Conto: ATÉ O ÚLTIMO PEDAÇO pt.4

O DOUTOR EMERSON


_Eu disse para não negociar com ele! - o Doutor Emerson chamou minha atenção depois que lhe apresentei os meus planos. Ele usava óculos, estava sentado atrás de sua mesa, numa antiga sala de assoalho, com pé direito alto e uma abundância de madeira por todos os lados.
_Ele não vai cooperar se eu não lhe conseguir algumas coisas simples em troca...
_Simples? Mudá-lo de cela? - Emerson chacoalhou a cabeça.
_A Editora vai pagar pelo incômodo e pelas reformas na nova cela...
O médico me encarou de volta.
_Ele só quer uma janela... - eu justifiquei.
Emerson sacudiu a cabeça.
_Nada feito...
_Se não me permitir fazer isso, vou ter que escrever que a posição da Comissão Internacional de Direitos Humanos e desse hospital concordam em não conceder ao Dr. Daniel o direito básico de ser defendido por um advogado, mantendo-o preso em cela incomunicável, monitorando diariamente suas ações e censurando suas cartas. O motivo: crimes cometidos há mais de doze anos, cujas provas foram obtidas por meio de torturas e falhas processuais evidentes!
Emerson sacudiu a cabeça: _Até onde você pretende ir para conseguir essa sua história?
Dei de ombros.
Emerson suspirou.
_Eu não vou tentar persuadir você. Se quiser escrever para a Comissão, fique à vontade. Há um consenso geral de que Daniel não deve deixar essa instituição sob nenhuma circunstância. Ele deve cumprir sua pena aqui até o fim. Ela expira em 2002 e provavelmente ele estará vivo até lá. Se pudéssemos mantê-lo aqui mesmo depois disso, seria o ideal. Aqui nós temos um dilema que é moral: sabemos que Daniel foi preso durante a ditadura militar e que naquela época algumas coisas eram diferentes... ele foi torturado, teve autorização judicial para ter seus dentes arrancados e não há prova forense de que ele teve qualquer relação com aqueles corpos. Todo o caso foi montado em evidências físicas, abundantes no refrigerador e no freezer do cara... Essas provas já apodreceram faz tempo e naquela época não havia teste de DNA para ser feito, assim, ninguém coletou mais do que uma gota de sangue de cada vítima. Duvido que estas provas estejam devidamente arquivadas, acondicionadas, para que não tenham apodrecido. Você entende o que eu estou tentando lhe mostrar?
_Que há uma chance de que o Doutor Daniel seja libertado, ou tenha sua pena reduzida.
_Exatamente! Você entende o dilema moral: quem somos nós, eu, você, alguns membros da Comissão dos Direitos Humanos, para não lhe concedermos o direito de defesa? Vá em frente! Dê ao Doutor Macabro, as chances dele se defender e voltar a viver livre na sociedade! Seja responsável por isso se quiser. Eu não vou pedir para não escrever o artigo. Escreva o que quiser, não me importa. Tudo o que eu peço em troca, é que você se comprometa com ele, até o fim. Já que quer atribular tudo o que está quieto, silencioso e acertado, pode ao menos se comprometer a não fugir quando as coisas derem errado. Conheça-o melhor e decida por si mesma se quer ou não escrever sobre isso. Se quer ou não ser a responsável por libertar esse monstro...
_Você quer colocar sobre meus ombros a responsabilidade de decidir se ele tem ou não direito a um advogado? Isso é direito fundamental de qualquer cidadão! Você está tentando me envolver. - eu disse apontando um dedo para a cara daquele doutorzinho – Está tentando me fazer cometer um julgamento baseado no comportamento desse homem. Isso é errado. Não sou eu, ou você que temos que julgar. A justiça é que deve fazer isso!
_Eu não estou tentando persuadir você. Não estou tentando fazer você desistir de buscar justiça para o Daniel. O que eu estou propondo é que você assuma a responsabilidade de continuar sua relação com ele e nos ajudar a compreender melhor a sua doença. Ou você acha que pode vir aqui, mudar tudo e sair de fininho quando perceber que cometeu um erro? Você não entende? Eu só estou tentando fazer você enxergar o que está acontecendo aqui. Você quer ajudá-lo a reaver seus direitos... - Emerson retirou os óculos e esfregou os olhos trincados de cansaço – A ficha do Daniel já está limpa há sete anos. De lá para cá ele não cometeu mais nenhum crime, nem teve qualquer surto, ou desvio comportamental. Na verdade ele é o paciente mais estável deste hospital. Certamente a ficha dele não comporta uma soltura, mesmo com as faltas de provas físicas dos assassinatos, a justiça tem amplos documentos da época para basear seu julgamento e mantê-lo preso, mas se você reabrir o caso, ela não irá mais tolerar o regime de exclusão absoluta em que ele vive, porque isso legalmente não existe mais. Será então determinado que ele seja incluído num programa de reabilitação. Isso significa permitir que ele faça refeições no refeitório, que ele frequente o pátio e a sala de recreação. Você já o conheceu, está sendo vítima da astúcia dele agora mesmo, sabe que ele pode fingir, que ele pode manipular pessoas. Nós o chamamos de assassino serial definitivo, porque ele é um parâmetro de comparação, um paradigma do assunto. Não há classificação nos compêndios da psiquiatria para a doença dele. Na verdade, não poderíamos jamais dizer que ele é doente, a não ser pelo fato de que mata e come suas vítimas. Você consegue imaginar o que ele pode fazer, se for devolvido às áreas públicas desse hospital?
Engoli seco, o médico me ofereceu um copo de água e continuou a falar:
_Se quer ajudar esse homem, vá em frente...
_Eu não quero ajudá-lo. - protestei – Quero escrever uma história.
_E quando tiver sua história vai embora e nos deixar como estamos, ou vai nos deixar com uma dor de cabeça? - Emerson suspirou – Aceitamos você aqui porque precisamos de publicidade e seu editor ofereceu um artigo, que vai mostrar como a nova diretoria mudou as coisas por aqui e para melhor. Essa boa publicidade pode nos render algumas verbas e nos ajudar a melhorar as condições dos internos ainda mais... agora, se você quer que este homem tenha um novo julgamento, a partir do momento que conseguir isso, a responsabilidade já será sua, quer queira, quer não.
Dr Emerson se levantou da cadeira, também levantei, pensando que aquela conversa estava encerrada. Ele deu a volta à mesa e pediu que o acompanhasse.
Seguimos pelo corredor, pelas escadas até o térreo e depois em direção à saída principal. Parecia que ele me queria fora dali, mas então entrou numa salinha, com várias telas de TV e aparelhos de vídeo cassete. Um guarda moreno, que não devia ter mais do que vinte e cinco anos estava etiquetando e intitulando fitas cassete.
_Olá Fábio. Boa Tarde.
_Boa tarde Dr Emerson! - respondeu o rapaz sorridente
_Pode nos mostrar aquelas cenas que eu pedi que fossem separadas?
_As do Dr Macabro? - rapidamente o guarda Fábio me lançou um olhar esquisito, mistura talvez de curiosidade e medo. - Estão aqui. - disse colocando uma fita para dentro da gaveta de um aparelho de vídeo cassete.
A imagem na tela bamboleou por um segundo antes de estabilizar, mostrando a cela do Dr. Daniel e ele em uma estranha atividade. Observei mais de perto e pude compreender o que ele estava fazendo. A hora indicava que a gravação tinha sido feita às sete e quinze da manhã, meia hora antes da minha chegada ao hospital.
Dr Daniel estava escondendo todas as suas folhas de papel debaixo do colchão.
_Por que ele está fazendo isso? - perguntei.
Emerson pareceu surpreso: _Você não sabe?
Então num clarão compreendi tudo: _ Ele me disse que vocês tinham confiscado todos os seus papéis e caneta. Ele estava me manipulando, mas por que ele queria me fazer pensar que vocês não o deixam escrever para a Comissão?
_Ele queria que você pusesse isso na revista para nos prejudicar. Ele quer a história dele de novo nos tablóides. Se chamar a atenção pública, quem sabe a justiça não lhe concede uma segunda chance? Nós imaginávamos que ele fosse tentar convencê-la a ajudá-lo, mas a maioria das pessoas é resistente a isso. Ninguém quer ajudar o cara a se safar da cadeia, mas você parece interessada no caso! Agora que assistiu à prova mais verdadeira de que ele está te manipulando, pode por favor parar e ouvir o que eu estou dizendo? Antes de decidir se quer chamar de novo a atenção do mundo para o caso do Dr Daniel, peço que o acompanhe com frequência por algum tempo. Talvez mude de idéia, talvez não, mas pode nos ajudar a compreender algumas incongruências. Não quero impedir que venha visitá-lo. Posso até fazer isso, mas não somos mais uma instituição abusiva como a imprensa gosta de pensar. Não fazemos mais esse tipo de coisa, como impedir um paciente de receber visitas... ao contrário. Já que quer se envolver nisso, quer ajudá-lo a ter mais conforto em troca de sua preciosa história, peço que não saia por aí defendendo os direitos dele antes de conhecê-lo melhor. Você só o viu por dois dias e já está convencida. Espere mais um pouco e verá o que ele pode fazer. Talvez então você compreenda porque ele jamais poderá sair dessa cadeia...
_Mas eu preciso dar alguma coisa a ele em troca da história! E você há de concordar comigo que o homem vive em condições sub-humanas. Se ele não pode conviver com os outros presos, devia ao menos ter direito a uma janela, um rádio, livros, jornais, revistas, uma TV...
_E você está disposta a pagar pelos custos da reforma de uma cela com janela, de assinaturas mensais de revistas e jornais?
_Minha editora pagaria essa reforma. Quanto ela irá custar?
Emerson torceu o nariz e pensou por um tempo:
_Precisaríamos instalar um vidro à prova de choque, ele não pode ficar numa jaula com grades de ferro que dão acesso ao corredor, também não pode ficar fechado atrás de uma porta, porque precisamos ter contato visual de tudo o que ele faz. Se instalarmos uma câmera dentro da cela ele irá dar um jeito de quebrá-la... precisamos também de uma porta lateral, com uma abertura suficiente para que ele passe as mãos, para ser algemado quando sai para os exames de rotina, ou para o pátio...uma reforma assim nos custará duas celas e cerca de mil, mil e quinhentos reais...
_Mas pode ser feito?
_Preciso conversar com a diretoria primeiro, mas duvido que eles aceitem fazer isso... antes disso gostaria de lhe mostrar outra coisa. – ele me indicou a porta.
Segui-o novamente pelos corredores até uma das salas de arquivos que eu tinha visto na visita anterior. Dentro da sala, que cheirava à madeira e papel velhos, o Dr. Emerson puxou uma gaveta de arquivo e explicou:
_Há uma lei que protege o sigilo entre paciente e médico, há outra lei que libera documentos processuais para o interesse público. O que tenho aqui é uma mistura dos dois. Um dossiê sobre o Dr. Daniel Malbenito. Eu não devia mostrar isso a você, mas vejo que veio até aqui sem muito conhecimento sobre a história desse homem. O arquivo tem mais de quinhentas páginas. Se me prometer não subtrair nenhuma delas, não fotografar, fotocopiar ou transcrever nada do que estiver aqui, posso deixar que dê uma estudada. - Emerson aproximou-se de mim e pude sentir seu hálito – Estou correndo um risco danado aqui, mas faço isso porque você não é uma jornalista, é uma escritora em busca de inspiração. Comprei um livro seu ontem e o estou lendo. Gostei da estória, é divertida e me prendeu. Não quero prejudicar você, mas preciso que me retribua o favor e não mencione este dossiê na Revista. Só quero esclarecê-la antes que cometa alguma besteira. Acho que depois de ler isso aqui, irá desistir de se envolver nesse caso.

Estudei o dossiê por cerca de duas horas, mas fui obrigada a parar antes do final da tarde, simplesmente porque não tive estômago para continuar...
O pior de tudo não era saber que o Doutor Daniel Malbenito provavelmente desaparecia com os corpos das vítimas comendo-os. O pior era saber que ele de vez em quando oferecia jantares gastronômicos, para os quais, chegou inclusive a convidar alguns dos parentes de suas próprias vítimas, a pretexto de confortá-los em sua dor...
O Doutor Macabro era um sádico e provavelmente encontrava satisfação quase sexual em ouvir dos parentes do prato principal, elogios quanto à qualidade de sua culinária.

Por volta da hora do jantar Rodrigo me telefonou. Gritou comigo que eu devia estar maluca por propor ao hospital que mudasse o Dr. Daniel de cela às custas da editora.
_Ele não vai me dar uma história a não ser que eu lhe consiga coisas como uma janela, um rádio, jornais, revistas e livros. - Não mencionei um advogado porque ainda estava ruminando as justificativas do Dr. Emerson.
_Eu não vou pagar pelo conforto desse assassino! Você não podia ter feito uma promessa como essa...
_Eu não prometi nada. Sugeri que isso fosse feito, porque se não for, posso fazer as malas e voltar para casa.
Do outro lado Rodrigo ficou em silêncio por um momento.
_Você acha que ele dá uma boa história? - ele perguntou finalmente.
_Acho que sim, mas você me deixou desamparada aqui! Não sabe como é esse Dr. Macabro! O cara é o demônio em pessoa. Ele disse que não recebia visita há tempos e que por isso queria saborear a minha visita ao máximo! Me arrepio só de pensar no assunto. Você sabe o que ele fez? Sequestrou, matou e cozinhou uma moça de dezessete anos, neta de um dos músicos da Orquestra Sinfônica de São Paulo. Pois ele convidou o tal músico para jantar algumas semanas depois do desaparecimento dela e ofereceu seus serviços como psiquiatra. Quando foi preso encontraram pedaços preparados, embalados e congelados dessa moça no freezer. É provável que ele a tenha servido como jantar ao próprio avô! - o silêncio do outro lado da linha indicava que eu havia atingido o ponto – Foi nesse buraco que você me enfiou! Se quiser a história tanto quanto eu, rateie os custos dessa reforma comigo. Ajudo a pagar por ela com os rendimentos do próximo livro, mas me dê a chance de conseguir descobrir por que ele fez essas coisas...


Preciso mesmo dizer que não dormi naquela noite?
Depois de tomar conhecimento sobre detalhes inimagináveis nos crimes do Macabro, no dia seguinte, antes de descer à ala de segurança máxima, tirei uma hora para conversar detalhadamente com o Dr. Emerson, que gentilmente me esclareceu ainda mais sobre o assunto.
_É impressionante como ele articula as idéias. Ele quase me convenceu. Na verdade fiquei meio magnetizada pela sua personalidade. - eu disse disfarçando o leve enjôo estomacal que passara a me afetar todas as vezes em que eu pensava no assunto - Ele foi extremamente gentil no começo, depois abriu o jogo e falou objetivamente quais eram seus termos, seu preço...
_Ele quase te fez acreditar na história de que confiscamos seus papéis. A verdade é que ele teve todas as chances de defesa garantidas por lei. Ninguém jamais recusou-se a responder suas solicitações por um advogado, o problema é que até hoje, nenhum advogado que se voluntariou a ajudá-lo, quis continuar no caso depois de conhecer os detalhes. Houve falhas no processo, isso é óbvio, mas ninguém até hoje discordou da importância dessa condenação. - Emerson mordeu o canto do lábio e encostou na poltrona – Tenho até medo de pensar no que pode acontecer se esse lunático for solto algum dia. Conversei com a diretoria do hospital ontem depois que você saiu. Eles me autorizaram a adequar uma cela com janelas para o Dr. Macabro, desde que você prometa não fazer alarde sobre ele no artigo que está escrevendo e que sua editora arque com os custos da reforma... – Emerson debruçou-se sobre a mesa e me encarou - Pessoalmente eu lhe peço que continue vindo, mesmo depois que tiver a sua história, porque o Dr. Daniel parece disposto a falar com você. Isso não acontece com qualquer um... talvez você possa nos ajudar a compreender melhor qual o problema dele e quem sabe até, descobrir se a morte daquele advogado teve alguma coisa a ver com as cartas que ele escreve...
Esta última informação me interessou. Emerson explicou então que não havia provas de que o primeiro advogado de Daniel tivesse sido morto por algum admirador, mas que talvez ele tivesse um meio de se comunicar com alguém através de um código. Só que não tinham conseguido encontrar uma mensagem codificada em nenhuma de suas correspondências.

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