SEGUNDA
VISITA
Pela
manhã retornei ao hospital. Desta vez a coisa toda foi menos
burocrática e o Doutor Emerson pediu para me ver ao final da
visita, limitando-se a apontar a direção da ala de
segurança máxima.
Depois
de passar pela sala de vigilância e receber os cumprimentos dos
carcereiros, encontrei a cadeira disposta no mesmo lugar e dentro da
cela Daniel estava sentado, de cabelos penteados, soltos, vestindo um
blusão de lã escura sobre o macacão azul de
presidiário.
_Bom dia
Donna. - ele me cumprimentou erguendo-se da cadeira cordialmente –
Como passou de ontem para hoje?
_Bem,
obrigada. E você?
Daniel
apontou para sua cela: _Vê algum vestígio de papel?
Olhei
para o cubículo. O calhamaço de sulfite sobre a
prateleira e a carga da caneta haviam desaparecido.
_A
diretoria assistiu ao vídeo tape da nossa reunião de
ontem. Eles vieram aqui e retiraram todo o material de escrita quando
eu começava a redigira a carta que combinamos. Percebe o
significado de tudo o que estou dizendo? Eles querem impedir que eu
reabra o caso, porque sabem que isso irá reduzir minha pena.
Fazem isso porque ataquei uma colega deles, é uma retaliação
por vingança.
_Não
posso fazer nada quanto a isso. Sinto muito.
_Sente?
- ele se ajeitou na cadeira, parecendo verdadeiramente interessado na
minha presença pela primeira vez naquele dia.
_Sinto.
Não por você, pela sua atitude de ter atacado a
enfermeira, mas por estar nesta situação de desamparo.
Eu o ajudaria se pudesse, mas sem a carta, não sei o que posso
fazer...
_Pode
escrever sobre isso na revista... pode ameaçá-los.
Como ele
sabia que eu estava trabalhando também para a revista do meu
editor?
_Se eu
ameaçá-los eles não me permitirão mais
visitá-lo. Entenda, não tenho controle sobre isso.
Posso dar um telefonema à Comissão e falar com alguém
sobre seu caso, posso escrever sobre isso em algum lugar –
disse tentando dissuadi-lo da idéia de me usar através
da revista -, mas não posso garantir que terá o que
quer... quem irá querer defendê-lo depois do que fez à
pobre enfermeira?
Eu não
contei a ele que trabalhava numa editora que possuía uma
revista. Como ele havia deduzido isso corretamente?
_Pobre
enfermeira? - Daniel deu uma gargalhada – Sabe porque eu estava na
enfermaria do presídio?
Sacudi a
cabeça em negação.
_Porque
tinha sido estuprado por cinco outros presidiários, ao longo
de uma semana. - ele me encarou, olhou no fundo dos meus olhos e pude
perceber que a memória do ocorrido ainda lhe causava
incômodos.
_Talvez
tenha sido demais, morder e arrancar o nariz da enfermeira, mas com
os gritos dela consegui atrair o segurança. Eu o dominei e lhe
roubei o revolver. Fugi pelas escadas de serviço da enfermaria
e num instante estava na sala principal do presídio. Minha
idéia era render os guardas e fazê-los abrir as portas.
Lá fora eu roubaria um carro e prosseguiria em fuga. Cheguei
até a entrada e na sala de vigilância fui rendido,
porque a arma que eu roubara estava descarregada. Eu não sabia
até então, que os guardas que trabalham no interior do
presídio, usam armas descarregadas por motivos de segurança.
As armas só servem em situações de motim...
Houve um
instante de silêncio em que considerei o que ele me dizia.
Daniel continuou:
_Compreenda
que eu sempre tentarei fugir se tiver uma chance.
_Por
isso ninguém se preocupa em defender seu caso. Você não
coopera com o sistema, mas quer que o sistema coopere com você...
Daniel
fez aquela cara de desprezo que eu já conhecia:
_O
sistema nunca cooperou comigo. Não tive direito à ampla
defesa. Minha condenação foi um desfile de erros de
pré-julgamento e incompetência do advogado. Todos os
meus apelos a uma revisão do caso foram censuradas pela
direção desse hospital...
_Se não
tivesse ferido aquela enfermeira e matado seus companheiros de cela
não estaria num hospital para começo de conversa...
Está aqui porque atraiu essa situação a si
mesmo. Ainda que seja inocente dos crimes pelos quais foi condenado,
dentro da prisão você matou e feriu muitas pessoas.
_Matei
duas pessoas e feri cinco. Posso garantir que fiz isso para minha
própria segurança e não estaria vivo hoje se não
o tivesse feito...
Daniel
levantou-se e achei que ele encerraria aquela conversa, ao invés
disso ele serviu dois copos de café, como no dia anterior.
Passou
um para mim pela gaveta. O gosto do café daquele dia pareceu
ainda pior.
_Aqueles
companheiros de cela estavam me estuprando com regularidade desde que
fui encarcerado naquele presídio. Eles me machucaram
horrivelmente e por isso fui parar na enfermaria, onde ataquei a
enfermeira. Fui jogado novamente naquela cela e os presos me
brutalizaram um pouco mais. Fiquei tão machucado que o
diretor teve medo que eu morresse. Na época meu caso tinha
ficado famoso e psiquiatras do mundo inteiro escreviam procurando
notícias minhas. Jornalistas e até fãs de
assassinos estavam se inscrevendo nas listas de visitas. Eu não
podia simplesmente morrer em decorrência de uma infecção
contraída pela brutalidade dos outros presos. Me mandaram para
a enfermaria uma vez mais, todo amarrado e me deram remédios
para combater a infecção. Fizeram um acordo para que os
outros presos parassem de me estuprar e me deixassem em paz. Mas eu
não esqueci o que fizeram comigo e ao invés de tomar
todos os remédios, guardei o suficiente para anestesiá-los.
Quando tive a chance, apliquei os anestésicos na água
que eles bebiam e esperei que dormissem. Então matei dois
deles, os piores, de forma calculadamente brutal, para que os outros
ficassem com medo de mim. - Daniel deu uma risada – Na verdade eu
queria apavorá-los, porque desejava ficar sozinho numa cela. -
ele abriu os braços e apontou para as paredes ao seu redor –
Como pode ver, consegui exatamente o que queria!
_Você
fez um dos homens engolir o próprio pênis!
Daniel
abriu a boca surpreso: _Eu não o fiz engolir o próprio
pênis. Isso é um exagero da mídia. Eu arranquei o
pênis dele e o enfiei na sua boca, mas ele já estava
morto quando fiz isso. Como disse, queria apavorar os outros
presos...
_Você
arrancou o pênis dele com os dentes. - eu acrescentei aquele
detalhe, desejando ver como o Doutor justificaria aquela atitude
evidentemente insana.
_Eu não
tinha uma faca. Acredite, preferiria ter usado uma ao invés
dos dentes, muito embora haja uma certa ironia nisso, se pensar
bem...mas os dentes eram as únicas armas que eu tinha, até
que me arrancaram todos...
_E
depois disso você teve ajuda da Comissão de Direitos
Humanos, que lhe conseguiu uma dentadura...
Daniel
arreganhou a boca. Por um instante achei que ele arrancaria as
dentaduras, mas eu não conhecia ainda a natureza de sua
vaidade para saber que ele jamais faria aquilo na minha frente...
_Não
foi a Comissão que me arranjou esta dentadura. Ela veio pelo
correio e foi presente de um fã anônimo, que fez a
gentileza de procurar meu dentista e tirar um molde bastante
aproximado dos meus dentes naturais. Foi chocante o que fiz, mas
tinha que ser. Se eu simplesmente tivesse matado aqueles dois, sem
qualquer elemento de crueldade como esse, os outros não teriam
ficado apavorados e antes que os guardas viessem, teriam me quebrado
o pescoço. Mas assim que acordaram e viram aquela cena, eles
começaram a gritar e isso chamou a atenção dos
guardas. Aqueles lá perderam a chance de me matar em silêncio
e nunca mais puderam chegar perto de mim, porque fui transferido no
mesmo dia para a solitária e depois para este hospital.
Percebe agora?
_E o
interno que você levou ao suicídio? Dizem que você
o manipulou...
_ Eu não
o manipulei! Ele é que não parava de reclamar, de
gritar, de gemer e optou pelo suicídio porque era maníaco
depressivo. Fez isso porque quis, não tive nada a ver com essa
decisão, não posso ser acusado de tê-lo matado.
Não tenho super poderes...
_E as
outras pessoas que você machucou: internos, funcionários
que você agarrava através das barras?
_Eu já
lhe disse: minha determinação enquanto presidiário
é fugir. Sempre irei tentar a fuga, quando tiver uma chance.
Basta um único refém para eu sair dessa prisão.
Nunca vou parar de tentar. Estou aqui contra todos os fundamentos da
justiça, meu processo foi uma piada de mau gosto e não
me cansarei de dizer isso.
_E os
outros crimes? E os pedaços de corpos que foram encontrados no
refrigerador da sua cozinha?
_Já
disse que fui vítima de uma armação... – o Dr.
Daniel sacudiu a cabeça e pareceu exaurido - Você já
tem sua amostra grátis. Se quiser mais histórias, me
arrume um advogado.
_Como
pode me prometer contar histórias sobre seus crimes se é
inocente? - perguntei com um sorriso de triunfo no rosto – Se você
é mesmo inocente, não tem nada para me oferecer, então
não preciso sair daqui correndo para te arranjar um advogado!
Me dê sua história verdadeira e depois, se eu achar que
ela vale à pena, vou atrás de um para você...
Daniel
me encarou e não gostei do jeito que olhou para mim. Não
parecia um olhar amigável, ou de desprezo, ao contrário,
senti que ele flertava comigo...
_Conto a
história que você quiser, se escrever na Revista o
relato do descaso das comissões de direitos humanos sobre a
minha situação e o fato de que não tenho um
advogado à disposição há dez anos.
_Por que
pensa que eu escrevo para alguma revista? Já lhe disse que
escrevo livros de ficção...
Daniel
arqueou uma sobrancelha: _Esse hospital não deixaria um
escritor de ficção que vende livros em bancas de
rodoviária entrar aqui, me entrevistar e sair sem ganhar
alguma coisa em troca. O que eles mais querem é boa
publicidade. Você está aqui porque sua editora pode
oferecer isso em troca dessa história. Além disso,
mencionei a revista da primeira vez e você reagiu com surpresa,
mas não objetou. O fato de estar fazendo isso agora só
comprova a minha hipótese. Não sei se você
escreve para alguma revista ou jornal, mas sei que isso deve ser
parte da barganha entre a sua editora e a direção desse
hospital. Você sozinha não teria tido a idéia de
vir aqui, nem teria qualquer poder de negociação com a
diretoria. Escreva um artigo sobre meu caso e lhe darei em troca o
perfil do assassino definitivo.
Encarei
o Dr. Macabro, lembrando das palavras de Emerson me advertindo a não
barganhar, a não subestimar aquele detento...
_Pensarei
no seu caso e lhe darei uma resposta amanhã. - disse me
levantando da cadeira – Obrigada Dr. Daniel, pela sua atenção.
Daniel
levantou-se, arreganhou a dentadura e despediu-se: _Disponha. Estarei
por aqui. – ele disse irônicamente.
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