O DOUTOR
EMERSON
_Eu
disse para não negociar com ele! - o Doutor Emerson chamou
minha atenção depois que lhe apresentei os meus planos.
Ele usava óculos, estava sentado atrás de sua mesa,
numa antiga sala de assoalho, com pé direito alto e uma
abundância de madeira por todos os lados.
_Ele não
vai cooperar se eu não lhe conseguir algumas coisas simples em
troca...
_Simples?
Mudá-lo de cela? - Emerson chacoalhou a cabeça.
_A
Editora vai pagar pelo incômodo e pelas reformas na nova
cela...
O médico
me encarou de volta.
_Ele só
quer uma janela... - eu justifiquei.
Emerson
sacudiu a cabeça.
_Nada
feito...
_Se não
me permitir fazer isso, vou ter que escrever que a posição
da Comissão Internacional de Direitos Humanos e desse hospital
concordam em não conceder ao Dr. Daniel o direito básico
de ser defendido por um advogado, mantendo-o preso em cela
incomunicável, monitorando diariamente suas ações
e censurando suas cartas. O motivo: crimes cometidos há mais
de doze anos, cujas provas foram obtidas por meio de torturas e
falhas processuais evidentes!
Emerson
sacudiu a cabeça: _Até onde você pretende ir para
conseguir essa sua história?
Dei de
ombros.
Emerson suspirou.
_Eu não
vou tentar persuadir você. Se quiser escrever para a Comissão,
fique à vontade. Há um consenso geral de que Daniel não
deve deixar essa instituição sob nenhuma circunstância.
Ele deve cumprir sua pena aqui até o fim. Ela expira em 2002 e
provavelmente ele estará vivo até lá. Se
pudéssemos mantê-lo aqui mesmo depois disso, seria o
ideal. Aqui nós temos um dilema que é moral: sabemos
que Daniel foi preso durante a ditadura militar e que naquela época
algumas coisas eram diferentes... ele foi torturado, teve autorização
judicial para ter seus dentes arrancados e não há prova
forense de que ele teve qualquer relação com aqueles
corpos. Todo o caso foi montado em evidências físicas,
abundantes no refrigerador e no freezer do cara... Essas provas já
apodreceram faz tempo e naquela época não havia teste
de DNA para ser feito, assim, ninguém coletou mais do que uma
gota de sangue de cada vítima. Duvido que estas provas estejam
devidamente arquivadas, acondicionadas, para que não tenham
apodrecido. Você entende o que eu estou tentando lhe mostrar?
_Que há
uma chance de que o Doutor Daniel seja libertado, ou tenha sua pena
reduzida.
_Exatamente!
Você entende o dilema moral: quem somos nós, eu, você,
alguns membros da Comissão dos Direitos Humanos, para não
lhe concedermos o direito de defesa? Vá em frente! Dê ao
Doutor Macabro, as chances dele se defender e voltar a viver livre na
sociedade! Seja responsável por isso se quiser. Eu não
vou pedir para não escrever o artigo. Escreva o que quiser,
não me importa. Tudo o que eu peço em troca, é
que você se comprometa com ele, até o fim. Já que
quer atribular tudo o que está quieto, silencioso e acertado,
pode ao menos se comprometer a não fugir quando as coisas
derem errado. Conheça-o melhor e decida por si mesma se quer
ou não escrever sobre isso. Se quer ou não ser a
responsável por libertar esse monstro...
_Você
quer colocar sobre meus ombros a responsabilidade de decidir se ele
tem ou não direito a um advogado? Isso é direito
fundamental de qualquer cidadão! Você está
tentando me envolver. - eu disse apontando um dedo para a cara
daquele doutorzinho – Está tentando me fazer cometer um
julgamento baseado no comportamento desse homem. Isso é
errado. Não sou eu, ou você que temos que julgar. A
justiça é que deve fazer isso!
_Eu não
estou tentando persuadir você. Não estou tentando fazer
você desistir de buscar justiça para o Daniel. O que eu
estou propondo é que você assuma a responsabilidade de
continuar sua relação com ele e nos ajudar a
compreender melhor a sua doença. Ou você acha que pode
vir aqui, mudar tudo e sair de fininho quando perceber que cometeu um
erro? Você não entende? Eu só estou tentando
fazer você enxergar o que está acontecendo aqui. Você
quer ajudá-lo a reaver seus direitos... - Emerson retirou os
óculos e esfregou os olhos trincados de cansaço – A
ficha do Daniel já está limpa há sete anos. De
lá para cá ele não cometeu mais nenhum crime,
nem teve qualquer surto, ou desvio comportamental. Na verdade ele é
o paciente mais estável deste hospital. Certamente a ficha
dele não comporta uma soltura, mesmo com as faltas de provas
físicas dos assassinatos, a justiça tem amplos
documentos da época para basear seu julgamento e mantê-lo
preso, mas se você reabrir o caso, ela não irá
mais tolerar o regime de exclusão absoluta em que ele vive,
porque isso legalmente não existe mais. Será então
determinado que ele seja incluído num programa de
reabilitação. Isso significa permitir que ele faça
refeições no refeitório, que ele frequente o
pátio e a sala de recreação. Você já
o conheceu, está sendo vítima da astúcia dele
agora mesmo, sabe que ele pode fingir, que ele pode manipular
pessoas. Nós o chamamos de assassino serial definitivo, porque
ele é um parâmetro de comparação, um
paradigma do assunto. Não há classificação
nos compêndios da psiquiatria para a doença dele. Na
verdade, não poderíamos jamais dizer que ele é
doente, a não ser pelo fato de que mata e come suas vítimas.
Você consegue imaginar o que ele pode fazer, se for devolvido
às áreas públicas desse hospital?
Engoli
seco, o médico me ofereceu um copo de água e continuou
a falar:
_Se quer
ajudar esse homem, vá em frente...
_Eu não
quero ajudá-lo. - protestei – Quero escrever uma história.
_E
quando tiver sua história vai embora e nos deixar como
estamos, ou vai nos deixar com uma dor de cabeça? - Emerson
suspirou – Aceitamos você aqui porque precisamos de
publicidade e seu editor ofereceu um artigo, que vai mostrar como a
nova diretoria mudou as coisas por aqui e para melhor. Essa boa
publicidade pode nos render algumas verbas e nos ajudar a melhorar as
condições dos internos ainda mais... agora, se você
quer que este homem tenha um novo julgamento, a partir do momento que
conseguir isso, a responsabilidade já será sua, quer
queira, quer não.
Dr
Emerson se levantou da cadeira, também levantei, pensando que
aquela conversa estava encerrada. Ele deu a volta à mesa e
pediu que o acompanhasse.
Seguimos
pelo corredor, pelas escadas até o térreo e depois em
direção à saída principal. Parecia que
ele me queria fora dali, mas então entrou numa salinha, com
várias telas de TV e aparelhos de vídeo cassete. Um
guarda moreno, que não devia ter mais do que vinte e cinco
anos estava etiquetando e intitulando fitas cassete.
_Olá
Fábio. Boa Tarde.
_Boa
tarde Dr Emerson! - respondeu o rapaz sorridente
_Pode nos mostrar aquelas cenas que eu pedi que fossem separadas?
_As do
Dr Macabro? - rapidamente o guarda Fábio me lançou um
olhar esquisito, mistura talvez de curiosidade e medo. - Estão
aqui. - disse colocando uma fita para dentro da gaveta de um aparelho
de vídeo cassete.
A imagem
na tela bamboleou por um segundo antes de estabilizar, mostrando a
cela do Dr. Daniel e ele em uma estranha atividade. Observei mais de
perto e pude compreender o que ele estava fazendo. A hora indicava
que a gravação tinha sido feita às sete e quinze
da manhã, meia hora antes da minha chegada ao hospital.
Dr
Daniel estava escondendo todas as suas folhas de papel debaixo do
colchão.
_Por que
ele está fazendo isso? - perguntei.
Emerson
pareceu surpreso: _Você não sabe?
Então
num clarão compreendi tudo: _ Ele me disse que vocês
tinham confiscado todos os seus papéis e caneta. Ele estava me
manipulando, mas por que ele queria me fazer pensar que vocês
não o deixam escrever para a Comissão?
_Ele
queria que você pusesse isso na revista para nos prejudicar.
Ele quer a história dele de novo nos tablóides. Se
chamar a atenção pública, quem sabe a justiça
não lhe concede uma segunda chance? Nós imaginávamos
que ele fosse tentar convencê-la a ajudá-lo, mas a
maioria das pessoas é resistente a isso. Ninguém quer
ajudar o cara a se safar da cadeia, mas você parece interessada
no caso! Agora que assistiu à prova mais verdadeira de que ele
está te manipulando, pode por favor parar e ouvir o que eu
estou dizendo? Antes de decidir se quer chamar de novo a atenção
do mundo para o caso do Dr Daniel, peço que o acompanhe com
frequência por algum tempo. Talvez mude de idéia, talvez
não, mas pode nos ajudar a compreender algumas incongruências.
Não quero impedir que venha visitá-lo. Posso até
fazer isso, mas não somos mais uma instituição
abusiva como a imprensa gosta de pensar. Não fazemos mais esse
tipo de coisa, como impedir um paciente de receber visitas... ao
contrário. Já que quer se envolver nisso, quer ajudá-lo
a ter mais conforto em troca de sua preciosa história, peço
que não saia por aí defendendo os direitos dele antes
de conhecê-lo melhor. Você só o viu por dois dias
e já está convencida. Espere mais um pouco e verá
o que ele pode fazer. Talvez então você compreenda
porque ele jamais poderá sair dessa cadeia...
_Mas eu
preciso dar alguma coisa a ele em troca da história! E você
há de concordar comigo que o homem vive em condições
sub-humanas. Se ele não pode conviver com os outros presos,
devia ao menos ter direito a uma janela, um rádio, livros,
jornais, revistas, uma TV...
_E você
está disposta a pagar pelos custos da reforma de uma cela com
janela, de assinaturas mensais de revistas e jornais?
_Minha
editora pagaria essa reforma. Quanto ela irá custar?
Emerson
torceu o nariz e pensou por um tempo:
_Precisaríamos
instalar um vidro à prova de choque, ele não pode ficar
numa jaula com grades de ferro que dão acesso ao corredor,
também não pode ficar fechado atrás de uma
porta, porque precisamos ter contato visual de tudo o que ele faz. Se
instalarmos uma câmera dentro da cela ele irá dar um
jeito de quebrá-la... precisamos também de uma porta
lateral, com uma abertura suficiente para que ele passe as mãos,
para ser algemado quando sai para os exames de rotina, ou para o
pátio...uma reforma assim nos custará duas celas e
cerca de mil, mil e quinhentos reais...
_Mas
pode ser feito?
_Preciso
conversar com a diretoria primeiro, mas duvido que eles aceitem fazer
isso... antes disso gostaria de lhe mostrar outra coisa. – ele me
indicou a porta.
Segui-o
novamente pelos corredores até uma das salas de arquivos que
eu tinha visto na visita anterior. Dentro da sala, que cheirava à
madeira e papel velhos, o Dr. Emerson puxou uma gaveta de arquivo e
explicou:
_Há
uma lei que protege o sigilo entre paciente e médico, há
outra lei que libera documentos processuais para o interesse público.
O que tenho aqui é uma mistura dos dois. Um dossiê sobre
o Dr. Daniel Malbenito. Eu não devia mostrar isso a você,
mas vejo que veio até aqui sem muito conhecimento sobre a
história desse homem. O arquivo tem mais de quinhentas
páginas. Se me prometer não subtrair nenhuma delas, não
fotografar, fotocopiar ou transcrever nada do que estiver aqui, posso
deixar que dê uma estudada. - Emerson aproximou-se de mim e
pude sentir seu hálito – Estou correndo um risco danado
aqui, mas faço isso porque você não é uma
jornalista, é uma escritora em busca de inspiração.
Comprei um livro seu ontem e o estou lendo. Gostei da estória,
é divertida e me prendeu. Não quero prejudicar você,
mas preciso que me retribua o favor e não mencione este dossiê
na Revista. Só quero esclarecê-la antes que cometa
alguma besteira. Acho que depois de ler isso aqui, irá
desistir de se envolver nesse caso.
Estudei o dossiê por cerca de duas horas, mas fui obrigada a
parar antes do final da tarde, simplesmente porque não tive
estômago para continuar...
O pior
de tudo não era saber que o Doutor Daniel Malbenito
provavelmente desaparecia com os corpos das vítimas
comendo-os. O pior era saber que ele de vez em quando oferecia
jantares gastronômicos, para os quais, chegou inclusive a
convidar alguns dos parentes de suas próprias vítimas,
a pretexto de confortá-los em sua dor...
O Doutor
Macabro era um sádico e provavelmente encontrava satisfação
quase sexual em ouvir dos parentes do prato principal, elogios quanto
à qualidade de sua culinária.
Por
volta da hora do jantar Rodrigo me telefonou. Gritou comigo que eu
devia estar maluca por propor ao hospital que mudasse o Dr. Daniel de
cela às custas da editora.
_Ele não
vai me dar uma história a não ser que eu lhe consiga
coisas como uma janela, um rádio, jornais, revistas e livros.
- Não mencionei um advogado porque ainda estava ruminando as
justificativas do Dr. Emerson.
_Eu não
vou pagar pelo conforto desse assassino! Você não podia
ter feito uma promessa como essa...
_Eu não
prometi nada. Sugeri que isso fosse feito, porque se não for,
posso fazer as malas e voltar para casa.
Do outro
lado Rodrigo ficou em silêncio por um momento.
_Você
acha que ele dá uma boa história? - ele perguntou
finalmente.
_Acho
que sim, mas você me deixou desamparada aqui! Não sabe
como é esse Dr. Macabro! O cara é o demônio em
pessoa. Ele disse que não recebia visita há tempos e
que por isso queria saborear a minha visita ao máximo! Me
arrepio só de pensar no assunto. Você sabe o que ele
fez? Sequestrou, matou e cozinhou uma moça de dezessete anos,
neta de um dos músicos da Orquestra Sinfônica de São
Paulo. Pois ele convidou o tal músico para jantar algumas
semanas depois do desaparecimento dela e ofereceu seus serviços
como psiquiatra. Quando foi preso encontraram pedaços
preparados, embalados e congelados dessa moça no freezer. É
provável que ele a tenha servido como jantar ao próprio
avô! - o silêncio do outro lado da linha indicava que eu
havia atingido o ponto – Foi nesse buraco que você me enfiou!
Se quiser a história tanto quanto eu, rateie os custos dessa
reforma comigo. Ajudo a pagar por ela com os rendimentos do próximo
livro, mas me dê a chance de conseguir descobrir por que ele
fez essas coisas...
Preciso
mesmo dizer que não dormi naquela noite?
Depois
de tomar conhecimento sobre detalhes inimagináveis nos crimes
do Macabro, no dia seguinte, antes de descer à ala de
segurança máxima, tirei uma hora para conversar
detalhadamente com o Dr. Emerson, que gentilmente me esclareceu ainda
mais sobre o assunto.
_É
impressionante como ele articula as idéias. Ele quase me
convenceu. Na verdade fiquei meio magnetizada pela sua personalidade.
- eu disse disfarçando o leve enjôo estomacal que
passara a me afetar todas as vezes em que eu pensava no assunto - Ele
foi extremamente gentil no começo, depois abriu o jogo e falou
objetivamente quais eram seus termos, seu preço...
_Ele
quase te fez acreditar na história de que confiscamos seus
papéis. A verdade é que ele teve todas as chances de
defesa garantidas por lei. Ninguém jamais recusou-se a
responder suas solicitações por um advogado, o problema
é que até hoje, nenhum advogado que se voluntariou a
ajudá-lo, quis continuar no caso depois de conhecer os
detalhes. Houve falhas no processo, isso é óbvio, mas
ninguém até hoje discordou da importância dessa
condenação. - Emerson mordeu o canto do lábio e
encostou na poltrona – Tenho até medo de pensar no que pode
acontecer se esse lunático for solto algum dia. Conversei com
a diretoria do hospital ontem depois que você saiu. Eles me
autorizaram a adequar uma cela com janelas para o Dr. Macabro, desde
que você prometa não fazer alarde sobre ele no artigo
que está escrevendo e que sua editora arque com os custos da
reforma... – Emerson debruçou-se sobre a mesa e me encarou -
Pessoalmente eu lhe peço que continue vindo, mesmo depois que
tiver a sua história, porque o Dr. Daniel parece disposto a
falar com você. Isso não acontece com qualquer um...
talvez você possa nos ajudar a compreender melhor qual o
problema dele e quem sabe até, descobrir se a morte daquele
advogado teve alguma coisa a ver com as cartas que ele escreve...
Esta
última informação me interessou. Emerson
explicou então que não havia provas de que o primeiro
advogado de Daniel tivesse sido morto por algum admirador, mas que
talvez ele tivesse um meio de se comunicar com alguém através
de um código. Só que não tinham conseguido
encontrar uma mensagem codificada em nenhuma de suas
correspondências.
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