Conto: ATÉ O ÚLTIMO PEDAÇO pt.3

SEGUNDA VISITA

Pela manhã retornei ao hospital. Desta vez a coisa toda foi menos burocrática e o Doutor Emerson pediu para me ver ao final da visita, limitando-se a apontar a direção da ala de segurança máxima.
Depois de passar pela sala de vigilância e receber os cumprimentos dos carcereiros, encontrei a cadeira disposta no mesmo lugar e dentro da cela Daniel estava sentado, de cabelos penteados, soltos, vestindo um blusão de lã escura sobre o macacão azul de presidiário.
_Bom dia Donna. - ele me cumprimentou erguendo-se da cadeira cordialmente – Como passou de ontem para hoje?
_Bem, obrigada. E você?
Daniel apontou para sua cela: _Vê algum vestígio de papel?
Olhei para o cubículo. O calhamaço de sulfite sobre a prateleira e a carga da caneta haviam desaparecido.
_A diretoria assistiu ao vídeo tape da nossa reunião de ontem. Eles vieram aqui e retiraram todo o material de escrita quando eu começava a redigira a carta que combinamos. Percebe o significado de tudo o que estou dizendo? Eles querem impedir que eu reabra o caso, porque sabem que isso irá reduzir minha pena. Fazem isso porque ataquei uma colega deles, é uma retaliação por vingança.
_Não posso fazer nada quanto a isso. Sinto muito.
_Sente? - ele se ajeitou na cadeira, parecendo verdadeiramente interessado na minha presença pela primeira vez naquele dia.
_Sinto. Não por você, pela sua atitude de ter atacado a enfermeira, mas por estar nesta situação de desamparo. Eu o ajudaria se pudesse, mas sem a carta, não sei o que posso fazer...
_Pode escrever sobre isso na revista... pode ameaçá-los.
Como ele sabia que eu estava trabalhando também para a revista do meu editor?
_Se eu ameaçá-los eles não me permitirão mais visitá-lo. Entenda, não tenho controle sobre isso. Posso dar um telefonema à Comissão e falar com alguém sobre seu caso, posso escrever sobre isso em algum lugar – disse tentando dissuadi-lo da idéia de me usar através da revista -, mas não posso garantir que terá o que quer... quem irá querer defendê-lo depois do que fez à pobre enfermeira?
Eu não contei a ele que trabalhava numa editora que possuía uma revista. Como ele havia deduzido isso corretamente?
_Pobre enfermeira? - Daniel deu uma gargalhada – Sabe porque eu estava na enfermaria do presídio?
Sacudi a cabeça em negação.
_Porque tinha sido estuprado por cinco outros presidiários, ao longo de uma semana. - ele me encarou, olhou no fundo dos meus olhos e pude perceber que a memória do ocorrido ainda lhe causava incômodos.
_Talvez tenha sido demais, morder e arrancar o nariz da enfermeira, mas com os gritos dela consegui atrair o segurança. Eu o dominei e lhe roubei o revolver. Fugi pelas escadas de serviço da enfermaria e num instante estava na sala principal do presídio. Minha idéia era render os guardas e fazê-los abrir as portas. Lá fora eu roubaria um carro e prosseguiria em fuga. Cheguei até a entrada e na sala de vigilância fui rendido, porque a arma que eu roubara estava descarregada. Eu não sabia até então, que os guardas que trabalham no interior do presídio, usam armas descarregadas por motivos de segurança. As armas só servem em situações de motim...
Houve um instante de silêncio em que considerei o que ele me dizia. Daniel continuou:
_Compreenda que eu sempre tentarei fugir se tiver uma chance.
_Por isso ninguém se preocupa em defender seu caso. Você não coopera com o sistema, mas quer que o sistema coopere com você...
Daniel fez aquela cara de desprezo que eu já conhecia:
_O sistema nunca cooperou comigo. Não tive direito à ampla defesa. Minha condenação foi um desfile de erros de pré-julgamento e incompetência do advogado. Todos os meus apelos a uma revisão do caso foram censuradas pela direção desse hospital...
_Se não tivesse ferido aquela enfermeira e matado seus companheiros de cela não estaria num hospital para começo de conversa... Está aqui porque atraiu essa situação a si mesmo. Ainda que seja inocente dos crimes pelos quais foi condenado, dentro da prisão você matou e feriu muitas pessoas.
_Matei duas pessoas e feri cinco. Posso garantir que fiz isso para minha própria segurança e não estaria vivo hoje se não o tivesse feito...
Daniel levantou-se e achei que ele encerraria aquela conversa, ao invés disso ele serviu dois copos de café, como no dia anterior.
Passou um para mim pela gaveta. O gosto do café daquele dia pareceu ainda pior.
_Aqueles companheiros de cela estavam me estuprando com regularidade desde que fui encarcerado naquele presídio. Eles me machucaram horrivelmente e por isso fui parar na enfermaria, onde ataquei a enfermeira. Fui jogado novamente naquela cela e os presos me brutalizaram um pouco mais. Fiquei tão machucado que o diretor teve medo que eu morresse. Na época meu caso tinha ficado famoso e psiquiatras do mundo inteiro escreviam procurando notícias minhas. Jornalistas e até fãs de assassinos estavam se inscrevendo nas listas de visitas. Eu não podia simplesmente morrer em decorrência de uma infecção contraída pela brutalidade dos outros presos. Me mandaram para a enfermaria uma vez mais, todo amarrado e me deram remédios para combater a infecção. Fizeram um acordo para que os outros presos parassem de me estuprar e me deixassem em paz. Mas eu não esqueci o que fizeram comigo e ao invés de tomar todos os remédios, guardei o suficiente para anestesiá-los. Quando tive a chance, apliquei os anestésicos na água que eles bebiam e esperei que dormissem. Então matei dois deles, os piores, de forma calculadamente brutal, para que os outros ficassem com medo de mim. - Daniel deu uma risada – Na verdade eu queria apavorá-los, porque desejava ficar sozinho numa cela. - ele abriu os braços e apontou para as paredes ao seu redor – Como pode ver, consegui exatamente o que queria!
_Você fez um dos homens engolir o próprio pênis!
Daniel abriu a boca surpreso: _Eu não o fiz engolir o próprio pênis. Isso é um exagero da mídia. Eu arranquei o pênis dele e o enfiei na sua boca, mas ele já estava morto quando fiz isso. Como disse, queria apavorar os outros presos...
_Você arrancou o pênis dele com os dentes. - eu acrescentei aquele detalhe, desejando ver como o Doutor justificaria aquela atitude evidentemente insana.
_Eu não tinha uma faca. Acredite, preferiria ter usado uma ao invés dos dentes, muito embora haja uma certa ironia nisso, se pensar bem...mas os dentes eram as únicas armas que eu tinha, até que me arrancaram todos...
_E depois disso você teve ajuda da Comissão de Direitos Humanos, que lhe conseguiu uma dentadura...
Daniel arreganhou a boca. Por um instante achei que ele arrancaria as dentaduras, mas eu não conhecia ainda a natureza de sua vaidade para saber que ele jamais faria aquilo na minha frente...
_Não foi a Comissão que me arranjou esta dentadura. Ela veio pelo correio e foi presente de um fã anônimo, que fez a gentileza de procurar meu dentista e tirar um molde bastante aproximado dos meus dentes naturais. Foi chocante o que fiz, mas tinha que ser. Se eu simplesmente tivesse matado aqueles dois, sem qualquer elemento de crueldade como esse, os outros não teriam ficado apavorados e antes que os guardas viessem, teriam me quebrado o pescoço. Mas assim que acordaram e viram aquela cena, eles começaram a gritar e isso chamou a atenção dos guardas. Aqueles lá perderam a chance de me matar em silêncio e nunca mais puderam chegar perto de mim, porque fui transferido no mesmo dia para a solitária e depois para este hospital. Percebe agora?
_E o interno que você levou ao suicídio? Dizem que você o manipulou...
_ Eu não o manipulei! Ele é que não parava de reclamar, de gritar, de gemer e optou pelo suicídio porque era maníaco depressivo. Fez isso porque quis, não tive nada a ver com essa decisão, não posso ser acusado de tê-lo matado. Não tenho super poderes...
_E as outras pessoas que você machucou: internos, funcionários que você agarrava através das barras?
_Eu já lhe disse: minha determinação enquanto presidiário é fugir. Sempre irei tentar a fuga, quando tiver uma chance. Basta um único refém para eu sair dessa prisão. Nunca vou parar de tentar. Estou aqui contra todos os fundamentos da justiça, meu processo foi uma piada de mau gosto e não me cansarei de dizer isso.
_E os outros crimes? E os pedaços de corpos que foram encontrados no refrigerador da sua cozinha?
_Já disse que fui vítima de uma armação... – o Dr. Daniel sacudiu a cabeça e pareceu exaurido - Você já tem sua amostra grátis. Se quiser mais histórias, me arrume um advogado.
_Como pode me prometer contar histórias sobre seus crimes se é inocente? - perguntei com um sorriso de triunfo no rosto – Se você é mesmo inocente, não tem nada para me oferecer, então não preciso sair daqui correndo para te arranjar um advogado! Me dê sua história verdadeira e depois, se eu achar que ela vale à pena, vou atrás de um para você...
Daniel me encarou e não gostei do jeito que olhou para mim. Não parecia um olhar amigável, ou de desprezo, ao contrário, senti que ele flertava comigo...
_Conto a história que você quiser, se escrever na Revista o relato do descaso das comissões de direitos humanos sobre a minha situação e o fato de que não tenho um advogado à disposição há dez anos.
_Por que pensa que eu escrevo para alguma revista? Já lhe disse que escrevo livros de ficção...
Daniel arqueou uma sobrancelha: _Esse hospital não deixaria um escritor de ficção que vende livros em bancas de rodoviária entrar aqui, me entrevistar e sair sem ganhar alguma coisa em troca. O que eles mais querem é boa publicidade. Você está aqui porque sua editora pode oferecer isso em troca dessa história. Além disso, mencionei a revista da primeira vez e você reagiu com surpresa, mas não objetou. O fato de estar fazendo isso agora só comprova a minha hipótese. Não sei se você escreve para alguma revista ou jornal, mas sei que isso deve ser parte da barganha entre a sua editora e a direção desse hospital. Você sozinha não teria tido a idéia de vir aqui, nem teria qualquer poder de negociação com a diretoria. Escreva um artigo sobre meu caso e lhe darei em troca o perfil do assassino definitivo.
Encarei o Dr. Macabro, lembrando das palavras de Emerson me advertindo a não barganhar, a não subestimar aquele detento...
_Pensarei no seu caso e lhe darei uma resposta amanhã. - disse me levantando da cadeira – Obrigada Dr. Daniel, pela sua atenção.
Daniel levantou-se, arreganhou a dentadura e despediu-se: _Disponha. Estarei por aqui. – ele disse irônicamente.

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