefere contratar mão-de-obra. Ele ficou
rico a partir de seu próprio trabalho, usou seu sucesso para
evoluir culturalmente e socialmente. É benemérito, é
talvez até um pai de família, alguém sobre quem
ninguém suspeitaria...
_Pai de
família?
_Sim...
por que não?
_Porque
aí ele acabaria comendo a própria família.
Acho que pisquei os olhos em confusão: _Mas você disse
que ele tem absoluto controle sobre a sua mania...
_ Se ele fosse pai de família e tivesse a mania de comer carne
humana, ele não resistiria à tentação de
comer seus próprios filhos...O que pode ser melhor para um
canibal do que isso: reproduzir uma cria, alimentar, engordar, abater
e cozinhar? Ele sabe a origem daquela carne, como a cria se
alimentava, sabe que tipos de doenças ela já teve, que
medicações lhe foram dadas... é muito melhor
experimentar algo assim do que caçar a esmo... imagine se seu
assassino tem o azar de matar alguém contaminado com alguma
doença terrível? Se ele fosse um pai de família,
acabaria perdendo o controle!
_Talvez
ele tenha perdido. Talvez ele tenha matado a própria
família...
Daniel
serviu-se um pouco mais de café. Eu declinei, já estava
farta daquele café aguado. Prometi a mim mesma que traria um
bom café no dia seguinte...
_Gosto
da idéia de um assassino que tenha matado a própria
família para comer, mas se assim fosse, como ele teria fugido
da polícia? Por que ninguém jamais suspeitou que ele
tivesse matado a mulher e os filhos?
_Talvez
um acidente...
_Não
gosto da idéia de acidentes. Não gosto da idéia
de alguém desenvolver uma sanha assassina em decorrência
de traumas, ou por ter sido obrigado a colocar-se naquela situação.
Isso é um cliché. Todos os assassinos seriais da
literatura e do cinema foram crianças violentamente abusadas,
que desenvolveram patologias mentais. Todos parecem querer encontrar
nisso as justificativas para o comportamento assassino. Ninguém
quer admitir que um assassino possa existir em função
de seus crimes simplesmente porque quer. Um ladrão pode roubar
porque tem fome, ou porque ele cobiça algo de alguém e
que está além de seu alcance. Todo mundo compreende um
ladrão que rouba por cobiça, como um ladrão que
rouba movido pela cobiça e não como um doente
mental! Por que os assassinos seriais passaram necessariamente por
infâncias roubadas e patologias mentais?
O Dr.
Daniel defendeu essa idéia com fervor, quase como se estivesse
defendendo a si mesmo. Sua eloquência me causou um sobressalto.
Sentei ereta na cadeira, movida pela impressão de que não
estava prestando atenção suficiente nas palavras dele.
Estaria eu ouvindo uma confissão? Teria conseguido tocar um
ponto sensível?
Daniel
notou a mudança na minha postura, fechou a boca e fez a coisa
mais surpreendente que eu poderia esperar: ele corou!
Isso
mesmo. O Dr. Daniel, também conhecido como Dr. Macabro ficou
vermelho de vergonha... intimamente eu comemorei um primeiro ponto.
_Você
conseguiu um bom lance de jogo aqui e percebeu isso não? - ele
perguntou com um sorriso maroto.
_Não
sei. Estamos jogando? - perguntei devolvendo o sorriso.
Ele me
lançou aquele sinal de desprezo ao qual eu já me
habituara e focalizou sua atenção no barulho que vinha
lá de fora.
Lá
de fora vieram alguns gritos de um interno. Daniel fechou os olhos
como se não suportasse ouvir aquilo. Foi até as janelas
e fechou os basculantes. O barulho diminuiu e ele calmamente retornou
à sua cadeira. Quando tornou a me encarar, já não
parecia mais envergonhado e havia voltado ao seu estado normal de
vívida atenção.
_O que
você acha?
_Acho
que já não sei se é minha ou sua vez de
perguntar. Deixe que eu pergunte...
Parei
para lamber os beiços. A pergunta tinha que valer à
pena. Ele estava pela primeira vez em desvantagem, porque tinha
deixado escapar um sentimento pessoal com relação aos
próprios crimes.
Então
o Dr. Macabro se irrita quando alguém pensa que ele é
doente, mas se não é doente, pensei, por que gosta de
comer as pessoas? De onde veio esse prazer? De onde veio sua
primeira...
_...experiência?
- perguntei.
_Não
entendi... quer saber sobre a minha experiência ? Nós
estamos aqui construindo o perfil do seu assassino, quantas vezes
terei que lhe dizer isso?
Sorri e
lasquei: _Meu assassino tem muito em comum com você. Ele também
fica irritado quando as pessoas pensam que ele é doente
mental, mas tem que ter havido uma primeira experiência canibal
para ambos. Qual foi a sua?
_Não
tenho nada a dizer sobre mim.
_Não
foi isso que combinamos!
_Eu sei
o que combinamos! Posso ajudá-la a criar uma primeira
experiência para o seu assassino, mas será a experiência
da sua própria imaginação.– disse Daniel
afastando-se da cadeira e do vidro que nos separava. - Não vou
falar sobre assuntos particulares. – Daniel aproximou-se do vidro
novamente e me encarou – A menos é claro, que você me
arrume um advogado.
De novo
essa história! Pensei.
_Pensei
que isso já estava definido, que já estivesse claro
entre nós que eu não posso ajudá-lo como
pretende. A Comissão de Direitos Humanos não responderá
à sua requisição. Você sabe disso!
_Você
deve publicar a minha história na sua revista. – ele
interrompeu – Deve chamar a atenção dos jornalistas,
do público e dos advogados para o fato de que não tenho
quem proteja meus direitos! Se fizer isso, tenho certeza de que a
Comissão não poderá continuar ignorando os meus
apêlos.
_Eu não
escrevo para a revista!
_Sua
editora foi muito gentil em enviar um pacote contendo livros e
revistas. Chegou anteontem e já li um de seus trabalhos: “O
Rio Bonito”.
Arregalei
os olhos pois o “Rio Bonito” levava a assinatura de Melvin
Cassid, meu pseudônimo romântico.
_Esse
livro é de Melvin Cassid. – disse tentando disfarçar
meu assombro.
Daniel
tinha uma expressão vitoriosa no rosto.
_Melvin
Cassid, Donna Rayes, são pseudônimos seus, só um
cego não perceberia que se tratam do mesmo escritor. Você
não é como Fernando Pessoa, que tinha um estilo
diferente para cada heterônimo. Melvin conta histórias
românticas, Donna conta histórias policiais, mas a
estrutura, o vocabulário, o estilo são os mesmos... não
foi difícil perceber isso.
Daniel
fez uma pausa e respirou fundo antes de prosseguir:
_Você
não conseguiu escrever ainda um livro que fosse digno de uma
grande editora. Seu chefe sabe que você tem potencial, por isso
a mandou aqui, mas se não escrever essa ficção
sobre o assassino defintivo da forma como ele espera que o faça,
você será despedida.
_Você
está enganado...
_Seu
editor não tem condições de fazê-la
crescer. Você está estagnada. Veja bem, seus livros são
estorinhas medíocres e insossas. Você até escreve
bem, mas não consegue fugir dos clichés. Escreve
estórias descartáveis há tanto tempo, que já
perdeu aquela criatividade selvagem que a faria produzir a história
da sua vida. Por isso ele mandou você vir. Ele quer um livro
que possa ser produzido e vendido ao grande público, pelas
melhores livrarias do país. Ele quer crescer! Se você
não corresponder aos planos dele, estará no olho da
rua!
Daniel
lambeu os lábios e deu um sorriso. Percebi pela primeira vez
que os dentes caninos de sua prótese eram mais pontigudos do
que o normal e me veio à mente a figura de um vampiro... quem
quer que tivesse feito aquela dentadura, não tinha sido
desprovido de um senso de humor negro.
_Se
duvida do que estou lhe dizendo, ligue para ele hoje! Provoque-o!
Faça-o pensar que não irá terminar esta
história...
_Ele não
faria isso comigo...
Daniel
balançou a cabeça: _ Por que ele não faria isso
com você? – e enfatizou as palavras “com você” –
Acha mesmo que ele se importa? Só porque vocês dois têm
um caso?
_Eu não
tenho um caso com ele! – protestei aferrando-me à idéia
de que pelo menos nisso Daniel havia errado.
Ele
estalou a língua em sinal de desaprovação: _Os
homens não se prendem ao passado romântico na hora de
decidirem sobre seus negócios. Seu editor não quer uma
escritora que não seja capaz de lhe ajudar a subir, não
importa o quanto ele gosta ou já gostou de você. A
Revista Curiosidade Extrema tem uma boa qualidade de impressão
e boa tiragem. Seu editor está crescendo. Chegará a
hora em que ele não precisará mais de Melvin Cassid ou
Donna Rayes – e pronunciou meus pseudônimos com tanto
desprezo que tive ódio por ouvi-los daquela boca.
Daniel
sentou-se novamente e quando tornou a falar, usava seu tom
persuasivo:
_Posso
ajudá-la a escrever sua obra prima! Posso ajudá-la a
produzir uma história sobre um assassino, melhor do que “A
Sangue Frio” de Truman Capote, ou “Até o Último
Pedaço” de C.A.Pella. Posso lhe dar a história de sua
vida e acredite, sei muito bem que é isso o que busca. Tudo o
que preciso, é que escreva minha história e a publique
na Revista Curiosidade Extrema. Eu sei que é difícil
para você acreditar que não cometi os crimes de que fui
acusado. Sei que a Comissão também terá essas
dúvidas, mas a ciência forense evoluiu e acredito que
posso provar minha inocência perante um juri. Se me ajudar, eu
lhe contarei tudo sobre mim. Tudo o que sempre quis saber ao meu
respeito, sem censuras, sem restrições... se me ajudar,
eu te dou o perfil completo desse assassino ficcional, te dou um
motivo para os crimes que ele cometeu, te dou a primeira experiência
de canibalismo que ele teve...
_Eu não
escrevo para a revista – repeti lacônica – Mesmo que
escrevesse, não acredito na sua inocência, não
ajudaria você a conseguir um advogado para sair da prisão.
Eu li os autos do processo. Todas as provas apontam para você e
o que fez... meu Deus! Foi monstruoso!
Daniel
levantou-se de um salto e começou a falar e a gesticular
nervosamente: _Monstruoso foi o que fizeram comigo na cadeia!
Chamam-me de monstro? Nunca torturei ninguém! Jamais! Estes
que me acusaram, interrogaram e prenderam, torturaram e mataram
pessoas durante a Ditadura. Eles são chamados de heróis
porque me capturaram! Diga-me, você tem o perfil de seu
assassino quase pronto, já tem uma idéia dos
procedimentos necessários para a execução desses
crimes. Explique-me então, por que a polícia encontrou
pedaços de carne humana no meu congelador, um corpo recém
abatido sobre a mesa da cozinha, mas não encontrou nenhum
osso, nenhum fio de cabelo, ou pertence pessoal daquelas vítimas?
Sacudi
os ombros: _Você já havia se desfeito dos despojos...
_Ah!
Sim! – ele exclamou com ironia – Você sabe que minha
cozinha era bem equipada, mas não havia nenhuma máquina
de moer ossos ali. Também não encontraram reagentes
químicos capazes de desintegrar esses despojos... você
fez o exercício de reconstruir os passos do assassino, sabe o
quanto é arriscado ficar andando por aí com sacos
cheios de ossos. Diga-me, por que eu teria me desfeito dos ossos
daquelas vítimas com cuidado e deixado para trás ao
mesmo tempo, um corpo inteiro?
_Você
não teve tempo de destrinchar e se desfazer dos ossos de sua
última vítima.
_E
quantas viagens você acha que eu faria com sacos de ossos no
porta malas? Não seria mais prudente colecionar estes despojos
e me desfazer de todos eles de uma só vez?
_Tá
bom... – concordei apenas para poder seguir em frente com minha
objeção -, mas não vejo onde essa falha no seu
procedimento contribui para provar sua inocência...
_Você
me conhece, sabe que eu não cometeria deslizes como esse.
Aqueles corpos foram deixados ali pelo verdadeiro assassino, o mesmo
que fez a denúncia.
Tá...
acredito, até posso supor essa hipótese. Não
quero barganhar com essa suposição, mas tenho que
admitir que ele é bastante convincente quando fala assim...
_Até
onde acha que vai com esse discurso, Daniel?
_Até
o fim. – ele disse tornando a caminhar pela cela, de um lado para o
outro, como um animal enfurecido na jaula.
Que
merda estou fazendo aqui? Comecei a avaliar a situação:
esse homem é louco e está me deixando louca, ele nunca
se refere às vítimas como pessoas, fala de crias,
carnes, abatimentos como se nos visse a todos como porcos, ao mesmo
tempo age como um inocente injustamente condenado, clama por justiça,
se aferra nessa idéia e não me dá sossego quanto
a isso. Se continuar nessas visitas, vou acabar dando as chaves da
cadeia para ele, ou me tornando uma cúmplice...
Levantei.
_Aonde
vai?
_Vou
embora.
_Voltará
amanhã? – e pude sentir uma nota de ansiedade nas palavras
dele – Ou posso retornar à minha rotina?
_Não
pretendo voltar amanhã. Acho que nossa conversa acabou por
aqui.
_Você
não ouviu nada do que eu disse? Não acabou ainda. Não
terminou o perfil de seu assassino. Sem ele sua estória soará
inverossímil, você perderá seu emprego na
editora...
E desde
quando ele se importava? Sacudi a cabeça obstinada a sair e
não voltar mais.
Nunca
fui boa negociadora e do jeito que ele conduzia nossas conversas, eu
passaria a vida tentando terminar o maldito perfil da personagem sem
conseguir nada além de me comprometer ainda mais com essas
barganhas.
_Volte
amanhã. – ele pediu.
_Por
quê?
_Vou lhe
dar o final do perfil que me pediu. – ele disse jogando as mãos
ao lado do corpo num gesto de cansaço - Você me pôs
nesta cela, arranjou tudo o que eu pedi, exceto o advogado. Fizemos
um acordo e eu ainda não terminei a minha parte. Vou lhe
ajudar a completar o perfil do assassino e quando você se
tornar uma escritora famosa, talvez sinta a obrigação
de me retribuir o favor e quem sabe assim se convença a me
arrumar um advogado.
Vacilei
um momento.
_Só
se prometer não tocar novamente no assunto do advogado... você
sabe que eu não posso ajudar.
_Talvez
não possa, talvez não queira. – ele deu de ombros –
De qualquer maneira será sua última visita. Um “grand
finale” de despedida. O que acha?
Fiquei
em silêncio por um instante. A expressão dele era de
leve divertimento, não sei como definir além disso,
porque sempre havia algo mais na expressão do Dr. Daniel, como
se cada menor movimento de sua face fosse ensaiada, calculada,
prevista; no entanto, seus olhos sempre pareciam dizer algo mais...
_Traga
um bolo e tome café comigo. Vamos conversar bastante... –
ele prometeu.
Vacilei
de novo, não me sentia disposta a voltar, mas ele tinha razão.
Eu ainda não tinha o perfil completo da personagem, faltava um
histórico de experiências e uma trama consistente.
Concordei
em voltar, confiante de que tínhamos um acordo. Como ele
próprio dissera, seria o “grand finale” da nossa relação
para lá de esquisita.
Com o
Dr. Emerson a conversa não foi menos tensa. Ele também
não tinha compreendido exatamente o sentido das palavras de
Daniel, mas me ajudou ao explicar que os objetivos dele continuavam
os mesmos: estabelecer uma defesa pública e escapar da cadeia.
Quanto a
isso não havia dúvidas. As dúvidas eram quanto
às estratégias que ele andava maquinando.
_Acho
que deve voltar. – disse Emerson – Talvez o Dr. Daniel tenha
argumentos que considere mais convincentes do que os usados até
agora. Gostaria de ouvi-los...
_Mas eu
quero ir embora...
_Este é
o momento mais importante da evolução desse paciente
desde que você começou a visitá-lo. Ele cometeu
um deslize hoje e praticamente implorou para que você volte
amanhã. Por quê?
_Não
me importa...
Emerson
arregalou os olhos por detrás dos óculos de
aros-transparentes-fora-de-moda.
Expliquei ao Dr. Emerson porque pretendia ir embora. Ele me ouviu com
desconfiança e de vez em quando sacudia a cabeça em
discordância.
_Eu avisei... agora você vai embora e nos deixa o problema que
criou sob nossa responsabilidade.
Encarei-o com uma mistura de indignação e culpa: _Você
não pode estar falando sério! Que problema estou
deixando que já não estivesse nas suas mãos?
Daniel é responsabilidade sua, não minha! Não
precisa ficar preocupado quanto ao que vou escrever sobre esse
hospital, não vou mencionar o caso do Dr. Macabro. Farei como
me pediu... Só não quero mais continuar com estas
entrevistas. Esta foi minha sexta visita, este é meu caderno
de anotações – disse estendendo a brochura para que
ele a visse -, não tenho mais do que quatro linhas escritas
sobre o perfil que estou construindo! Tudo está ficando mais
difícil do que parecia à princípio. Às
vezes a conversa flui e acho que estou chegando a algum lugar, mas
ele sempre dá um jeito de voltar às exigências
iniciais e às barganhas: o advogado em troca da história.
Ele dá voltas e não estou chegando a lugar nenhum...
Dr. Emerson concordou com um gesto: _É claro! Ele é um
doente mental! Sua mente é um torvelinho de distorções
da realidade. O que você esperava?
_Não
sei... não sei. – eu disse sentindo os ombros pesados –
Ele disse que vai entregar sua parte do acordo amanhã. Disse
que vai me pagar pelo trato e que será uma grande final para
nossas sessões.
_E você
acredita nele?
_Tenho medo de pensar no que ele está tramando, mas sinto que
chegamos mesmo a esse ponto de tudo ou nada. Tendo ou não o
que eu vim buscar, amanhã verei o Dr. Daniel pela última
vez.
Na
pensão, enquanto eu fazia as malas, o telefone tocou. Era
Rodrigo, meu editor.
Contei a
ele que iria embora, que não tinha mais condições
de entrevistar o Dr. Macabro. Ele me pareceu compreensivo, mas antes
de desligar, perguntou se eu tinha material suficiente para escrever
a história.
Respondi:
Com certeza!
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